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TEORIA

Foucault liberal?

Por Diego Braga, Colunista do Blog Esquerda Online

Se tivesse sido apenas mais um repetidor de ideias e categorias alheias, Foucault não teria entrado para a história do pensamento social nem exercido a duradoura influência que sua obra ainda tem em diversas áreas do saber. Classificá-lo como um liberal por alguns elementos de seu pensamento é de uma grosseria teórica incrível, esta sim, reacionária.

De fato, Foucault critica as políticas estatais promotoras do bem-estar social como mecanismos de controle e de poder, a partir de seu axioma de que o poder não apenas pune e reprime, mas fundamentalmente premia e congratula. Mas Foucault também dirige suas críticas ao controle e ao poder – até com mais ênfase, ao longo de sua obra – relacionando-os ao regime do capital, baseado na propriedade privada e exercido através da disciplina racionalizada do trabalho, e do pragmatismo que reduz a existência à funcionalidade. Foucault é tudo, portanto, menos um liberal.

Os liberais clássicos identificam o poder exclusivamente com a política e esta com o Estado, enquanto Foucault o identifica, de forma quase equivalente, em todos os terrenos da atividade humana: na ciência e no discurso, na cultura, na economia e na política. A visão de ´´política“ em Foucault é mais ampla (muito mais) que a dos liberais. A produção capitalista, as proposições científicas e as construções linguísticas são, por exemplo, para Foucault, manifestações da política. Daí ele poder falar em ´´biopolítica“, algo ininteligível dentro de um paradigma liberal clássico. O liberalismo renovado tem procurado – a meu ver sem sucesso – incorporar a dimensão da micropolítica nas suas concepções e propostas. Este insucesso, segundo entendo, deve-se a que o caráter da micropolítica requeira intervenção e consideração individualizadas sobre situações específicas, bem como uma expansão da política em “políticas´´, o que destoa da igualdade formal que é a base da política liberal.

Foucault, porém, não é um anarquista nem um socialista. Ele não identifica a existência de um ´´lugar do poder“, seja ele institucional, como o Estado, seja ele setorial, como na economia, ou fenomênico, como na propriedade privada. O poder é onipresente, para o pensador francês, e, em certos momentos, em sua obra, parece ser inclusive onipotente. A leitura de Foucault, sim, tende a conduzir a uma sensação de impotência quanto a práticas possíveis de libertação, estratégias viáveis de contrapoder. Se o poder está em todo lugar e em todas as manifestações da atividade humana, as ações, em geral, são sempre exercícios de poder, porquanto exercícios discursivos, exercícios de verdade. Assim, engana-se quem atribui à individualidade o núcleo da possibilidade de libertação, em Foucault, pois ele não identifica a subjetividade à individualidade, necessariamente. A própria subjetividade é ´´escavada“ em sua arqueologia como uma construção que articula estratégias de conformação, sempre em parte concessivas, em parte opressivas.

Trata-se, aqui, de forte influência nietzscheana: a verdade é uma forma de moral. Vale dizer: ao dizer o que uma coisa é, o pensamento e o discurso dizem o que uma coisa deve ser. Por exemplo, ao dizer o que é um homem, dão-se as características de uma classificação que ´´encerra“ a realidade (rica e vária em suas possibilidades) como numa gaveta. Quem não se enquadra nestas características, não é homem. Por isto para Foucault existe algo que pode-se chamar de políticas de verdade, formas de discurso que têm a prerrogativa socialmente construída de ´´produzir verdades“. Na política de verdade de nossa sociedade, obviamente, a ciência é uma destas formas discursivas produtoras de verdade, muito ressaltada por Foucault. A subjetividade moderna é uma destas construções discursivas moralizantes e opressivas, que concedem um estatuto às pessoas, o estatuto de ´´indivíduos modernos“, mas ao mesmo tempo os oprime nesta conformação, limita a esta conformação a sua subjetividade. Também a própria individualidade, enquanto construção discursiva, é expressão de verdade, e portanto também de poder, para Foucault. Poder que oprime e gratifica, ao mesmo tempo.

Não é, portanto, anarquista, nem socialista, nem liberal. Foucault é um pós-estruturalista. De esquerda? A interrogação aqui se deve não ao pensamento de Foucault, mas ao caráter politicamente vago do termo ´´esquerda“. Se ´´esquerda“ for oposição política, ainda que não radical, ao regime do capital, em parte o pensamento de Foucault é de esquerda, porque consiste numa das mais amplas e radicais denúncias do poder em todas as suas manifestações, e o poder inclui o poder do capital. O mais importante, porém, me parece ser sua evidente influência sobre o pensamento pós-moderno, ao menos em sua versão mais contestatória: com a renúncia a todo e qualquer poder, a ênfase no discurso como mediador e constitutivo da realidade social, ainda que com a ética relativamente imobilizante em seus fundamentos. Com posições que antecipam alguns elementos-chave do pensamento pós-moderno, Foucault construiu um universo de pensamento diferenciado do que havia, ainda que tenha semelhanças com diversos outras correntes preexistes (mas a exigência da criação a partir do nada é, em todo caso, mitológico-religiosa). Por isto sua obra é tão importante e deve ser lida com atenção, sem a tentativa de identificá-la a outras correntes de pensamento pelo desonesto expediente de desconsiderar suas especificidades.

Lê-lo é fundamental para compreender o mundo contemporâneo. O pensamento sobre o mundo é parte do mundo. Infelizmente alguns marxistas se esquecem disto. A preguiça mental deve ser evitada. O medo da leitura crítica fomentado pelo anseio de ortodoxia também não faz bem. Não sou um foucaultiano, na medida em que minha visão de mundo em geral destoa, majoritariamente, da que advém das páginas que li de Foucault. Isto não significa dizer que não aproveito nada de suas contribuições, que tudo que escreveu é reacionário e de direita e, menos ainda, que ele é um liberal. Se Foucault é liberal por se opor a políticas de bem-estar social do Estado, então os anarquistas também são liberais, e os liberais são foucaultianos pós-estruturalistas… ou seja, todas as categorias perdem o sentido quando simplificadas em demasia.

Espero que este texto não incorra neste erro, ao menos não o suficiente para desqualificá-lo como uma colocação minimamente sensata sobre o tema. Este tipo de pensamento simplificador – reducionista – é que é a base para a identificação, por exemplo, do leninismo ao stalinismo, da ditadura do proletariado ao fascismo, da democracia burguesa à ditadura, etc. Eliminando-se todas as diferenças, reduzindo tudo a simplicidade de tabelas classificatórias esquemáticas e falseadoras, resta a homogeneização, não muito distinta daquela levada a cabo pela globalização capitalista. No âmbito da esquerda, esta atitude revela apenas estupidez e preguiça mental, na melhor das hipóteses. Na pior das hipóteses, má fé. Em todo caso, um tiro no pé para quem pretende a emancipação humana e por ela se mobiliza.