Por: Manuel Afonso, de Lisboa, Portugal
Na últimas semanas, vários meios de comunicação internacionais têm elogiado o governo português, um governo do Partido Socialista apoiado por BE e PCP1 Segundo eles, o governo do “socialista” António Costa teria conseguido relançar a economia sem medidas de austeridade e aumentando os salários. Estas notícias foram celebradas sem reservas na esquerda internacional. No Brasil, figuras como Marcelo Freixo ou Lindberg Farias partilharam estas notícias nas redes sociais, apontando o governo português como exemplo. Será de facto assim?
A austeridade terminou?
Vejamos o que se passou. A imprensa assinala estes resultados porque, pela primeira vez em 40 anos, Portugal teve um défice orçamental abaixo dos 3% que é a meta imposta pela União Europeia. A obsessão com o défice é, em si mesma uma marca da austeridade. A UE exigia que, em 2016, o défice luso ficasse abaixo dos 2.7%. O governo PS conseguiu a proeza de ir além disso, alcançando os 2%. Como?
Não houve cortes nos salários e até houve reposição de parte dos cortes anteriores. Porém o mesmo não é verdade quanto ao salários indirecto, o chamado “estado social”. Segundo um estudo economista da CGTP2, Eugénio Rosa, “a redução do défice foi conseguida à custa da segurança social, da função pública, do investimento público e da contenção da despesa do SNS”(serviço nacional de saúde)”. Segundo ele, este resultado foi conseguido “através da manutenção do congelamento das remunerações e das carreiras dos trabalhadores Função Pública” e do “corte significativo do investimento público”. Já “o elevado excedente obtido pela Segurança Social foi obtido por meio da redução do numero de beneficiários de prestações sociais” – hoje apenas 28% dos desempregados recebem o subsídio de desemprego. Por fim, diz-nos Eugénio Rosa que no “SNS verificou-se em 2016 uma forte contenção da despesa, com efeitos inevitáveis nos serviços de saúde prestados à população”.
O PS devolveu o que a direita tirou?
Por sua vez, se o governo retira nos salários indiretos, fica aquém, na devolução dos salários directos. O salário mínimo em Portugal continua o mais reduzido da zona euro, com um valor de 557€. A devolução dos cortes feitos aos funcionários públicos também foi parcial. Se a direita tinha aumento o horário de trabalho dos funcionários públicos de 35 para 40h, o PS só reverteu essa medida para cerca de metade dos afectados.
De resto, não foram os cortes salariais a principal forma de esmagamento dos salários no período da Troika. O estrutural foi o ataque à legislação laboral. Os despedimentos foram liberalizados e as indemnizações por despedimento reduzidas. A contratação colectiva foi, na prática, destruída. O número de trabalhadores ao abrigo da contratação coletiva era perto de 2 milhões em 2008, hoje são 260 mil. O Governo PS recusa-se a mudar esta legislação.
Um governo amigo da banca estrangeira
O maior exemplo de como o governo português está longe de uma ruptura com o neo-liberalismo é a política para a banca. O PS tem entregado os bancos que faliram durante a crise, que foram saneados com fundos públicos, ao capital estrangeiro. Em 2015, a mando da UE, o Banif foi entregue ao gigante espanhol Santander. Já em 2017, o PS entregou o “Novo Banco” – o nome que dado ao maior banco privado português, o BES, após ter sido salvo pelo estado – ao fundo Norte-Americano Lone Star, a custo zero. Na banca pública, para reparar o buraco financeiro da Caixa Geral de Depósitos, resultante de empréstimos não cobrados a grandes grupos capitalistas, o governo vai injectar 4 mil milhoes de euros. A contrapartida é paga pelos trabalhadores bancários, uma vez que serão destruídos entre 2 a 3 mil postos de trabalho só neste banco.
As contradições de Bloco de Esquerda e PCP
Como é sabido BE e PCP apoiam este governo. Estes não deixam de ser críticos às medidas do governo. Quanto à poupança pública, tão celebrada internacionalmente, é a própria Mariana Mortágua, deputada do BE, que afirma que se trata de “uma política contraproducente (…) numa altura em que o investimento público é tão necessário”. Porém a deputada esquece que essa política decorre dos Orçamentos de Estado que foram aprovados com o seu voto, o do seu partido e do PCP!
Não é só o MAS que assinala estas contradições. O membro da direcção nacional do BE, Adelino Fortunato, trouxe a público algumas críticas importantes. O dirigente bloquista assinala que, segundo as sondagens, o PS cresce à custa da esquerda, enquanto, na prática, se compromete com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,da direita tradicional. Assinala ainda “o risco de acomodação dos partidos à esquerda do PS a uma situação de dependência política em relação ao governo” e “a perigosa paralisia das lutas dos trabalhadores e da capacidade reivindicativa”. Não por acaso, 2016 foi o ano com menos greves da última década.
É certo que a BE e PCP moveram-se em direcção ao PS para impedir um novo governo da direita. É justo e entendivel. Porém isto não obrigava a um acordo permanente com o PS. BE e PCP podiam ter votado favoravelmente à tomada de posse do governo sem se comprometer politicamente com ele e sem votar nos seus Orçamentos restritivos. Era possível, inclusive, nos momentos em que o PS se dispusesse a devolver salários ou fazer outras concessões à esquerda, dar o seu voto para fazer maioria. Desta forma teriam inclusive mais força para pressionar o PS, fosse no parlamento ou nas ruas.
Acima de tudo, caberia à esquerda fazer o que nunca tentou: entender-se entre si, sem o PS, para um projecto comum, independente dos grandes interesses capitalistas e das exigências da UE. Uma Frente BE-PCP, apoiada na luta nas ruas e nas empresas, podia não só conquistar mais direitos como disputar o poder. Aí sim, seríamos um exemplo a seguir.
1Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português, os dois maiores partidos da esquerda portuguesa;
2 Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, a maior central sindical do país, dirigida pelo Partido Comunista;
*Mantivemos, na publicação, a língua original do autor, português de Portugal.
Foto: Wikmedia | FraLiss
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