Por: Betto della Santa, de Niterói
“Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer apropriar-se dela”. (Walter Benjamin)
Na já bastante conhecida a trilogia escrita, de modo não-premeditado, por Perry R. Anderson – Considerações sobre o marxismo ocidental, Arguments within English Marxism (finalmente no prelo – pela Ed. Unicamp –, com lançamento previsto para 2017/8) e nas trilhas do materialismo histórico – o autor anglo-irlandês atribui às obras de Raymond H. Williams uma qualidade ímpar: a história social da classe trabalhadora – a qual Williams evoca, com confiança e perseverança, desde a letra de seu texto. Ele conferiu a esta certas características que não se podem encontrar em lugar algum nos escritos socialistas contemporâneos e que, justamente por isso, não poderão deixar de fazer parte de qualquer cultura revolucionária por vir digna destes nome e sobrenome.
O trabalho intelectual de Raymond Henry Williams fundou uma nova tradição no que já foi – e, em vários aspectos, continua sendo – algo como uma viva república de letras do marxismo mundial. Se é verdade que o radicalismo de fala inglesa foi um dos mais destacados epicentros da reinvenção do pensamento socialista global no último quartel do século passado, tampouco é um exagero retórico situar o socialista galês dentro do que é o seu núcleo o mais sofisticado e consistente. A edição sistemática de suas obras selecionadas, no Brasil, é uma nota alvissareira. Mas – como já podemos supor – nenhuma tradução intercultural nasce no vazio. A construção de pontes entre épocas e continentes é um canteiro de obras. E toda fortuna crítica tem a sua história.
Williams é, entre muitas outras coisas, o autor de uma obra seminal: Culture and Society. Em 1958 – mesmo ano em que Giafrancesco Guarnieri ira escrever Eles Não Usam Black-Tie – o primeiro ato de sua produção crítica iria abalar as estruturas das práticas literárias do campo com o qual cruzou sabres. Ao buscar a gênese e devir de uma concepção de cultura e sociedade, apresentou o tertium datur dialético para os nexos entre civilização e cultura, matéria e espírito, atividade e consciência. Foi em meio a uma profunda crise ética e política – moral e intelectual – da velha esquerda ligada, sobretudo, ao Great-Bretain Communist Party e ao Labour Party, que Williams submeteu à prova da história o novo programa de interpretação e transformação do real.
Dois anos depois da invasão militar ao Canal de Suez e da revolução antiestalinista na República Popular da Hungria, e dois anos antes da fundação da nova revista, New Left Review. Enquanto prédios e saias subiam, cabelos e consumo cresciam e a música aumentava de volume, uma velha ilha parecia se transformar. O fio condutor de suas pesquisas era perquirir a noção de cultura no plano das ideias desde a revolução industrial e seus desenvolvimentos subseqüentes. O motivo intelectual-político levou-o ao Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política – como, antes, já havia levado Gramsci –, para a apreciação crítica da determinação do modo de vida, espiritual, pelo modo de produção, material: a metáfora, base/superestrutura, revalorizada.
A relação entre ser e consciência, na Inglaterra, havia sido vertida dos manuais do diamat. A crítica à teoria do espelhamento (ou reflexo), ao real-socialismo moscovita e sobretudo ao que se constituiu enquanto a tradição política do comunismo inglês – o “mundo perdido”, segundo o título derrisório de Raphael Sammuel –, progressivamente impeliu-o a se desmarcar daquilo que lhe parecia um peso-morto. E o ambiente intelectual foi sacudido por sua prosa. A linguagem da clareza e da urgência aliou-se às mais avançadas técnicas de engajamento literário com o texto. O contexto efetivo de sua formação cultural, desde a mais tenra idade (um filho de ferroviário no campo galês), e o projeto intelectual, sustentado pelo sistema acadêmico britânico, fundir-se-iam.
A primeira recepção de Williams no Brasil tendeu a fragmentar, e descontextualizar, o seu pensamento. Os livros, recenseamentos, traduções, conferências e as mais diversas intervenções culturais e teóricas – políticas e editoriais –, de Maria Elisa Cevasco, foram fundamentais para revisar o primeiro momento de sua fortuna crítica. Especialista no marxismo de fala inglesa, Cevasco pôde contribuir – fortemente – para a formação de um público leitor no instruído debate com a interlocução viva das fontes de Williams. É nada mais do que justo que Cevasco e André Glaser, seu colaborador intelectual, desempenhem uma função ativa no que são as novas edições de uma fase distinta da obra williamsiana no Brasil. A Editora Unesp entregou já cinco volumes fulcrais.
Cultura e materialismo, Política do modernismo, A produção social da escrita, A política e as letras e Recursos da esperança são títulos da editora Verso, projeto editorial que recebeu o primeiro nome de New Left Books, a casa editorial dos livros da nova esquerda mais velha do mundo. À exceção de A política e as letras, um longo livro-entrevista com duração de dois anos de extensa e profunda conversação de ideias, são coletâneas de ensaios sob reagrupamento de matéria teórica e temática. Em elegante projeto gráfico, simples e bonito, o conjunto de livros é um convite à leitura do autor d’O campo e a cidade, Marxismo e literatura e A tragédia moderna. Cada um destes títulos representa uma importante faceta da obra do autor. Merecem a enunciação.
Cultura e materialismo (1980) e Política do modernismo (1989) são, ambos, exemplares edificantes e ilustrativos do que os estudos culturais e/ou o materialismo cultural de Williams podem atingir. O primeiro trata-se de algo como um tour de force de vinte anos entorno ao método de análise construído laboriosa e diligentemente da recíproca fertilização entre adjetivo e substantivo da fórmula teórica contida no enunciado formal. Para além dos textos de caráter mais eminentemente teórico, case studies sobre romance industrial galês e utopia e ficção científica, e peças abertamente políticas sobre passado, presente, futuro – com destaque para os ensaios Base e superestrutura na teoria da cultura marxista e Notas sobre marxismo na Grã-Bretanha desde 1945. No segundo, o nexo entre política revolucionária e avantgarde modernista – a fortaleza e debilidade de uma visão de mundo – e a autocrítica de modernidade/pós-modernidade, além da conceituação de “estrutura de sentimento” em volume que debate o futuro dos “Cultural Studies”.
A Produção Social da Escrita (1983), ‘Writing in Society’, é a intervenção mais técnica do autor. A materialidade da cultura letrada passa necessariamente por uma série de dispositivos e formas que nada têm de natural. A dialeticidade íntegra entre texto e contexto é como que o esteio sobre o qual se enlaçam narratividade literária e dinâmica histórica. Ressoando ecos de autores tais como Theodor Adorno e Walter Benjamin – e com preocupações similares a Antonio Candido e Roberto Schwarz – Williams fala sobre uma disposição comum de energias e rumos entre aquilo que se costuma chamar forma e conteúdo. Racine e Shakespeare, Dickens e Hume, o Inglês de Cambridge e ‘o papel da imaginação’ tem ali lugar. Recursos de esperança (1989) é uma coletânea de um intelectual extra-acadêmico. E é – outrossim – a ouvre de um autor inimitável. A reunião de ensaios e atos de fala de um grande pensador amparada em gama incomparável de referências intelectuais e recursos inesgotáveis de experiência vivida, comunidade e democracia, ecologismo e pacifismo, teoria e prática. Algumas notas preliminares para uma concepção em ato – ou um ‘pensar em movimento’ – para os contornos e adensamentos de uma democracia socialista futura. Aqui temos por primeira vez em português do Brasil “A cultura é algo comum” e “Você é um marxista, não é?”. As acusações de nacional-populista e romântico-revolucionário, tal qual o que pode soar a progressivismo social, reformismo político, gradualismo econômico e hibridismo cultural, isto é, a pecha mesma de não-marxista e não-revolucionário, não deixam de derivar de peças, como as que se reúnem no presente volume, para desassossego dos dogmáticos.
Já A política e as letras é de um gênero do discurso que os anglos poderiam chamar “one of a kind”. O livro é uma entrevista de longuíssima duração. No tempo distendido de um espaço ampliado, Raymond Williams fez uma contribuição fundamental para a cultura intelectual de esquerda no mundo de fala inglesa. Perry Anderson e Francis Mulhern falam com tal figura-chave da criação dos estudos culturais na Grã-Bretanha, que transcriou suas habilidades críticas afiadas de análise textual para o exame das estruturas e dinâmicas de luta e resistência na vida cultural e material. O ritmo de seu pensamento é perscrutado pelos entrevistadores a fundo. O desenvolvimento biográfico e a evolução de sua teoria cultural – o comum na cultura + a cultura no comum –, a sua escrita crítica e a sua prosa criativa, a esquerda literária e a esquerda política, o socialismo no mundo e na Grã-Bretanha. É impressionante o quão à queima-roupa disparam os jovens e o quão intelectualmente honesto e estoicamente sereno é o velho ao responder em regra.
Vistos com algo de distanciamento crítico os lançamentos recentes perfazem em conjunto um novo momento na recepção de Williams no Brasil. Um forte indício deste sismógrafo social e político pode advir de uma auscultação do-ente não-verbal presente em uma rigorosa e efetiva historicização radical do tempo presente. A prefaciação de Iná Camargo de Costa é como que “espírito-de-porco” o bastante para já começar, sem desconversas, dizendo que a reunião de luta política e luta cultural torna-se possível tão-somente após a desilusão com apparatischk– governo de coalizão liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Uma ilustração vigorosa da abertura de que fala a camarada Iná pode ser conferida na trilogia de Daniela Mussi, publicada como ponto mais alto da contribuição teórico-política do recém-lançado Blog Junho. Recomendamos fortemente os ensaios Gramsci no Império, Hegemonia como saturação da consciência e O marxismo como teoria da cultura. Se os primeiros atos para uma fortuna crítica de seus escritos no Brasil tiveram lugar com as peças de Maria Elisa Cevasco e André Glaser podemos assegurar que Iná Camargo e Daniela Mussi não decepcionam à seqüência do constante e ininterrupto processo de cidadania brasileira ao nosso querido, e invulgar, Raimundo Henrique Guilhermino, filho de ferroviário galês que ascendeu à Oxbridge, da mesma forma como o fez Antonio Gramsci, camponês sardo.
Mais vale, como conta Williams em entrevista a Terry Eagleton, tornar viável a esperança do que convincente o desespero. É preciso distinguir as sementes de vida das sementes de morte. Para quem insiste em derivar a poesia dum futuro em aberto, os lançamentos da Unesp são todo um alento contra o ceticismo cínico e o desespero trágico. Em tempos difíceis é no terreno da cultura que o jogo – ou melhor, a luta – pode começar a virar. Em um dos textos desta ensemble Williams alerta à intelectualidade para os perigos e armadilhas de uma erudição desengajada ou de uma retórica dogmática. O marxismo legitimatório e o marxismo acadêmico, envoltos nos gabinetes partidários oficiais e nos corredores universitários institucionais, segundo Williams, deveriam ser superados por um marxismo operativo. O critério ulterior de uma razão crítica é, para Williams como para Marx, um ato histórico, e não mental. “You are a Marxist, aren’t you?”.
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ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Boitempo: São Paulo, 2004.
WILLIAMS, Raymond. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. Trad. Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski. São Paulo: Ed. Unesp, 1989/2014. 494pp.
___________________. A política e as letras: entrevistas da New Left Review. Trad. André Glaser. São Paulo: Ed. Unesp, 1979/2013. 459pp.
___________________. A produção social da escrita. Trad. André Glaser. São Paulo: Ed. Unesp, 1983/2013. 357pp.
___________________. Política do modernismo: contra os novos conformistas. Trad. André Glaser. São Paulo: Ed. Unesp, 1989/2011. 312pp.
___________________. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Ed. Unesp, 1980/2011. 420pp.
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