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OPRESSÕES

Sobre o “lugar de fala”

Por: Pablo Ortellado, de São Paulo, SP.

[Fiz um post fechado para amigos refletindo sobre a história e o sentido “original” do conceito de lugar de fala e sugeriram que ele fosse publicado como nota para referência futura e para recolher sugestões de outros autores relevantes. Agradeço aos amigos que colaboraram com sugestões]

Se não perdi nada da história do conceito, a ideia de valorizar um lugar de fala nasce da crítica da representação e da epistemologia dos subordinados, isto é, da ideia de que os atores sociais devem falar por si mesmos e de que há diferentes efeitos de verdade a depender de quem fala.

A premissa, neste último caso, é que as hierarquias sociais produzem efeitos de verdade diferentes: eles são mais intensos, por exemplo, quando um discurso é enunciado por um homem branco mais velho do que quando é enunciado por uma mulher negra mais jovem, de quem o preconceito espera ignorância ou irracionalidade. A constatação desses diferentes efeitos de verdade que variam segundo o lugar de fala faz com que um discurso crítico sobre a condição subalterna da mulher, quando enunciado por um homem, entre numa espécie de contradição performativa – como se ele negasse, na prática, o seu conteúdo. Isso acontece porque o discurso feminista enunciado pelo homem pressupõe e, implicitamente referenda, a hierarquia dos efeitos de verdade que dá mais autoridade ao homem do que à mulher. Por esse motivo, diz o argumento, os discursos sobre a condição da mulher devem ser enunciados por mulheres, aqueles sobre a condição dos negros por negros e assim por diante, de maneira que tanto o conteúdo como a enunciação sejam emancipatórios.

O contraponto epistemológico positivo do argumento é o da autenticidade e o do conhecimento respaldado pela experiência direta – isto é, a ideia de que ao contrário do que pensa o preconceito, que desqualifica quem fala por vir do lado de baixo da hierarquia social, é justamente essa condição subalterna que qualifica o discurso sobre a opressão, porque o faz com conhecimento de causa, com autenticidade, com a convicção e a verdade de quem experenciou, sem mediação.

O argumento é um pouco mais sofisticado dependendo para onde se vai nessa história que tem raízes na teoria do posicionamento na psicologia social e na antropologia e nas reflexões epistemológicas do pós-estruturalismo francês (Deleuze e Foucault) e se desdobra, em seguida e de muitas maneiras, na epistemologia feminista e nas reflexões práticas de diversos grupos subalternos. Ela converge também com as reflexões mais ou menos paralelas sobre as especificidades da opressão da mulher negra e do entrecruzamento e interconexão das dominações de raça e gênero (e orientação sexual) que ficou conhecido como “intersseccionalidade”.

Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, o conceito está sendo incorporado no Brasil por movimentos militantes de trabalhadores, numa chave não apenas racial, mas de afirmação da sua condição social, “periférica”. O conceito de lugar de fala modifica assim a natureza histórica e epistemológica do discurso classista. Antes, na tradição marxista, a condição de trabalhador era considerada universal ou potencialmente universal porque o avanço do capitalismo proletarizava a todos e do sentido desse processo advinha a sua força epistemológica e o seu lastro material: a perspectiva dos trabalhadores era uma perspectiva universal. Quando a condição de trabalhador passa a ser concebida como um lugar de fala, a partir da sua posição periférica, ela passa a ser vista como (mais) uma especificidade.

A adoção desse tipo de reflexão modifica também uma longa tradição racionalista que tratava como inválidos os argumentos ad hominem (aqueles que desqualificam quem enuncia, ao invés de se deter no teor do argumento). De certa maneira, a reflexão sobre o lugar de fala reconhece a força persuasiva deste tipo de argumento, a aceita e a reverte no contexto da luta social no campo discursivo. Ela ressignifica o argumento ad hominem, transformando a desqualificação preconceituosa em qualificação do discurso de luta socialmente situado: ao invés de desqualificar o discurso do subalterno, o qualifica por não ser contraditório, por ter experiência direta, autenticidade e conhecimento de causa.

Por fim, o conceito de lugar de fala gera efeitos paradoxais quando é assimilado pelos adversários que ressignificam essa ressignificação. Nosso melhor exemplo local é o Fernando Holliday, um jovem político liberal, negro, gay e periférico, que tem utilizado o seu lugar social para promover, reivindicando autenticidade e conhecimento de causa, posições contrárias a dos movimentos emancipatórios, curto-circuitando o conceito de lugar de fala.

Os textos de referência no debate “original” americano, salvo erro:
* Combahee River Collective. The Combahee River Collective Statement. 1977.
* G.C. Spivak. Can the subaltern speak? In: Nelson, C. et al. Marxism and the Interpretation of Culture. Champaign: University of Illinois Press, 1988, p. 271–313.
* K. Crenshaw. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, v. 43, n. 124, p. 1241-1299.
* Linda Alcoff. The Problem of Speaking For Others. Cultural Critique, 1991-92, p. 5-32 [versão revista e ampliada publicada em Authority and Critical Identity. Champaign: University of Illinois Press, 1996].

Foto: Pintura em óleo de Faiza Khan