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Nada nos prepara para a morte

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Por: Valério Arcary, colunista do Esquerda Online

Diante da morte somos convidados a pensar sobre a vida e seus sentidos. A notícia da morte cerebral de Dona Marisa Letícia comoveu a esquerda brasileira. Digo a esquerda, porque o mal estar não ficou restrito aos petistas. Comoveu porque foram impressionantes as reações iradas de ódio a Lula nas redes sociais. Revelou-se o grau de politização doentia de parcelas massivas da base social que foi às ruas pelo impeachment de Dilma Rousseff, e oferece apoio ao governo Temer.

A morte nos provoca pensar sobre o tempo.
Acontece que o tempo é vivido como uma experiência subjetiva.

As grandes concepções da história viram-se obrigadas e refletir sobre o tempo e suas medidas. Sempre foi assim, mesmo antes da história se constituir como ciência: as teleologias religiosas (ou laicas) foram, também, ciosas de estabelecer os seus critérios. Afinal, o tempo é a medida da vida e esta, sendo irredutível, oferece sentido à condição humana. O eterno retorno oriental, com a alternância de punição ou recompensa; o tempo de provação e espera do judaico-cristianismo, como antessala do combate final entre o bem e o mal, o Armagedon; o tempo hegeliano do progresso, como aventura da realização do Espírito.

O tempo não para. Mas a compreensão do tempo, também, muda. O elogio do tempo presente como a única medida da experiência humana, ou a renúncia ao amanhã, o carpe diem, é uma escolha moral. O sacrifício do presente em troca de uma recompensa no futuro (seja ela moral, a salvação, ou material, o enriquecimento) é, também, uma escolha moral. Já o marxismo abraça uma moral que é outra: a indivisibilidade dos fins e dos meios. Os meios devem estar à altura dos fins. Os marxistas atribuem, também, qualidades ao tempo: em uma palavra, como igualitaristas, antes de mais nada, temos pressa, porque sabemos que, na escala do atraso e lentidão das longas durações da transformação histórica, todas as revoluções ocorreram, em alguma maneira, atrasadas, portanto, demasiado tarde, tão grande a dívida de injustiça a ser resgatada.

Mesmo quando as revoluções foram, politicamente, prematuras.
Por isso, a esperança é o sentimento político mais bonito.

Para ilustrar, uma fábula: ensina uma sabedoria antiga que Zeus enviou Pandora para castigar Prometeu, que tinha roubado o fogo para oferecer a vida aos seres humanos. Tendo, por isso, contrariado os desígnios dos Deuses, foi condenado a sofrer todas as maldições mais atrozes, até que Zeus, tomado de piedade, decidiu fechar a caixa de Pandora, quando no seu interior só restava a última, porém a mais terrível das maldições. A Humanidade foi assim poupada do pior dos males, o mais invisível e o mais perturbador, a perda da esperança.

Porque há coisas que não se podem perder.
Mesmo diante da maior de todas as perdas.
Nada nos prepara para a morte.

Foto: EBC

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lula / marisa / morte / pt