Por: Douglas Santos Alves, de Erechim, RS
Nas redes sociais, o recente debate sobre o episódio do turbante e a questão da apropriação cultural já está saturando a timeline de muitos. Não pretendo entrar na polêmica frontal, pois acho que ela está deslocada. No entanto, o modo como está sendo travada merece atenção.
No Brasil dos últimos anos parece haver certo reflorescimento das pautas e lutas contra o que a esquerda tem chamado de opressões (machismo, racismo e LGBTfobia). Isso, sem dúvida, é parte constitutiva da crise e polarização políticas atuais e já mostrou força em junho de 2013.
A recente polêmica, contudo, tem mostrado posicionamentos muito essencialistas, e por vezes até maniqueístas (isso não deve ser generalizado, há também debates muito ricos e frutíferos). O que chama a atenção, e particularmente me preocupa, é a lógica de fragmentação que norteia boa parte das postagens.
Uma das bases para isso é a atribuição de uma “homogeneidade” às identidades em questão. Com isso, pode-se traçar a famosa linha que separa de modo “radical” o Nós do Eles. O primeiro problema é que essa linha é, em boa parte, o que significa reconhecer que não totalmente, ilusória.
O outro ponto é que ela viabiliza o maniqueísmo decorrente do simplismo no debate. Este processo pode ser considerado parte da crise que atravessa o país e o mundo sob um aspecto mais ideológico. Ou seja, enquanto que o Estado burguês imputa às pessoas a igualdade formal, diluindo tudo e todos na forma do cidadão de direito e ocultando as reais diferenças e desigualdades, a crise que está se desenrolando desde ao menos 2007 e 2008 abriu espaço para uma rebelião contra esse sujeito necessário ao sistema. Movimentos organizados por identidades de gênero, orientação sexual, raça, e outros (mais visíveis em outros países), grupos subalternos, estão se organizando e lutando para romper essa homogeneidade e afirmar suas características e sua condição. Lutam contra a opressão.
Ilusória? Sim. Os grupos, movimentos e sujeitos sociais não são homogêneos, e corre-se o risco de ser autoritário e opressor ao se tentar impor tal homogeneidade. Particularmente quando se busca encontrá-la na aparência dos fenômenos. Aliás, debater fenômenos desde sua aparência é fugir da raiz das coisas, de sua essência e, portanto, nunca transformar a realidade que se quer criticar. O Nós e o Eles são atravessados por diversas clivagens e cortes. Há homens e mulheres, travestis e transexuais (e intersexuais também), há gays e lésbicas, paulistas, nordestinos e também imigrantes senegaleses, haitianos e sírios (não se deve esquecer que os refugiados são hoje um grande problema social e político não só na Europa). Há evangélicos, católicos e umbandistas (e também os ateus, e como classificar os ateus???) dentro de cada um dos grupos sociais em conflito. E há, ainda, as classes sociais, atravessando de fora a fora os grupos e segmentos apontados.
Isso não deve justificar uma postura ou resposta relativista, pois permitira cair no liberalismo (explícito ou enrustido) e afirmar que assim todos são iguais e, portanto, não há opressão (disso decorrem algumas defesas contrárias às cotas, lei contra o feminicídio ou a criminalização da homofobia). Existe, sim, violência, discriminação, preconceito e mesmo apropriação cultural. Porém, é muito comum um movimento ou grupo que luta contra a opressão também oprimir outro, e também o “outro” que está dentro do próprio grupo, aqueles dentro de sua base que não se encaixam perfeitamente nos requisitos da identidade. Infelizmente vejo todos os dias exemplos de LGBTfobia dentro do movimento feminista e negro (e do sindical mais ainda!).
O mesmo vale, sim, para o racismo e o machismo muito presentes no movimento LGBT. As esquerdas historicamente praticaram e ainda praticam essas formas de opressão, e há um ajuste de contas a ser feito para se poder reorganizar os movimentos socialistas em geral (ponto que falarei depois).
Maniqueísta? Também. Ao se simplificar demasiado os problemas e se trabalhar com essa ideia de homogeneidade total dentro dos grupos em conflito, o próximo passo passa a ser a luta do bem contra o mal. Essa é a forma seguinte que adquire o Nós e o Eles. Mas aqui um alerta: a opressão tem uma raiz histórico-estrutural, porém, ela se manifesta de modo imediato nas pequenas ações individuais. E combatê-la significa, também, combater suas manifestações imediatas, ou seja, aqueles comportamentos individuais em que ela se materializa, portanto, as pessoas que oprimem.
O fato é que essa é uma ponta do problema, e centrar a atuação de modo exclusivo nesta ponta implica em não atuar sobre a outra, aquela que é menos visível, mas que expressa como opressões diversas, por exemplo, se combinam com a exploração ou com a perpetuação de determinados grupos e classes no poder por séculos. Para não ficar na abstração basta mencionar o ajuste fiscal que o governo Temer e seu congresso corrupto estão impondo sobre os trabalhadores. Mulheres, negros e negras, LGBTs e outros segmentos estigmatizados são os primeiros a perderem seus empregos ou terem de trabalhar sob condições extremamente precárias. Enquanto isso o lucro dos grandes empresários é garantido às custas da opressão e da superexploração que nela se apoia.
Outro efeito dessa forma de travar o debate e a luta política é o viés autoritário e excludente. E esse possui efeitos muito danosos a médio e longo prazo. Tenho testemunhado pessoas sendo desautorizadas a falar e se posicionar simplesmente por não pertencerem ao suposto grupo homogêneo: “você não pertence aos nossos, então não pode opinar” (existem exemplos mais sutis também). Há uma confusão desenfreada entre lugar de fala, protagonismo na ação e debate político e programático.
Obviamente uma posição dentro de uma estrutura de poder determina como a pessoa vivencia a relação na qual está inserida, aliás, esse é um suposto do marxismo. Isso, sim, torna a experiência de opressão real para quem a sofre e determina o seu lugar de fala, uma vez que quem está na outra posição pode até ver, mas dificilmente irá sentir seus efeitos. Contudo, essa posição e essa experiência nela também é atravessada por outras relações, não sendo exclusiva e nem única. Porém, é essa posição na relação que define o sujeito social que combate a relação mesma, ou seja, ela determina o protagonismo e o protagonista.
Brancos podem (e penso que devem) apoiar a luta dos negros contra o racismo, mas não podem ser sua linha de frente e direção política. Do mesmo modo, negros podem (e devem) apoiar a luta dos LGBTs contra a homofobia, mas não possuem condições de ser seu centro de elaboração programática nem ponta de lança. Já o debate político, esse sim, acredito que deve ser público, inclusive para que se possa mostrar os pontos de reprodução da opressão entre os próprios grupos oprimidos. Para que viabilize identificar os pontos comuns na luta.
Para que se escape da dimensão mais imediata do fenômeno (o que gera corporativismo no sentido mais problemático do termo) e se avance para seus momentos menos visíveis e superficiais, lá onde residem inimigos e aliados potenciais. Inclusive o debate público é central também para que se possa localizar as contradições internas aos grupos. Será que todo gay é um aliado da causa gay? Será que toda mulher sofre de modo idêntico, e portanto é necessariamente, uma aliada das demais mulheres? Neste ponto, o recorte de classe social é absolutamente frutífero para a análise e ajuda a derrubar a ilusão de homogeneidade e essencialismo que mencionei.
Estes elementos todos parecem estar gerando o ponto que mais me preocupa, como dito antes, a fragmentação. Assim, negros podem se voltar contra mulheres brancas que podem atacar homens gays da classe média que não dão voz às lésbicas nordestinas que podem menosprezar em suas lutas as travestis negras. Nem mencionei os indígenas, que em diversos lugares do país (de grandes obras do PAC do governo anterior até pequenas cidades do interior no sul do Brasil) sofrem uma violência brutal.
E na lógica de “cada um no seu quadrado” o debate se perde entre argumentos de autoridade e deslegitimação dos que estão no lugar do “Eles”, os problemas tendem a ficar na superfície dos fenômenos. A força necessária para qualquer mudança se perde nas intermináveis divisões dos movimentos sociais (e dos partidos de esquerda tanto quanto). E as reformas trabalhista, previdenciária, do ensino médio, entre outras, seguem sendo implementado à toque de caixa, sacrificando direitos, serviços públicos e garantias sociais muito tímidas mas absolutamente necessárias à mulheres, negros, LGBTs, migrantes, etc.
Por fim, sobre a esquerda. Por diversas razões históricas e políticas, a esquerda não soube dar a devida importância para estes debates, quando não, e sob a influência do estalinismo, reproduziu diretamente a opressão. Alguns rancores são, sim, legítimos e alguns balanços, necessários. Contudo, se a desigualdade social e a exploração também se fundamentam (e muito) nas diferenças, então qualquer projeto de transformação social mais duradoura precisa dar conta de ambas as questões. Isso implica no esforço, colossal e geralmente cercado de pessimismo, de aproximar movimentos que combatem a opressão e as esquerdas.
Há que se repensar urgentemente as experiências mais antigas e recentes conduzidas sob a bandeira vermelha (do estalinismo ao governo do PT, mas também as tradições dissidentes), e há que se articular as diferentes bandeiras de negros, mulheres, LGBTs, imigrantes e migrantes, etc, em torno a um projeto capaz de viabilizar a unidade sem ocultar a especificidade a diferença. Há que se debater um programa que contemple a particularidade de cada segmento, e mais ainda, que contemple as especificidades dentro de um mesmo segmento, pois não há homogeneidade (inclusive dentro da classe trabalhadora).
Isso implica também em localizar os pontos comuns, os inimigos comuns, as táticas que servem para um segmento isolado e as que servem para muitos. Nenhum programa de um grupo, “classe” (uso os parênteses pois está no sentido abstrato, sendo que na realidade a classe nunca é um segmento particular, mas sempre heterogêneo e atravessado por cada um dos grupos aqui mencionados) ou segmento particular pode comportar uma transformação mais ampla e duradoura por não responder à totalidade das relações sociais. E, por este mesmo motivo, também não pode ser realizado, uma vez que sem isso não construirá as alianças necessárias para se obter força capaz de promover a mudança. A unidade é requisito essencial para se alcançar a transformação efetiva, e isso vale para movimentos, grupos e classes subalternos.
Então, é neste ponto que a fragmentação – gerada por debates simplistas, concepções essencialistas, posturas maniqueístas e discussões onde potenciais aliados são desautorizados a falar – mostra sua verdadeira essência: a inviabilização de qualquer horizonte real de mudança, o isolamento dos grupos e movimentos no pior espírito corporativo, as disputas entre sujeitos que poderiam marchar lado à lado e, por fim, a conservação da ordem ao invés de sua mudança. Assim, muitas vezes a suposta “radicalidade” na forma (geralmente expressa pelo sectarismo) esconde conservadorismo no conteúdo, ou ao menos nos seus efeitos últimos. Enquanto isso Temer, PMDB, PSDB, grande mídia, empresas e bancos comemoram cada medida aprovada.
Qual a saída? Se grupos, intelectuais, movimentos sociais, partidos e organizações políticas realmente acreditam que as pautas e questões defendidas têm importância (falo das bandeiras de segmentos oprimidos, mas também das bandeiras da esquerda socialista), então o melhor critério para demonstrar a importância que tais pautas merecem é o ambiente de debate respeitoso (não só o respeito diretamente pelo outro com quem se dialoga, mas antes o respeito pela pauta em si).
Se desejar mostrar para algum ativista uma diferença de concepção e convencê-lo de minha posição (o que exige estar aberto para ser convencido), ou simplesmente se quiser mostrar o quanto o problema que me atinge importa (e é difícil fazê-lo ver essa importância uma vez que ele não a sente de modo direto como eu), é preciso antes de tudo que ambos tenham condições de debater com franqueza e honestidade os acordos e divergências sem cometer o fratricídio tão comum hoje no país. E é necessário, sob o imperativo dos ataques que estão sendo aprovados, formular respostas concretas e conjuntas contra a direita que governa hoje.
Impedir o diálogo desautorizando aquele com quem se dialoga enfraquece a causa pela qual se luta, empobrece a causa pela qual o Outro luta e fortalece aquele que oprime e/ou explora ambos. A paciência, o respeito e a capacidade de ouvir tornaram-se elementos estratégicos.
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