Por Betto della Santa
É ali que reside a chave para o enigma. O impulso criador vem é da pessoa. A obra é produto.
Florestan Fernandes
A nossa república está em polvorosa. E não podia ser por motivo mais distante das letras.
Mas ao dia 12 de Maio de 2017 morreu o crítico literário e cientista social Antonio Candido. Após um ano do golpe de Estado que assolou seu país de nascimento, em meio ao retorvelinho. Depois de longa e frutífera vida, diante de vasta e monumental obra, despedimo-nos de um ciclo histórico que se encerra com este que é, muito provavelmente, o último expoente dos intelectuais públicos cuja ressonância crítica fazia-se sentir para além dos terrenos acadêmico ou editorial. Um dos pressupostos mais caros a este que é, junto a Florestan Fernandes – seu amigo pessoal –, do mais alto cume alcançado pelo marxismo brasileiro (desde que me conheço por gente) foi o de que não é possível separar forma e conteúdo. Nisso Candido estava na boa companhia de autores tais como György Lukács, Walter Benjamin e, pasmem, Theodor Adorno. Digo, do espanto, pois é mais do que conhecida a natureza e os limites da escrita árdua e exigente do ensaísta alemão. Como foi possível que o mais sofisticado e consistente dentre os pensadores socialistas do país tenha sido justamente aquele que cultivou a prosa a mais fluida e a simplicidade a mais generosa? A chave para responder questão tão difícil talvez tenha algo a ver com o nexo de texto e contexto. Salvo ledo engano, um de seus legados, literários e políticos, decisivos à vida social e intelectual.
Antonio Candido foi – sem sombra de dúvida – o maior crítico literário iberoamericano de todos os tempos e, indisputavelmente, dos intérpretes mais originais que este país já conheceu. Foi pioneiro das gênese e devir da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, espírito do tempo que deu lugar à matéria da nascente modernidade hipertardia brasileira e suas particularidades, criou à revista Clima – a um só e mesmo tempo um projeto intelectual e uma formação cultural – e foi dos mais ilustres membros fundadores do Partido dos Trabalhadores, marco insoslaiável da vontade coletiva nacional e popular que auxiliou a construir verso a verso. Lecionou para muita gente, como Roberto Schwarz e Fernando Henrique Cardoso, deu à luz o Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo e foi responsável por estruturar a Licenciatura de Letras no que hoje constitui o Campus de Assis da Universidade Estadual Paulista, a UNESP. É o autor de obras tão seminais quanto, por exemplo, Os Parceiros do Rio Bonito, Formação da Literatura Brasileira, Direito à Literatura, A Educação pela Noite e Literatura e Sociedade. Sua morte ocorreu em um país dificilmente reconhecível para uma geração que ousou sonhar. Grande. Nos enlaces entre a teoria literária, a história social e a reflexão crítica redimensiona-se à política.
Muitas vozes se assomaram para ressaltar o quê – com efeito – foi uma trajetória singular. Da Seção Sindical da Associação Docente na USP, a Adusp, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp, dos jornais diários às revistas de ideias, dos círculos literários às organizações políticas sobressai a lembrança de uma figura ímpar e de predicados improváveis. Ninguém menos do que o próprio Candido é quem adorava reiterar que se tratava de uma pessoa que entremeava um temperamento conservador com comportamento liberal e ideário socialista… para, então, desatar a sorrir. Com uma caminhada quasi-centenária sobre este rincão do mundo Antonio conviveu com escravos libertos na meninice e assistiu ao nascimento de um povo-nação. Com lucidez fora do comum, e desde muito cedo, apreendeu a relação realmente existente entre linguagem viva e forma societal e, sobretudo, o lugar central que essa questão assume num país como o Brasil. Sua atitude de grandeza suscitava maestria sem nunca recair em soberba. Alçar vôos de expressão evitando baralhar a comunicação. Sofisticar argumentos sem fazer concessões. O verdadeiro mestre na periferia ensinou que complicado é ser simples. É simples ser complicado. Candido foi contemporâneo ao avanço do marxismo da forma e ao atraso da forma do marxismo.
Formação
Muito já foi dito sobre Candido. E decerto há muito ainda por dizer. Não há aqui nenhuma pretensão de originalidade, por um lado, nem disputa por qualquer espólio, por outro. A discrição e a serenidade com que o intelectual lavrou sua atividade na esfera pública desautorizariam uma tal atitude. Mas da mesma forma como o autor não abdicava da têmpera cordata tampouco dera de ombros às questões que considerava as fundamentais de seu tempo e espaço. E com relação ao tratamento que teve por ocasião de sua morte – diga-se, de passagem, com um consensual e semiuníssono sentido de pertença, que teria agradado a alma tão gregária e algo apaziguadora – quiçá valha a pena atentar para uma lacuna não menos importante. Depois de Candido é já bem verdade que não se pode conceber barreiras intransponíveis entre letras e política, autor e obra ou formação literária e processo histórico. Isso quer dizer tanto que os usos da literacia não estão por fora ou para além dos sistemas de relações sociais que os engendram quanto que não se pode reduzir nenhum enunciado formal a qualquer conteúdo social. A íntegra dialeticidade entre texto e contexto compõe um slogan fácil de anunciar mas programa difícil de cumprir. Eis, aí, o desafio. De chofre, contudo, já sabemos que isso, aqui, não pode ser mais do que um começo de conversa.
O presente ensaio começa por fazer uma afirmação desabusada a contrapêlo de nosso autor. Candido marxista. Não contente, ao que parece, vai além. Dos maiores. Em parte pelo ar da hora que respirou, e não menos pela personalidade que albergou, é provável que Candido declinasse, gentilmente, a ambos qualificativos. Ainda assim, não arredamos o pé desta rapadura. E por quê? Na primeira Tese de Marx sobre Feuerbach afirma-se, corajosamente, que a principal lacuna de todo materialismo até seus dias foi que as coisas, o real, o mundo sensível haviam sido tomados apenas sob a forma de objeto ou contemplação, mas não como atividade humana sensível, i.e., práxis, não subjetivamente. Por essa razão o lado ativo foi desenvolvido, não pelo materialismo, mas, ao revés, pelo idealismo. Sob inspiração desta mesma premissa pode-se vindicar não só que a análise histórica e social – inclusive política e econômica – avançou no Brasil mais do que na historiografia e na ciência política de cariz marxista através sobretudo da filosofia e da teoria cultural. E este torcicolo ideológico vai a mais. O avanço da interpretação marxista do Brasil conquistou mais – e melhor – terreno a partir do campus universitário em oposição aos partidos comunistas.1 Não seria demais remarcar à semelhança que o processo inglês adquire com a dita Nova Esquerda.2
É que a necessidade de desenvolver uma reflexão crítica sobre a realidade da semiperiferia do sistema-mundo torna a trajetória do marxismo latinoamericano algo próximo de um detóur. Foi Perry Anderson – de resto, inspiração explícita para o título desta peça, além de “objecto” e “subjecto” de nossos estudos – quem realizou a crítica do deslocamento que houve no marxismo europeu após-guerra para tópicos já epistemológicos e/ou estéticos.3 A necessidade férrea de o marxismo interpretar a América Latina e, particularmente, o Brasil, obstou que a investigação histórica e social seguisse nas mesmas trilhas de sua congênere do centro. Não só a filosofia e a crítica literária brasileiras foram desde a mais tenra infância marcadas por uma tal investigação, inclusive, e fundamentalmente, desde o campo do marxismo, como seu objetivo autodeclarado não foi outro, na grande maioria das vezes, senão o de refletir sobre a formação social brasileira. Enquanto a autorreivindicação de marxistas fez algo obtusa grande parte da intelectualidade dos partidos comunistas brasileiros, dogmática e determinista, a papagaiar um cânone ultramarino, deixou livre e solto o pensamento marxista desenvolvido para além das fronteiras destes partidos. Tanto Antonio Candido quanto Raymond Williams guardaram distância vis-à-vis à nomenclatura.
Clima
Da crítica do deslocamento ao deslocamento da crítica. Tal mudança de itinerário foi nada menos do que fundamental como pedra de toque para a apreensão do desenvolvimento desigual e combinado deste subcontinente.4 Ao que os epígonos da Terceira Internacional stalinizada nunca fizeram mais do que reconhecer tal qual genéricas “colônias e semicolônias” toda uma geração de, por assim dizer, “marxistas não-declarados”, opôs um esforço criativo e inovador de estudo aberto da obra de Karl Marx, reconstrução teórica e identificação tácita de que a filiação a seu método dialético só encontraria tradução realista, amiúde, na não-fidelidade à letra de seu texto. Para parafrasear um dos discípulos mais famosos de nosso mestre, não eram poucas as ideias de Marx que figuravam fora de lugar cá nesta porção do planeta.5 Uma leitura dogmática do velho mouro não só atentava contra o seu espírito crítico, como fazia soerguer verdadeiros obstáculos à interpretação mesma da aclimatação particular constituída pela formação social brasileira face à universalidade da sociedade produtora de mercadorias globalmente constituída em todas as partes. Neste aspecto o tímido fundador do Partido Socialista foi mais ortodoxo em matéria de marxismo do que o fiel legatário da tradição bolchevique no Brasil. Outra vez – cumpre notar – lá como cá.
O horizonte intelectual e político vivido por Candido hoje ressoa como idioma estrangeiro. Afinal, o autor fez parte de um grupo social específico de destacada camada intelectual no país. Formado em 1939 por estudantes universitários como Decio de Almeida, Paulo Emilio e Gilda de Mello – a futura esposa –, dentre outros, o chamado grupo Clima6 integrou jovens pensadores mediante uma específica modalidade de trabalho intelectual, a Crítica, aplicada a um crescente e vivaz sistema cultural em teatro, literatura, artes plásticas e cinema. O jovem crítico assistiu ruas de terra darem lugar a largas avenidas e bondes elétricos sucederem carros à tração. Ligou seu destino a grandes correntes de cultura que passaram daí a convulsionar e acelerar a vida social, política, econômica e cultural de uma então vibrante cidade-mundo tal qual veio a ser São Paulo. O desenvolvimento e a modernização da universidade brasileira, com o sentido pernicioso que estas formas adquirem no país, empalmou-se com a institucionalização e a profissionalização da atividade intelectual, que deixa a boemia dos cafés e o diletantismo dos círculos literários e passa a se especializar tecnicamente e qualificar sistematicamente em outro modo de produção da vida.
Foi preciso um tipo específico de audácia para livrar tal batalha cultural no Brasil de então. Não vai ser essa a hora ou mesmo o lugar para discorrer sobre o sentido da crítica, o conceito de intelectual ou a forma política cujo espírito, daí, se fez carne num ensaísta, educador, literato e sociólogo de mão cheia como Antonio Candido. Suas refinadas concepções de sistema literário, forma histórica e modo de vida são uma conquista intelectual e política inarredável para qualquer teoria crítica e revolucionária na zona de engajamento de interpretação e transformação do Brasil e do mundo. Uma impostação programática com esta visão social de mundo, absolutamente livre e igualitarista, democrática num sentido em que ainda resta por ser inventado – como a esta altura já deve ter ficado cristalinamente claro – só pode vir a ser enquanto um projeto coletivo à contramão da forma mercadoria e seu império. Todo um gênero de socialismo humanista a muitos alqueires de distância tanto do que fora o ardil da burocracia moscovita quanto do que é o vil imperialismo de Washington, Bruxelas e/ou Tóquio. Trata-se de uma grande – ainda que discreta – recusa ao desespero trágico e à resignação cínica. Um radicalismo com circunspecção. A polidez vivida, o fino trato e a elegância, no modo de pensar e sentir a vida, são constitutivas duma República de Letras que – mais que piedoso ideal – aspira a se verter em direção de vida… nem que, para tanto, seja necessário refundar à existência.
Que as novas jornadas de junho por vir façam jus à riqueza desta herança. Candidamente.
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1. Justiça seja feita à exceção à regra configurada pela primeira geração do movimento trotskista no Brasil. Gente como Mario Pedrosa, Livio Xavier e Herminio Saccheta desenvolveu interpretações com rigor e paixão sobre a formação social brasileira em muito anteriores àquelas que a historiografia-padrão sói reconhecer enquanto pioneiras a desafiar tal ramerrame do marxismo do Partido Comunista Brasileiro.
2. Há farta documentação sobre a formação da Nova Esquerda mais velha do mundo; a New Left inglesa.
3. ANDERSON, Perry. Considerações sobre o Marxismo Ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004.
4. Ver TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann, 2007; NOVACK, Georg. A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado na História. São Paulo: Sundermann, 2008 e LÖWY, Michael. A Política do Desenvolvimento Desigual e Combinado: a teoria da revolução permanente. São Paulo: Sundermann, 2015.
5. SCHWARZ, Roberto. As ideias fora de lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Editora 34, 1999.
6. A revista Clima foi importante divisor de águas na história social e cultural da São Paulo dos anos 40.
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