Por: Paulo César de Carvalho*, de São Paulo, SP
Que esfinge de cimento e alumínio arrombou seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação?(…) Moloch o pesadelo juiz dos homens! Moloch a incomparável prisão! (…) Moloch cujos prédios são julgamento! (…) Moloch cuja mente é pura maquinaria! Moloch cujo sangue é dinheiro corrente! (…) Moloch cujos olhos são mil janelas cegas! (…) Moloch cuja alma é eletricidade e bancos! (…) Moloch cujo destino é uma nuvem de hidrogênio sem sexo! (…) Apartamentos de robôs! Subúrbios invisíveis!
(Allen Ginsberg, Uivo, L&PM, 1984, p. 49-50)
1. Para começo de conversa, não evocamos em vão Moloch, a divindade amanita devoradora em cuja honra se faziam sacrifícios humanos: sua figura representa, aqui, a personificação do poder neoliberal que nos devora impiedosamente. Os versos em epígrafe nos revelam as mil faces deste “Deus-Capital”, trazendo-nos à realidade: o “poder de Estado” se manifesta sob diferentes formas, em múltiplas dimensões da existência humana. Moloch é o poder executivo: o presidente e o empresário, “cuja mente é pura maquinaria”. É o poder judiciário: os “juízes sem juízo”. É o sistema financeiro, “cuja alma é bancos”. É o poder legislativo, que redige a “tábua dos mandamentos” de Moloch.
2. Este deus com dentes de tubarão, patas de leão e garras de urso encarna os aparelhos repressivos do estado: “os prédios são julgamento” (o kafkiano “pesadelo juiz dos homens”); a polícia e o exército que reprimem ostensivamente com sua “nuvem de hidrogênio sem sexo” as manifestações contra a divindade devoradora (este maldito gigante Leviatã). Moloch está no corpo do delegado, do secretário de (in)justiça, do magistrado: pode ser Alexandre de Moraes, pode ser Moro, pode ser Gilmar Mendes. Moloch está no controle político do estado: pode ser chamado de PMDB, pode ser chamado de PSDB, pode ser chamado de DEM. Moloch está no controle econômico do estado: pode subir os juros, pode baixar os salários. Moloch mora no Banco Central: está na alma de Henrique Meirelles. Moloch pode ser a arquitetura “panóptica” do prédio da FIESP, “cujos olhos são mil janelas cegas”.
3. Moloch tem o poder de vigiar e punir; está nas suas mãos o controle dos aparelhos ideológicos do estado: sua cara está na capa da Veja, na manchete da Folha, na tela da Globo. Moloch pode defender a “escola sem partido”, pode cortar verbas da educação, pode acabar com a creche da USP. Moloch pode usar mesóclises para baixar medidas provisórias, extinguindo o Ministério da Cultura com a assinatura parnasiana Temer. Moloch pode ser o urubu da fábula, que vira reitor da universidade de música e decreta o fim da Banda Sinfônica de São Paulo com a rubrica Alckmin (“cujos ouvidos são mil janelas surdas”). Moloch pode sair de uma tela de tevê ou de Romero Britto para dar um visto (e uma vista) cinza Dória nos muros coloridos da cidade.
4. Em resumo, Moloch, como representação do poder neoliberal, ataca-nos por todos os lados, devorando-nos econômica e socialmente, política e culturalmente. Os seus ataques são materiais e espirituais: sob o seu regime tirânico, falta pão e falta poesia. É ele quem come o estômago dos pobres, os pulmões dos carvoeiros, as mãos do operário, a boca dos cantores, a língua dos amantes, os pés dos bailarinos, a expressão dos atores… A saciedade de Moloch é a nossa fome, de corpo e alma: Temer/Alckmin/Dória (como as três cabeças de Cérbero na porta do inferno dantesco) são as incorporações do mesmo poder voraz do capitalismo, que destrói as universidades, que rouba a merenda escolar, que pinta os muros de cinza. Como dissemos, Moloch – como o grego Proteu, que toma diferentes formas –, está na política, na economia, na sociedade, na educação, na cultura, enfim, na ideologia.
5. Vamos à moral da história: para lutar contra Moloch, é preciso atacá-lo em distintas frentes, combatê-lo de todos os lados. A vitória contra o poder neoliberal, pois, só é possível com a conjugação de forças contra a sua tirania: operários, servidores públicos, professores, estudantes, bancários, trabalhadores do campo, trabalhadores sem teto, músicos, bailarinos, grafiteiros, cineastas, atores, poetas e tantos outros que constroem a vida em suas tantas dimensões, todos temos que nos organizar em uma frente única contra Moloch (quer chame Temer, Alckmin ou Dória, variantes do mesmo poder). Cada categoria se organiza, claro, a partir de sua condição específica, de sua realidade objetiva, de sua inserção concreta no processo produtivo. Cada categoria se fortalece a partir da unidade de princípios e de ação, estruturada (guardadas as devidas proporções) como uma “frente única”. Considerando que nossa luta específica faz parte do embate geral, todos nós precisamos integrar uma frente única de esquerda para reagir ao inimigo comum.
6. A consciência desse processo – a visão de conjunto e a compreensão da dinâmica das partes – é condição necessária para que faça sentido nos organizarmos (no contexto particular em que existimos socialmente) como uma Frente Única da Cultura. Com a ajuda do trocadilho, podemos traduzir assim: a cultura não é a única frente de luta, o que implica que há outras trincheiras na luta geral; a frente única da cultura significa a luta específica, o papel particular dos trabalhadores da cultura e da arte no embate global. Em outros termos, os conflitos conjunturais são manifestações do mesmo conflito estrutural: a mesma ordem que abole direitos trabalhistas é a que extermina os índios, que explora os trabalhadores rurais, que prende os negros, que assassina os homossexuais, que devasta as florestas, que bate nos estudantes, que acaba com a Banda Sinfônica de São Paulo, que apaga os grafites da Avenida 23 de Maio, etc. e etc. e etc. e tal…
7. Posta sobre a mesa nossa fome material e nossa fome espiritual, precisamos ler neste prato vazio a relação dialética entre elas: como nas correspondências de Baudelaire, há uma profunda e tenebrosa unidade ligando-as. Em condições históricas extremamente desfavoráveis, no quadro do triunfo do nazi-fascismo e do stalinismo, o poeta surrealista André Breton e o revolucionário Leon Trotsky formularam em 1938, no Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, uma exemplar tradução do que significa nossa frente particular na luta geral contra a ordem neoliberal de Moloch:
A arte verdadeira, a que não se contenta com modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse só para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram no passado. (…) Segue-se que a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder atribuir-lhe, para fins pragmáticos, extremamente estreitos (Paz e Terra, 1985, p. 38).
8. A nossa luta particular – está claro, pois – só faz sentido no quadro de uma “reconstrução completa e radical da sociedade”: nossa luta não é só contra Dória, contra Alckmin, contra Temer; não é só contra o fim da banda Sinfônica ou dos grafites cobertos de cinza; não é só contra o corte de verbas da Secretaria de Cultura de São Paulo. Entretanto, como lembra o manifesto da Federação da Arte Revolucionária Independente, “mesmo que fosse só para libertar a criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram”, só isso já justificaria a nossa Frente Única da Cultura. No fundo, está implícito que só isso não é suficiente para derrotar Moloch; mas também, está explícito, é condição fundamental para iniciar a reação.
9. A Frente Única da Cultura nasce não como uma possibilidade teórica, como determinação conceitual, como imposição abstrata, como delírio do “mundo das ideias”; a organização é fruto da necessidade prática, produzida pelas condições materiais e espirituais que estamos vivendo. Ela representa a força da unidade dos trabalhadores da cultura e da arte para responder aos ataques do Leviatã neoliberal: ela é a expressão da luta de músicos, grafiteiros, poetas, escultores, bailarinos, mímicos, malabaristas, atores, jornalistas, cineastas, produtores e tantos outros profissionais envolvidos com a criação e a circulação de bens culturais. Para contextualizar o cenário que levou à formação da Frente Única da Cultura em São Paulo, vejamos um trecho da reportagem publicada na Rede Brasil Atual, em 17 de fevereiro de 2017: O orçamento da cultura para este ano foi fixado pelos vereadores em R$ 518,7 milhões, após ampla mobilização de vários setores na Câmara Municipal. Esse montante não chega a 1% do orçamento total da cidade, que é R$ 54 bilhões. Com o congelamento, cerca de R$ 225 milhões ficam sem uso na cultura.
10. A unidade firmada pela Frente reflete positivamente a consciência de que o ataque atinge os trabalhadores da arte e da cultura em seu conjunto. O depoimento do presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, Rudifran Pompeu, ajuda a esclarecer o alcance dos golpes neoliberais: o corte vai liquidar os programas de incentivo e formação cultural, como os de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), Fomento à Dança, Fomento ao Teatro e o Vocacional, que atendem milhares de jovens todos os anos, além de empregar centenas de profissionais. As privações, evidente, não são só materiais: os cortes de verbas produzem fome espiritual; impedem a exploração das amplas potencialidades sensíveis do homem, inviabilizando a formação cultural e artística de “milhares de jovens”. Posto isso, na perspectiva da Frente Única da Cultura em São Paulo, Moloch se manifesta concretamente na gestão de Dória Grey: o prefeito cinza materializa, aqui, o inimigo da arte.
11. Nosso campo de luta, pois, é este: é sob estas condições objetivas e subjetivas que nos construímos para reagir. A partir desta nossa experiência inicial da Frente Única da Cultura, lembramos a iniciativa histórica da construção da Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente, em 1938, cujo manifesto, redigido por Trotsky e Breton, já citamos. Para encaminhar nossa conclusão, esclarecendo inequivocamente o propósito desta Carta aberta aos trabalhadores da cultura e da arte, vêm bem a calhar os tópicos 13 e 14 do texto:
13) O objetivo do presente apelo é encontrar um terreno para reunir todos os defensores revolucionários da arte, para servir à revolução pelos métodos da arte e defender a própria liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos de que o encontro nesse terreno é possível para os representantes de tendências estéticas, filosóficas e políticas razoavelmente divergentes. Os marxistas podem caminhar aqui de mãos dadas com os anarquistas, com a condição de que uns e outros rompam implacavelmente com o espírito policial reacionário (…).
14) Milhares e milhares de pensadores e de artistas isolados, cuja voz é encoberta pelo tumulto odioso dos falsificadores arregimentados, estão atualmente dispersos no mundo. (…) Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo fascismo como uma degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista pelos stalinistas. A arte revolucionária independente deve unir-se para a luta contra as perseguições reacionárias e proclamar bem alto seu direito à existência.
*Paulo César de Carvalho é poeta (seu sexto livro, O som da cor da letra, foi publicado em 2016 pela Editora Patuá), com participação em diversas antologias, como Poezz, pela editora portuguesa Almedina, e É agora como nunca – organizada por Adriana Calcanhoto – lançada em 2017 pela Companhia das Letras) e compositor (com parcerias gravados por diversos músicos, como Carlos Zimbher, da Frente Única da Cultura de SP). Foi colaborador de diversas publicações culturais, como Arte & Informação, Livro Aberto e Discutindo Literatura. Foi editor do boletim Texto & Cultura (com o jornalista José Arbex Jr.). Lecionou no curso de Editoração da ECA-USP. Colabora no blog Esquerda Online e é militante do MAIS (Movimento Por Uma Alternativa Socialista). E-mail: [email protected]
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