Por Aldo Sauda, São Paulo/SP
No dia cinco de junho, os chefes de estado do Egito, Arábia Saudita, Bahrein e Emirados Árabes Unidos, além dos governantes Iêmen e da região oeste da Líbia – ambos países em estado de guerra civil – romperam relações militares e diplomáticas com o emirado do Qatar. A medida, anunciada no canal de televisão estatal saudita ao invés de canais diplomáticos tradicionais, foi apresentada como retaliação ao apoio de Doha ao “terrorismo” e “instabilidade regional”.
Em um acerto de contas geral com o emirado por seu papel desestabilizador durante a chamada “primavera árabe”, o bloco anti-Qatar, dirigido por egípcios e sauditas, tem interesse especial em encerrar o canal televisivo pan-arabista e pan-islâmico Al Jazeera. Os grupos islamistas financiados pelo emirado – que incluem o Hamas em Gaza e a Irmandade Muçulmana no Egito – são igualmente objeto da ofensiva. A proximidade entre o país árabe e o Irã, também. Com relação a este último, o Qatar, maior exportador de gás natural do mundo, compartilha o imenso campo de onde retira suas fabulosas riquezas com a potência regional xiita.
Além do fim das relações com seus vizinhos, o Qatar foi expulso da coalizão aérea, comandada pela Arábia Saudita, que bombardeava o Iêmen. A operação militar, que conta com o apoio americano, é responsável pelo massacre de milhares de civis e a destruição de boa parte do país. Segundo monitores da ONU, distintas ações da coalizão podem ser “consideradas crimes de guerra”. A inesperada ruptura de relações entre os países do golfo pérsico e o Qatar, segundo o NYT, foi incentivada pelo governo norte americano
Em uma serie de tweets, Trump disse que seu chamado para que se colocasse um fim ao financiamento de grupos radicais levou a Arábia Saudita e quatro outros países a tomar medidas esta semana contra o Qatar, um pequeno emirado, rico em recursos energéticos, que possivelmente é o principal posto militar avançado dos EUA no Oriente Médio.
“Durante minha recente viagem ao Oriente Médio afirmei que não pode mais haver financiamento à Ideologia Radical, ” Trump escreveu em um post pela manhã. “Os líderes dirigiram o dedo ao Qatar – veja! ”.
Monarquia absolutista na qual mais de 90% de seus 2.1 milhões de residentes são não cidadãos, o regime do Qatar, assim como de seus adversários no golfo, é um dos mais reacionários do mundo. Machista, LGBTfóbico e patrocinador do fundamentalismo religioso, uma das principais características de sua economia é que boa parte da classe operária – formada por imigrantes africanos e asiáticos – trabalha em condições análogas à escravidão. Como em todos os países do Golfo, adota o sistema de residência temporária para os seus trabalhadores vinculados à licença de trabalho. Se perdida, devem abandonar o país. Os trabalhadores imigrantes não possuem direito de se organizar em sindicatos, não têm quaisquer direitos trabalhistas e podem ter sua permanência cassada a qualquer demonstração de inconformidade ou em crises econômicas ou políticas. A agressão do bloco anti-Qatar busca, dentre deste contexto, eliminar as poucas políticas que dão ao regime uma face progressista – como a emissora Al Jazeera – ou seu apoio aos palestinos em Gaza.
Agressão reacionária
Apesar de Arábia Saudita, Qatar e Bahrein já terem rompido relações com o Qatar em 2014 por motivos similares, a atual rodada de hostilidades é mais violenta. Segundo o NYT
Estes países árabes não apenas romperam abruptamente as relações diplomáticas, como fizeram no passado, mas, surpreendendo a muitos, cortaram o acesso via terra, ar e mar ao país. Todos, menos o Egito, que tem 250 mil pessoas trabalhando na península, mandaram seus cidadãos sair de lá.
A medida criou uma imediata crise no Qatar, cuja única fronteira terrestre é com a Arábia Saudita e que importa cerca de 40% de sua comida dos sauditas. Moradores disseram que as pessoas estão estocando comida e dinheiro. Diplomatas do Qatar assim como seus cidadãos estavam correndo para saírem, dentro do prazo de 48 horas, de alguns países do Golfo no qual estavam morando.
Destaca-se na agressão comandada pelo Cairo e Riad a tentativa de censurar a imprensa árabe dissidente. Segundo o Newsweek
é provável que desta vez os estados do golfo exijam o fechamento do canal de TV Al Jazeera antes do início de qualquer negociação. Além disso, terão que diminuir o financiamento de veículos de imprensa, como Al Araby Al Jadeed (O novo árabe), criado originalmente para competir com a Al Jazeera e encabeçado pelo ex-político palestino de cidadania israelense Azmi Bishara.
Outras emissoras acusadas de incitação na imprensa dos rivais do Qatar no golfo incluem “Al Quds Al Arabi” (Jerusalém Árabe), o jornal fundado em Londres em 1989, um portal online de notícias árabe, “Arabi 21”, o site baseado em Londres “Middle East Eye” (Olho do Oriente Médio), que é a versão árabe do Huffington Post, dirigida pelo ex-diretora da Al Jazeera, Waddah Khanfar, assim como o site “Al Khaleej Al Jadeed” (o Novo Golfo).
Para solucionar a crise anterior, de 2014, o Qatar fechou seu canal televisivo voltado ao Egito, “Al Jazeera Masr”, que apoiava a irmandade muçulmana e se opunha ao governo do General Abdel Sisi. Mesmo assim, a perseguição à emissora não se encerrou. Em dezembro de 2016, Mahmud Hussein, jornalista egípcio do canal, foi preso pelo crime de espalhar “notícias falsas”, continuando preso até hoje.
A ação anti-Qatar conta também com o apoio explícito de Israel, cujo lobby nos EUA apoiou ativamente a medida. Financiador da reconstrução de Gaza desde a última guerra de Tel Aviv contra o território palestino, em 2014, o Qatar é o principal apoiador árabe do Hamas, que governa a faixa. Segundo o jornal israelense Haaretz
Nos anos recentes o Qatar tornou-se um dos últimos apoiadores do regime do Hamas. As relações do grupo com o Egito foram danificadas após o golpe de 2013 que trouxe os generais de volta ao poder no Cairo. O Irã reduziu seu apoio financeiro ao Hamas (apesar de ele ter sido parcialmente restaurado recentemente) devido à disputa entre xiitas e sunitas na guerra civil síria, enquanto o interesse da Turquia por Gaza diminuiu após o acordo de reconciliação do país com Israel e as complicações domesticas e estrangeiras do presidente Recep Tayyip Erdogan.
O pequeno e rico estado do golfo continuou a apoiar o Hamas e mais de uma vez se dispôs a ajudar a resolver faltas temporárias de recursos do grupo.
A política externa de Doha, cujos recursos financeiros bancaram diversas organizações e movimentos reacionários durante os levantes árabes de 2011, causou graves impactos negativos à região. Mas a exigência saudita e egípcia de que o Qatar feche ou mude a linha editorial da cadeia televisiva Al Jazeera significa um ataque às liberdades de expressão em toda a região. Paga o preço por ter apoiado o levante contra Mubarak no Egito. O ultimato para que rompa relações com o governo de Gaza é um ataque direto ao povo palestino, que deve ser denunciados. Será a população da faixa, estrangulada pelo bloqueio de terra e mar imposto pelos governos de Israel e Egito, quem mais sofrerá as consequências da ofensiva contra o Qatar.
Comentários