Por Vicente Marconi, Londres, Grã-Bretanha
Na manhã desta terça-feira, 17/Jan, a Grã-Bretanha e a Europa pararam para ouvir o pronunciamento da Primeira Ministra Theresa May. Foi a primeira declaração oficial do governo, que vinha sendo amplamente criticado por não apontar uma estratégia sobre o encaminhamento para o Brexit. Na verdade, foi um movimento de May para mostrar iniciativa política, já que a derrota de seu recurso na Suprema Corte é dada como certa nos próximos dias[1] – e o governo seria obrigado a apresentar um esboço ao parlamento antes de disparar o A50[2].
A declaração, realizada fora do Parlamento, não trouxe nenhuma grande surpresa. May apresentou enfaticamente alguns pontos centrais para marcar uma posição política – mas ainda deixou muita coisa dúbia ou imprecisa. A mensagem principal foi que o maior objetivo do governo é fechar as fronteiras para a livre movimentação de pessoas, e para isso está disposto a deixar a área de livre mercado europeu. Porém, disse que um de seus principais objetivos é garantir a continuidade da livre movimentação de serviços e capitais. Durante todo o discurso, tratou a União Européia como “parceiro estratégico”, e ao mesmo tempo adotou posturas ameaçadoras, dizendo que “melhor sair sem acordo que com um acordo ruim”. Chegou ao limite do surreal ao sugerir que, caso a UE inviabilize um acordo, transformaria a economia em um “paraíso fiscal” para disputar os investimentos. Essa bravata foi duramente atacada pelo líder do Labour Party, Jeremy Corbyn, pois mostra o descaso do governo Conservador com os serviços públicos e regulações sociais. Em suma, Theresa May apresentou um projeto de hard brexit sinalizando com flexibilizações que atendam interesses da burguesia imperialista pró-UE.
O governo prometeu que qualquer acordo será submetido ao parlamento para aprovação. Disse que espera conduzir uma transição gradual, e que manterá o parlamento e a sociedade a par da evolução das negociações. Falou que vai lutar pela manutenção do mínimo possível de barreiras alfandegárias, buscando inclusive uma integração ainda maior para o capital financeiro de Londres. Sinalizou que as restrições à imigração serão menores naquelas patrocinadas pelas grandes empresas, e que os cidadãos europeus já residentes teriam seus direitos atuais preservados (desde que “haja reciprocidade” por parte dos países do bloco com os cidadãos britânicos neles residentes).
O UKIP parabenizou May, e o seu principal dirigente Nigel Farage disse que “a PM disse coisas que eu sempre defendi, e costumava ser ridicularizado por isso”. Os tablóides sensacionalistas (populistas de direita, em sua ampla maioria) celebram o discurso e colocam a PM como uma “nova Tatcher”. O mercado financeiro respirou aliviado – pelo anúncio das mediações do já esperado hard brexit – e a Libra subiu durante e após o discurso, recuperando a queda dos dias anteriores ao pronunciamento. Os governos europeus e da UE apontaram os pontos contraditórios nos objetivos de May e dizem que o que este projeto é inviável. O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, falou no Parlamento Europeu que “seria bom que nossos parceiros compreendessem que não há espaço para a tática do ‘pegue apenas o que quiser’ em nossas futuras negociações” – ao mesmo que dizia ter gostado da postura da PM, “mais Churchill e menos Trump”. A maioria dos analistas burgueses (imprensa, entidades financeiras e empresariais) apontou dubiedades e contradições nos objetivos expressados pelo governo, prevendo um longo e duro período de negociações.
Reino Unido?
No dia seguinte ao pronunciamento, o prefeito de Londres, Sadiq Khan, afirmou em Davos que a unidade do Reino Unido está amaeçada. E tem razão em afirmar isso. Holyrood e o SNP[3] já haviam afirmado que a Escócia não aceitaria um hard brexit, e um novo plebiscito sobre a separação do país é considerado cada vez mais provável. Vale lembrar que em 2014 um referendo sobre a independência definiu a permanência da Escócia no Reino Unido por 55 a 45%, onde o principal argumento dos unionistas foi que a Escócia sairia da UE caso deixasse o Reino Unido. E que 62% do eleitorado escocês votou pela permanência na UE no referendo do Brexit. Nicola Surgeon, a líder do SNP, disse logo após o pronunciamento de May que um novo referendo de independência está “indubitavelmente mais próximo”.
Outra crise que vem crescendo nos últimos dias é com a Irlanda do Norte. Um hard brexit implicaria a necessidade de aumento de controle na fronteira com a Irlanda. Por mais que este tema tenha sido abordado por May em seu pronunciamento, onde ela afirmou que buscaria evitar esta situação, é considerada como uma das mediações que podem não ser alcançadas com este hard brexit. Esse é um tema extremamente delicado no país, pois envolve diretamente a questão nacional irlandesa e o controle britânico do norte da ilha. Desde 1998, no chamado “Acordo da Sexta-Feira Santa”, o governo de Stormont[4] é feito através de um comitê envolvendo os partidos unionista (DUP) e republicano nacionalista irlandês (Sinn Fein). Esta executiva tem relativa autonomia, e na configuração atual contava com leve maioria unionista. Há poucos dias, o Sinn Fein rompeu o governo após um escândalo de corrupção, recusou acordos para um novo gabinete e novas eleições estão marcadas para o início de março. Para dar uma idéia do clima, o lançamento da campanha do SF foi na sede de um clube que surgiu para apoiar famílias de presos do IRA.
Embora os motivos alegados para a ruptura tenham sido ligados a temas locais e corrupção, esta situação é indissociável da questão do Brexit. O ex “vice primeiro-ministro” [5](o que renunciou há pouco) Martin McGuiness publicou durante o pronunciamento de May que seu hard brexit “ergueria de volta as fronteiras do passado, o que é inaceitável”. Todas as declarações de líderes do SF e setores nacionalistas ou republicanos vão no mesmo sentido. No referendo do Brexit, 56% dos eleitores da Irlanda do Norte votaram por permanecer na UE. Não está colocada, como na Escócia, a possibilidade de um referendo de independência no curto ou médio prazo. Mas provavelmente é uma crise com forte tendência de crescimento, levando ainda mais instabilidade a toda essa situação local e geral.
A questão da imigração
A questão da imigração ocupa hoje um papel central na política global. Junto com liberdades individuais e direitos humanos, é um tema por onde passa boa parte da propaganda de extrema-direita. Esta vem ganhando espaço em várias partes do mundo com um discurso de ódio e intolerância, baseado em preconceitos, colcando a culpa em imigrantes, refugiados ou setores oprimidos pelas mazelas causadas pelos planos de austeridade dos governos neoliberais. Isso explica a simbologia do muro na fronteira mexicana e expulsão de muçulmanos na campanha de Trump, a guerra aos refugiados e imigrantes da campanha do Brexit e a campanha de Le Pen na França.
Por isso, é muito importante que toda a esquerda encare esse assunto com a seriedade que merece. No Reino Unido, importantes organizações da esquerda capitulam à campanha ideológica da direita e tergiversam sobre o livre trânsito de trabalhadores. Exerceram uma enorme pressão sobre Jeremy Corbyn para que defendesse o fechamento das fronteiras. Em um recente pronunciamento à imprensa, onde era esperado que o líder do Labour recuasse e assumisse esta posição, ele surpreendeu mantendo seu discurso[6]. Porém, agora, não criticou com veemência este ponto do pronunciamento de May. Não encarar de frente essa questão, capitulando ao discurso xenófobo da extrema-direita, desarma as correntes de esquerda socialista na disputa da direção da classe trabalhadora no próximo período.
Considerações Finais
É provável que o governo britânico considere um novo cenário geo-político regional e global, com o governo Trump e vitórias da extrema-direita em países europeus (como a França, Itália ou mesmo Alemanha) – e que isso empurre os governos da UE a recuar na exigência de livre movimentação. Isso faria sentido, pois manteria a estratégia de May de aproveitar os “benefícios” de estar no mercado comum e de satisfazer o sentimento anti-imigração vitorioso no referendo. Mas isso não é a realidade colocada – ainda.
De forma geral, o pronunciamento de Theresa May sinalizou algumas tendências, mas não mostrou um plano claro de como será o país após o Brexit. Há uma distância enorme entre os objetivos apresentados pela PM e o que hoje parece tangível de ser alcançado.
Equanto isso, os planos de “austeridade” seguem a todo vapor, penalizando cada vez mais a população mais pobre. O filme Eu, Daniel Blake do cineasta inglês Ken Loach é um bom retrato disso. No início desse ano, a Cruz Vermelha declarou o NHS, que já foi referência mundial em serviço de saúde pública, em “estado de calamidade”. E mais cortes virão.
Os trabalhadores começam a responder, ainda que lentamente, à situação colocada. O número de greves em 2016 foi singificativamente maior que o do ano anterior – mesmo que ainda pequeno. Mas a tendência é de crescimento. Na segunda metade de 2016 e início de 2017 o país viu greves nos setores de transportes (trens e metrô), aviação, correios – e mais lutas estão sendo construídas. Uma greve de trens e metrô parou Londres, já nesse início de ano, e o apoio popular ao movimento foi acima do esperado.
No terreno político, os maiores partidos estão divididos, e a esquerda se fortalece em torno a Jeremy Corbyn. Duas eleições parlamentares em fevereiro[7] colocarão à prova a liderança de Corbyn no LP, assim como a eleição do sindicato Unite(o maior do país). As lutas sociais que crescem poderão ser seu ponto de apoio e facilitar o desenvolvimento de um perfil anti-austeridade, anti-capitalista e antirracista. É um processo em curso, que dada ao momento que vive a Europa e o mundo, pode ter resultados bem positivos.
[1] A decisão deve ser anunciada até o dia 23/Jan
[2] Artigo 50: Início oficial do processo de saída de um país da União Européia
[3] Holyrood: Parlamento escocês localizado em Edimburgo, em bairro do mesmo nome.
SNP: Partido Nacionalista Escocês, detém a maioria das cadeiras no parlamento escocês e principal (quase único) representante do país no parlamento britânico.
[4] Parlamento da Irlanda do Norte, em Belfast.
[5] Deputy First Minister – mas na estrutura de governo da Irlanda do Norte com status muito semelhante ao First Minister
[6] No pronunciamento de Corbyn no dia 13-Jan, figuras próximas a ele haviam sinalizado à imprensa que o líder do LP defenderia a restrição. Entre eles Len McCluskey, secretário-geral do Unite (maior sindicato do país), que luta por sua reeleição no cargo. Corbyn manteve sua posição, dizendo que o problema “não são os imigrantes, mas as empresas que se aproveitam disso para baixar os salários”, e lançou a proposta de teto salarial no país.
[7] Chamadas by elections, que ocorrem quando o parlamentar de um distrito renuncia.
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