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CULTURA

Negrume: a face da resistência

Por: Laís Santos Domingo e Lucas Vidal Silva Moraes, Brincantes dos Maracatus Nação Fortaleza e Nação Axé de Oxossi.

O maracatu é uma reelaboração da cultura Congo-angolana, que no Ceará tem anos de história e diversas peculiaridades. Muitos pensam haver Maracatu apenas em Pernambuco, por vezes utilizando de suas características para afirmar que no Ceará não há Maracatu. O texto vem elucidar um pouco sobre essa afirmativa, que não é verdadeira.

Mesmo antes da criação do Maracatu Az de Ouro, maracatu mais antigo ainda em atividade, já haviam relatos da brincadeira na década de 80 do século XIX em Fortaleza. Esse resgate foi possível através do trabalho de cronistas da época, que relatavam as festas populares que aconteciam na velha Fortaleza, tais como Otacílio de Azevedo (1992), José Tupinambá de Frota (1974), Rodolfo Teófilo (1974) Gustavo Barroso (1988), João Nogueira (1981) e Gustavo Barroso (1988). Já nesse período, os autores descreviam os brincantes com seus saiotes, dançando, cantando com seus rostos e corpos pintados de preto.

De acordo com relatos trazidos por Pedrina de Deus corroborando com Mario Henrique Thé Mota Carneiro (2007), Janote Pire Marques (2008), Ana Cláudia Rodrigues da Silva (2004), Danielle Cruz (2011), o Maracatu descende da procissão que culmina na coroação simbólica do Rei (Henrique Cariongo) e Rainha (Ginga) do Congo, que os negros escravizados de diversas cidades brasileiras faziam sob a proteção dos santos pretos na Igreja do Rosário dos Homens Pretos.

Pedrina também destaca que entre os séculos XVIII e XIIX havia coroação em diversos lugares de Fortaleza e em outras cidades, como Santa Quitéria, Quixeramobim, Barbalha, Icó, Crato e Aracati. Em uma mistura de religiosidade, cortejo e batuque, a corte negra sai pelas ruas da cidade parando em algumas casas a caminho da igreja onde ocorria o ponto alto da festa, quando os monarcas seriam coroados. Nesse dia via-se a ordem social se transfigurar, os negros aqui tratados como escravos e subalternos vestiam-se com todo o luxo e pompa para a ocasião, relembrando as histórias dos grandes reinos da África e ao som de batuques e dança eram coroados nas igrejas.

Com o processo de romanização do clero, movimento reformador que buscava aproximar o catolicismo brasileiro das diretrizes de Roma, as confrarias passaram a ser alvo de críticas da igreja, que as viam como um “desvio” das práticas católicas. Aliado a isso, Fortaleza passava por mudanças sociais e físicas, como a reurbanização de alguns setores da cidade, como o de transportes, clubes, comunicação e o plano urbanístico elaborado nas décadas de 1870 e 1880 por Adolfo Herbster, onde entre os intelectuais fortalezenses circulavam ideias de “modernidade”, “progresso” e “civilização”. Percebe-se, particularmente na década de 1870, a intenção de um maior controle social e também “moral” sobre a população, provocada não apenas pelo crescimento da cidade, mas por outros fatores como a idéia de “modernidade” presente na intelectualidade fortalezense e a atuação de um clero romanizado (conservador em relação aos costumes).

Também devem ser consideradas as intensas migrações em direção a Fortaleza, provocadas pela seca de 1877-79 que, segundo “denúncias” de jornais da época, provocaram o aumento de casos de roubos, vadiagem e prostituição. (MARQUES, 2008). Nesse contexto de controle e contenção, as irmandades passam a perder força, sendo proibidos de serem realizados os festejos dentro das igrejas. Contudo, essa proibição não impediu que os irmãos continuassem com a festa, migrando para outros lugares da cidade, passando a acontecer nas ruas, praças e terrenos baldios no ciclo natalino, ou no período do Carnaval.

Ao saírem das Igrejas, essas manifestações passam a ser fortemente criminalizadas, como exemplo, trazido também por Pedrina de Deus, a Resolução número 1278 de 11 de novembro de 1879 (presente no Museu do Ceará), como Ato Legislativo no mesmo ano em Fortaleza, a partir do qual “ficam proibidos os batuques nas ruas desta cidade e povoações de seu território. O dono da casa onde eles tiverem lugar será multado em 5 contos de reis ou 5 dias de prisão….”

Dentro desse contexto, o Código de Postura da cidade aprovado também em 1879 contém algumas observações destacadas por Pedrina, como o “Capítulo 6, dos Jogos e Reunião ilícitas – item 107”, que diz: “é proibida a reunião de escravos, filhos, família ou criados nas lojas, travessas e calçadas por mais de 15 minutos, para qualquer fim, sob pena de 2 mil reis de multa”. A Coroação e a Congada (origem do Maracatu) sofriam um rude golpe com objetivo de extermínio e passaram à clandestinidade.

Para Pedrina de Deus a pintura tradicional Maracatu do Ceará é o símbolo da astúcia e resistência dos negros daqui desde 11 de novembro de 1879. Quando o Código de Postura do Município de Fortaleza se transformou na Lei número 1278, proibiu os negros ou não de fazerem batuques e sambas nas ruas sob pena de cadeia, bordoadas e multa de 2 mil reis (Artigo 17). Para escapar da Lei, eles saiam no Cortejo do Rei do Congo e batucavam nas calçadas com o rosto pintado para dificultar/confundir a identificação e não, como diz uma elite cearense, “porque aqui não tinha negros”.

Segundo Marques (2008), o negrume também seria desdobramento de manifestações como o Boi e o Pastoril, dando novo sentido ao brinquedo, incorporando nele histórias da memória do povo negro, canto e dança, mas mantendo o mesmo cerne dos autos de um cortejo em homenagem aos reis africanos. Todos esses brinquedos tendo como marcas o uso do negrume, tinta preta feita de óleo mineral, vaselina, talco sem cheiro e pigmento preto que se faz presente na maioria dos maracatus da cidade de Fortaleza.

Mesmo não se tendo um consenso sobre como se iniciou o uso do negrume, alguns pesquisadores defendem que usá-lo é uma forma de resistência à falácia de que no Ceará não há negros. Há também aqueles que veem um maracatu como um brinquedo de máscara, onde o negrume assume o mesmo sentido das máscaras africanas. Seja qual for sua origem, nenhuma delas está ligada a um sentido negativo, como é a blackface. Pelo contrário, o negrume vem como uma forma de enaltecer e de marcar a presença desses povos no Ceará.

O blackface, tradução literal do inglês, significa “rosto preto”, surge nos Estados Unidos no começo do século XIX, quando atores brancos utilizavam carvão e outras pigmentações para pintar seus rostos de preto com a intenção de representar personagens afro-americanos. Contudo, essa “representação” era feita de modo a ridicularizar e bestializar o povo negro, trazendo para suas características fenotípicas, como boca, nariz e cabelos, uma conotação pejorativa, onde a representação retratavam-nos como ignorantes, ladrões, bêbados e vadios.

No Brasil, onde as questões raciais nos atingem objetiva e subjetivamente, é comum no período carnavalesco vermos pessoas utilizarem o blackface sobre a prerrogativa de estarem fantasiados. Os “personagens” retratados por essas pessoas, em sua maioria esmagadora brancas, são empregadas domésticas, negras malucas, baianas. Contudo, todas trazem em comum o tom de escárnio e zombaria.

O blackface é uma prática racista que busca desqualificar e inferiorizar a população negra e precisa ser combatida com força, pois naturaliza a opressão como forma de brincadeira. O negrume se diferencia ontologicamente do blackface, mesmo sendo associado a ele erroneamente por algumas pessoas. O ponto fundamental que dissocia totalmente o negrume à prática do blackface é a intensão. Enquanto a segunda é uma prática racista que desqualifica, a primeira enaltece a presença o povo negro. O negrume não vem como uma mímica, uma imitação vazia do outro, mas em uma forma de reverência, afirmação, consagração.

Muitas vezes somos interpelados por pesquisadores e estudantes universitárixs que não fazem parte da brincadeira quanto ao negrume. É importante deixar evidente que os questionamentos são saudáveis em qualquer processo cultural, mas igualar o negrume ao blackface é uma atitude colonizadora e fascista. Primeiro por igualar coisas tão distintas sem conhecer suas peculiaridades, tomando uma prática desenvolvida nos EUA como baliza para todas as outras. Segundo, pela sensação de que pintar o rosto de negro tenha que ter necessariamente uma conotação ruim, pois estar associada ao negro, a única carga que pode ter seria negativa.

O negrume deve ser, assim como afirma Pedrina de Deus, fortalecido, defendido, resgatado e estudado como um dado que desconstrói a versão de que o negro cearense foi passivo na sua luta cultural. As lutas e resistências que aqui se fizeram não podem ser relativizadas com falácias impositivas. Apenas um dos maracatus de Fortaleza não pinta o rosto de preto, todos os demais maracatus que também se localizam dentro de zonas periféricas de Fortaleza pintam seu rosto. Para os brincantes, isso não é uma ofensa, mas sim um resgate de suas raízes.

Esses parâmetros colonizadores nos quais medimos e julgamos a nossa cultura, além de ser fruto de uma visão branqueadora da vivência cotidiana dos brinquedores populares, deturpa elementos que são de matrizes africanas e indígenas, buscando desenraizá-los. Dentro do nosso estado é esse discurso que corrobora com a falácia de que no Ceará não há negros. Descontextualizar o negrume de suas questões históricas e de resistência dentro da cidade é perigoso e constitui uma visão colonial. Devemos debater o negrume e o maracatu em todas as suas nuances, mas a partir também da visão de quem vive e quem compõe a brincadeira. Viva ao maracatu cearense! Viva ao negrume, máscara de resistência!