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TEORIA

Gramsci sem grilhões

Por Betto della Santa, Colunista do Blog Esquerda Online

«A crise consiste exatamente em que o velho morre e o novo não logra nascer –

é neste interregno que se verificam os fenômenos mórbidos os mais variados.»

(Gramsci QC3, P§34, p311. Einaudi: Torino, 1975)

«Un prigioniero è un predicatore della libertà.»

(Hebbel In: Grido del Popolo, 27 Maggio 1916)

— “Garamascón”. “Granusci”. “Gramasci”. À diferença dos dirigentes políticos contemporâneos – tal Leon ‘Trotsky’ ou Vladimir ‘Lenin’ – as pessoas que realmente conheceram Antonio Francesco Sebastiano Gramsci (1891-1937) em vida foram, de fato, muito poucas. Nada mais do que um círculo bastante diminuto. Não à-tôa seu sobrenome tenha sofrido tantas deformações no modo de grafar e soletrar, tal qual se diverte ‘Nino’ – como era apelidado pelos seus – ao recontar à cunhada Tatiana Schucht desde o cárcere fascista. O episódio do chiste ocorreu quando da prisão. “Sim, sou Antonio”, respondeu Gramsci. “Não pode ser”, replicou ‘o formidável tipo anarquista’, de pseudônimo “Único”. “Antonio Gramsci deve ser gigante, e não um homem tão pequenino”. Em silêncio, “Único” retirou-se a um canto, sentou e ficou, como Mario ante as ruínas de Cartago, a meditar sobre suas ilusões perdidas. As atividades de jornalista, parlamentar revolucionário e intelectual socialista, sempre na esfera pública, agigantaram o nome próprio, por um lado e, por outro, não deixaram de exigir uma prática política distinta dos codinomes, clandestinos, da Rússia.

Gramsci morreu há 80 anos. E merece ser lembrado. Mas – afinal – quem foi e o que fez  Gramsci?

Gramsci é filho do Sul do Sul. Ao lugar marginal ocupado pela Itália na Europa ocidental acrescia-se o fato de que sua terra natal, a Sardenha, fazia parte de sua porção mais atrasada. Dentre os grandes marxistas revolucionários do Séc. XX é um dos únicos de origem social subalterna. Lenin foi filho de um funcionário público de Astrakhan, Rosa Luxemburgo descendia de uma linhagem de comerciantes de madeiras da Galícia e Trotsky era herdeiro de proprietários de terras de Ianovka enquanto Gramsci, desde muito jovem, conviveu num ambiente de extrema miséria na sua casa em Ghilarza, além de possuir uma saúde muito precária – com hemorragias e convulsões – e ser portador de uma tuberculose vertebral, o Mal de Pott, que o impediu de crescer além dos 1,50m. As desilusões de “Único” não eram propriamente o escárnio de um maximalista algo desaforado. A figura de Gramsci inspirava, mesmo, cuidados. A mãe já chegara a encomendar terno e caixão por ocasião de uma de suas crises. À contrapelo, Gramsci partiu para a Universidade de Turim após ganhar uma bolsa de estudo parcial, na Faculdade de Letras, um trajeto que mudou sua vida.

Deixou o Mezzogiorno Insular e muito cedo ligou seu destino ao mundo do trabalho e ao mundo da cultura, simultaneamente, ao Norte da Península. A crítica teatral e a imprensa socialista – a fábrica e a universidade – o colocaram no mapa político e intelectual de um mundo turbulento, em ininterrupta transformação, que combinava crescimento dos monopólios na Europa ocidental e expansão imperial d’além-Mar ao franco avanço tecnológico, grande acumulação de capital, aumento das taxas de lucratividade e uma ora cada vez maior rivalidade militar interimperialista. O meridionalismo típico de sua concepção de mundo foi fragmentado, convulsionado e acelerado pelas enormes correntes de cultura, interesses e sentimentos que habitam toda cidade mundial. O salto do dialeto sardo ao idioma italiano, do campo à cidade, do Sul ao Norte e da margem ao centro, contudo, não fez com que ele se desvencilhasse do espírito popular criativo que o gestou. O movimento de formação da consciência da classe trabalhadora italiana e europeia àqueles anos foi também o pêndulo que o aproximou do marxismo numa época de guerras, crises e revoluções.

A política e as letras

Sua adesão à juventude socialista foi marcada por certo espírito de cisão com sua então estreita mentalidade sulista. Após participar da primeira disputa eleitoral na qual as massas camponesas e iletradas puderam votar – em sua cidade de origem – viu todas as baterias das máquinas políticas tradicionais, sardistas e não-sardistas, girarem contra as candidaturas socialistas. Após findar o conflito ítalo-turco contra o Império Otomano, cuja resultante foi a ocupação militar da Líbia, voltou-se contra o vil espetáculo – antipopular e antidemocrático – de fraude e violência que caracterizou tal contenda política. Seu primeiro artigo como membro da equipe de comunicação da secção turinense foi sobre a grande guerra mundial e a posição da Itália em seu interior. De comentários da situação nacional e internacional à vida popular e partidária e da polêmica política à crítica de costumes – da resenha literária à crítica teatral –, o jornalismo integral de Gramsci ganhou cada vez maior densidade e espaço nas cenas políticas e culturais turinense e piemontesa. O caminho aberto na universidade após o recrudescimento da atividade política chegou a seu fim. Da curta trajetória acadêmica diria que seu ponto alto foi tê-lo colocado em contacto estreito com um movimento de reforma intelectual e moral que visava colocar abaixo arcaicas estruturas sociais.

Após dez anos de atividade editorial em órgãos como Avanti!, Grido del Popolo e sob a rubrica de Sotto la Mole, Gramsci afirmou que já chegara a escrever «linhas bastantes para preencher quinze ou vinte volumes de quatrocentas páginas, mas eram escritos à ordem do dia e deveriam morrer com o findar do mesmo dia»; além de ter contribuído decisivamente para tornar popular o teatro moderno de Luigi Pirandello que, antes de suas intervenções, ora era gentilmente tolerado, ora era desabridamente esculhambado. A íntima conexão de seu vivo interesse pelas correntes de pensamento histórico-mundiais da moderna intelectualidade italiana, com as quais travou forte contacto na esfera acadêmica, e difusos sentimentos da vida nacional-popular extra-acadêmica, dos quais se aproximou com sua atividade jornalística, residia na compreensão de que a reflexão historiográfica, a questão literária e a crítica filosófica estão indissoluvelmente ligadas à política. Os anos de juventude chegam a seu ápice com o advento da vaga revolucionária continental que sacodem Rússia, Alemanha, Império Austro-Húngaro e, no bienio rosso de 1919-20, chega à Itália.

O movimento de conselhos de fábrica, que se alastra por toda Turim durante os anos de 1919 e 1920, vai ser decisivo na vida e obra de Gramsci. Com a fundação do jornal L’Ordine Nuovo – que atravessou diferentes momentos –, Gramsci tratou de desenvolver uma teoria e uma prática que tinham na questão da educação dos educadores um elemento constitutivo e essencial. Até sua ordem de prisão, em 1926, Gramsci passou por pelo menos três diversas fases de elaboração do problema enunciado, cristalinamente, no terceiro tópico das Teses sobre Feuerbach escritas por Marx e revisadas, por Engels, após sua morte. Em primeiro lugar dá-se certa prioridade ao que é a cisão – o antagonismo – isto é, a autoatividade dos trabalhadores face à ordem do capital, no próprio coração do processo de produção tipicamente capitalista. A educação então se confunde com aquilo que Karl Marx chamou de ‘autoeducação’, inclusive do próprio partido e sindicato, por seus próprios membros. A seguir, enxerga-se a necessidade de se educar, em geral, o recém-fundado – no Congresso de Livorno, em 1921 –, Partido Comunista Italiano e, em particular, à sua direção. A cimeira desta movimentação é concebida como necessidade de se educar o que seria o educador das massas subalternas, lugar este expresso por sua posição de dirigente central do PCI. É nesses anos que conceitos tão importantes quanto o de luta de hegemonias e filosofia da práxis vão florescer vividamente no pensamento, e na ação, do então jovem comunista internacionalista.

«Para sempre»

A ascensão do Partido Fascista ao poder na Itália mais cedo do que tarde fez prisioneiro o então eleito deputado comunista Antonio Gramsci. A fundação do Partido Comunista Italiano e a sua história são já sobejamente conhecidas e tem, na figura de Gramsci, um insoslaiável protagonista. O promotor do caso que levou o revolucionário italiano, dentre outros líderes, ao cárcere político, fez pesar contra ele uma violenta profusão de motivos. Quando o Ministério Público fez uso da palavra para se pronunciar sobre o comunista sardo a miséria da razão deu lugar a um absoluto, e vil, irracionalismo: «Por vinte anos nós devemos impedir que este cérebro funcione!». No dia de seu julgamento podia-se detectar voz alterada, ânimo acirrado e aquilo que, hoje, chamar-se-ia de discurso de ódio e cultura da violência. Seu nome político, indefectível, continua a ser fascismo. Este processo arrastou-se da prisão, em Novembro de 1926, até o julgamento, em Junho de 1928. O regime político de Benito Mussolini foi responsável por arrestar, aprisionar e transferir a um frágil e debilitado Antonio Gramsci, de cárcere em cárcere, de diferentes províncias e locais da Península Itálica, já em condições de autoevidente – e autodeclarada – tortura de nexo psicofísico.

Celas sem encanamento, sem aquecimento e sem luminosidade foram a oficina da história desde a qual Gramsci escreveu e reescreveu o que hoje conhecemos como as Cartas e os Cadernos do Cárcere. São, literalmente, aquilo que assim se anunciam: trocas de correspondência com amigos, cônjuge, familiares e camaradas, por um lado, e cadernos escolares de capa dura dispostos, pelo sistema carcerário, para objeto da reflexão e da crítica da pena do próprio Gramsci, sob atenta censura do regime. Gramsci dizia-se atormentado – fenômeno que o próprio sardo descrevia como típico dos encarcerados – por uma ideia-força, a de que seria necessário realizar-se ali algo «für ewig.» Trata-se de uma complexa concepção proveniente das letras alemãs, em particular de Goethe, cuja acepção mais aproximada seria a de uma preocupação “desinteressada” do que é mais imediato, mesmo particular, aquilo que não deixa de ser contingente e, portanto, transitório. É uma objetivação duradoura, uma direção de vida e/ou, por fim, algo «para sempre». Em carta à cunhada, Tatiana Schucht, expôs sua intenção: «Em resumo, pretendo, segundo um plano pré-estabelecido, me ocupar intensa e sistematicamente de algum tema que me absorva e centralize à minha vida interior.» O projeto intendido deu lugar à forma de um conjunto de anotações que, paradoxalmente, não deixam de ser provisórias: não-conclusas, não-findas. Mas as variedades de timbre e ritmo, a diversidade de tópicos, a sofisticação do trato e a aposta estratégica contidas nestes escritos não deixaram lugar a dúvida. Aqui a escrita não deveria desvanecer ao fim do dia.

Na última década de vida Gramsci refletiu, na prisão, sobre a derrota do movimento comunista revolucionário mundial e o falhanço histórico da revolução social na Europa ocidental. Reelaborou às questões de fundo de sua atividade política e intelectual pregressa, refez suas fórmulas e reviu a experiência vivida. Criou um novo léxico, para expressar a sua teoria social, e todo um universo de concepções destinadas a renovar às mais diversas esferas da vida. É toda uma nova linguagem que amiúde inventa – ou reinventa – palavras, fertilizando-as com novas adjudicações de sentido: hegemonia, bloco histórico, filosofia da práxis, concepção de mundo, revolução passiva, modo de vida, vontade coletiva, tradutibilidade, ético-político, Estado integral além de muitas, muitas outras. O destino da edição destes escritos, sua fortuna crítica, foi ganhar o mundo “grande e terrível”. Sua trajetória foi a de sucessivamente libertar-se de todas as suas estreitas constrições. Vencer o provincianismo tacanho que aprisiona. O economicismo corporativo que aparta. O reformismo político que restringe. O maximalismo verborrágico que aliena. E já todo e qualquer  novo cárcere.