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BRASIL

São Paulo invadida

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*Parte do Especial Aniversário de São Paulo

Por: Carolina Freitas, de São Paulo, SP

Crianças jogando bola numa favela sob velhos trilhos sobressaem de cima dos viadutos dos Campos Elíseos, antigo bairro nobre de casarões. Um estádio luxuoso em Itaquera, com a marca estampada da empresa da delação premiada, distorce a linha de casas e barracos sobre córregos, aos olhos do povo cansado, amontoado nas janelas do trem, indo para a Zona Leste às seis da tarde depois do trabalho. Mulheres haitianas estendem roupas nas janelas dos cortiços do Glicério, em ruas que alagam nas chuvas. Mães carregam potes e sacolas na fila de visitas do cadeião de Pinheiros ao sábado, quando, ao lado, carros e caminhões correm na Marginal Tietê disputam vorazmente com jovens trabalhadores sobre motos o tempo no espaço.

Empreendimentos bilionários são construídos na outra Marginal, a Pinheiros. Lá dentro? Shopping, escritório, massagem, jardim de infância, piscina, quadra de tênis e varanda gourmet. Mais para frente? Outra favela, no barranco da margem do rio, tapada pelo Cingapura, de janelas pequenas e rachaduras. Mais para frente? A ilha verde de prédios modernistas da cidade universitária, onde a entrada de estudantes negros e pobres é limitada e as moças da São Remo só podem passar nos portões para ir e voltar do serviço de faxina nos seus salões.

Ocupações de terrenos quase rurais, onde só chegam botecos e igrejas nos jardins de São Mateus e do Grajaú. Mansões que valem alguns milhões em outros jardins, arborizados, onde mora o prefeito da cidade. Ponte milionária para o milionário ir trabalhar.

Em cima dela? Um pixo de tinta preta, que grita: São Paulo foi invadida!

São Paulo, você, em nenhum de seus 463 anos, deixou de ser o mote da disputa entre escravizado e senhor, entre patrão e trabalhador, entre rapa e camelô, entre sem teto e incorporador, entre proprietário e pichador, entre “serviço” e “social” no elevador, entre povo amontoado no trem e governador.

A metrópole é o meio onde as classes vivem, mas também como vivem. O que fazem, veem, pensam, se organizam, em quanto tempo, por que trajeto… a cidade é responsável por todas as possíveis definições sobre a vida cotidiana, nos produzindo e sendo produzida por nós.

Os condomínios gradeados observados por câmeras, as paisagens alteradas por grandes obras, o abandono de bairros inteiros relegados ao esquecimento e marcados pela sobrevivência, o trânsito de carros e de trabalhadores apressados nos ônibus, tudo isso é a realidade material a partir de onde se produzem centenas de discursos. Especialistas, acadêmicos, técnicos, políticos, todos sabem o que São Paulo deve “fazer” e apresentam suas receitas à maior e mais rica metrópole da América do Sul.

O silêncio que existe em meio ao caos sonoro de buzinas e opiniões é o da gente trabalhadora que é jogada radicalmente às entranhas dessa cidade, ao modo como ela “dita’ ser necessário viver (ela vai ditar, seja você um jovem negro da Cidade Tiradentes ou um branco herdeiro do Morumbi). O direito à cidade, como quis explicar uma vez um filósofo, é um horizonte, é o que chamamos estratégia revolucionária. As cidades que povoam com força cada vez maior a face do planeta são a fonte do imaginário de uma sociedade sem classes, rompida profundamente com esta em que vivemos.

Por isso, para que possamos avançar e, um dia, vivermos a transição para outro modo de vida e de espaço, é preciso compreender, em primeiro lugar, que o condomínio-shopping Cidade Jardim e a favela do Cangaíba são elementos de uma mesma análise, resultados de um mesmo motor que produz São Paulo e suas permanentes transformações.
Nas disputas espaciais na metrópole, o que está em jogo é se a cidade é um bolo a ser fatiado entre empresários, industriais, incorporadores e investidores, ou se ela existe para que o povo possa viver. E viver significa, nesse sentido, algo mais amplo do que simplesmente ter um teto para morar. Apesar disso, a moradia segue sendo um direito elementar, conquistado a duras penas, ainda muito longe de ser alcançado para milhares de habitantes de São Paulo.

Mais de 200 mil pessoas preenchem na cidade as estatísticas do chamado “déficit habitacional”, índice por onde se mede a demanda de moradia (na concepção dos governos, um teto e quatro paredes). Quem compõe esses dados vive em habitações multifamiliares, precárias, improvisadas, ou pagam alugueis incompatíveis com sua renda.
Dessa enorme demanda, os governos dizem ser preciso construir mais e mais casas. As alternativas para a população pobre permanecem restritas. Houve um ciclo de expansão econômica no Brasil que nos últimos anos apostou na aplicação de capitais à construção civil, à produção habitacional em larga escala, principalmente por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida.

Como na época da ditadura e do Banco Nacional de Habitação, que criou as Cohabs e os primeiros grandes conjuntos habitacionais nas periferias de São Paulo, o discurso hegemônico diz que é preciso construir casas. Pode não parecer, mas o déficit habitacional sempre foi uma arma ideológica importantíssima dos governos para alavancar a indústria da construção e de materiais.

Ao mesmo tempo em que governantes trabalham em função dos seus aliados industriais, fazem esconder a realidade fundiária de São Paulo: há muito mais lugar vazio do que gente que precisa morar. Essa lógica, a mais fundamental da segregação espacial de classes na cidade, não aparece explicitamente; a habitação como negócio segue se adaptando e criando novas fórmulas, enquanto grandes áreas, terrenos, prédios, galpões, glebas aguardam o “bote” do mercado e das políticas que o governo aplica para incrementarem seu valor.

Projetos para territórios pouco valorizados passam a valoriza-los exponencialmente em questão de meses, expulsando antigos moradores; operações urbanas capturam as riquezas produzidas com dinheiro do Estado e a força dos trabalhadores; obras públicas são reservadas especialmente à adaptação de áreas de novos condomínios luxuosos. Esse movimento de captura de valores no espaço, ou seja, de apropriação privada da cidade, determinou ao longo dos últimos anos, sem dúvida, um crescimento no número de ocupações de moradia em bairros da periferia e do centro.

E o Programa Minha Casa, Minha Vida vive hoje as consequências da crise econômica e política brasileira. Deixará de viabilizar moradia de interesse social para famílias de baixa renda, como ficou notado nos decretos apressados do governo Temer. Com todas as críticas ao Programa, que em essência favorece famílias de renda média e relega a áreas não urbanizadas e sem estrutura as moradias de interesse social, a verdade é que ele tem seu fim em meio à instabilidade geral e novos modelos de angariar capital via produção imobiliária precisam substituir esse vácuo.

Solucionar a crise habitacional deixada pelo esmorecimento do MCMV não é interessante ao mercado. Aplicar o IPTU progressivo para imóveis ociosos, decretar desapropriações para fins de moradia popular, entre outras medidas de prerrogativa da prefeitura, se distanciam ainda mais da realidade. A retomada da extração de renda pela valorização imobiliária seguirá na gestão do novo prefeito.

João Dória, o prefeito invasor de um terreno enorme em Campos do Jordão, réu condenado na Justiça a devolver a área pública roubada, é enfático e direto em suas declarações e na sua plataforma de governo: pretende extirpar aqueles que lutam para sobreviver e respirar na cidade. Inicia o mandato com a prisão da liderança do movimento de moradia na cidade, Guilherme Boulos, e de José Ferreira, trabalhador sem teto que ficou, junto com outras 600 famílias, ao relento e sob a chuva depois de uma violenta reintegração de posse num terreno em São Mateus, região tradicionalmente esquecida pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e altamente lembrada pela de Segurança Pública.

Há uma nuance entre Dória e o antecessor na estratégia de governar o processo de capitalização da cidade. Enquanto Haddad instituiu políticas urbanas que favoreceram setores da classe média e da elite habitantes das regiões centrais, para que sentissem o “valor” que a cidade pode oferecer a quem pode pagar e morar, sendo inclusive Pinheiros a região que mais o agradeceu eleitoralmente por seu mandato, Dória defende um projeto explicitamente beligerante e antiquado até mesmo ao mercado mundial de “cidades-empreendedoras”. Cobrir grafites e pichações com a obcecada cor cinza é o exemplo mais nítido.

Por outro lado, a edição de decreto para retirar cobertores do povo em situação de rua (que cresce em meio à crise econômica) e equipar e sofisticar os poderes da Guarda Civil Metropolitana para controlar os setores mais pauperizados e proletarizados da metrópole são exemplos de continuidade de um projeto hegemônico para a cidade. Mas, de todas as situações exemplares que podemos elencar aqui para caracterizar como será a continuidade e o avanço da “metrópole-mercadoria”, as parcerias público-privadas da habitação anunciadas pelo ex e pelo novo prefeito merecem nossa atenção.

Há, para grandes obras de infraestrutura urbana, uma série de parcerias público-privadas que valorizaram áreas inteiras na cidade para o desenvolvimento do mercado imobiliário, expulsando populações pobres de seus locais de vida. Operação Urbana Água Espraiada, Operação Urbana Centro, Operação Urbana Faria Lima, são projetos há anos conspirados entre governos, construtoras, incorporadoras, fundos de investimento.

Agora, por iniciativa da Casa Paulista (agência de “fomento habitacional” criada por Alckmin), governo estadual e governo municipal, a habitação também está sendo alvo das parcerias público-privadas. A primeira experiência na cidade será numa área do centro ocupada em grande monta pela população em situação de rua e encortiçados, no bairro da Luz. Como novidade, a PPP da habitação cede às empresas concessionárias poderes de desapropriação de casas, gestão integral do projeto, administração do cadastro e da demanda dos inscritos, gestão condominial dos edifícios quando prontos, entre outras prerrogativas legalmente restritas ao poder público, que tem como finalidade garantir na prática o direito à moradia.

João Dória, animado pela aliança com seu padrinho governador e as empresas envolvidas no projetoi, está estruturando uma secretaria especial de parcerias público-privadas, e prometeu acabar de vez com a fila de 120 mil inscritos em programas de moradia de interesse social com o que chama “modernização” da gestão dos problemas da cidade. Evidentemente, não faz sentido que os mesmos interesses de valorização e especulação das terras seja responsável pela gestão e realização do direito de morar em São Paulo. É aí que se percebe que “construir casas” não é sinônimo de garantir o direito à moradia.

Os invasores da terra da garoa e do trabalho, que há séculos colonizam a vida do povo, não param de reinventar suas armas, pintando de cinza os gritos de resistência espalhados pela cidade. Mas esses verdadeiros invasores do capital têm contra seus negócios o maior dos riscos de suas previsões especulativas: um povo que existe e persiste em ocupar São Paulo, terra marcada pela história de resistência e luta.