Por Wibsson Ribeiro, de Maceio, AL
O livro começa com notícias frias sobre o desastre nuclear extraídas de jornais e revistas. Componentes químicos, informações científicas, dados precisos, relatórios, objetividade. Com curtos movimentos, estamos totalmente imersos dentro da catástrofe. Sabemos quantitativamente o que representa Tchernóbil. Estamos informados. Mas sabemos realmente o que aconteceu? Temos a real dimensão da gravidade? O que Svetlana propõe é deixar de lado os números e gráficos e mergulhar na alma do sofrimento das famílias atingidas pela catástrofe.
Das matérias, saltamos para a primeira voz a tomar conta da narração. Em um capítulo chamado de “Uma primeira voz humana”, Svetlana propõe a ruptura imediata com o tipo de relação que estamos habituados a ter com Tchernóbil. O texto frio dá lugar ao relato dolorido de uma esposa que vê o marido, um trabalhador da usina nuclear, definhar por conta da radiação, e, grávida, arrisca a própria vida e a do feto para acompanhar seu amado. São parágrafos de reticências, choros, gemidos de dor, desespero e agonia. Sem desaguar no sentimentalismo, o texto nos agarra e nos torna íntimos da tragédia em poucas páginas. Descobrimos que não sabemos nada de Tchernóbil. Os números e componentes químicos são incapazes de narrar a tragédia.
O livro é na verdade um conjunto de vozes em sobreposição. Todas elas tentando captar e transmitir a tragédia, tornar-se texto e, quem sabe, permanecer. Virar memória, lembrança. São narradores. Contam, como nos tempos antigos. Svetlana cumpre a função de organizar, como uma maestra; conduzir as vozes em suas confluências e contrastes. Diversas partes são verdadeiros coros: de soldados, de crianças, de camponeses… as vozes de Tchernóbil encarnam-se em nossa imaginação como figuras de carne, osso e lágrimas.
As vozes de memórias coletivas perpassam todo o livro, não se detêm na catástrofe. Elas mostram que a vida desse povo foi a catástrofe desde muito. Ao rememorar da tragédia nuclear, soma-se à memória da II Guerra Mundial e do Stalinismo. Sofrimento que passa de gerações mais velhas para mais jovens. Agonia que metamorfoseia-se, mas não desaparece. Memórias coletivas dos campos de concentração, da invasão nazista, do Tsar. Uma história de camponeses que nunca viveram por muito tempo a paz. Sempre viveram a vida como uma arena de provações e enfrentamentos com o mundo civilizado, um mundo que subjugou a natureza e os povos que usufruíam da terra.
Tchernóbil é o símbolo da débâcle do comunismo real, o símbolo da desgraça stalinista. Não há emancipação humana. Não há possibilidade de redenção. Civilização aqui é morte e caos.
A relação com a natureza é descrita em diversas narrativas. Colher os tubérculos, tirar o leite das vacas, caçar animais, pegar água no poço. Os moradores que contam a sua história não pedem muito. Tudo o que queriam era sua rotina. Tranquilidade. Extrair da terra o próprio sustento. O mais básico da vida no campo, após Tchernóbil, torna-se impossível.
Os animais sentem antes o desastre. Escondem-se nos buracos, as minhocas; confinam-se nas colmeias, as abelhas. As vacas, os cães, todos estranhos à atmosfera. Os bichos sentem seu habitat destruído pelos erros da ciência e antecipam a dor dos homens.
O cenário resultante é uma combinação de medo e beleza. Não há escombros. As florestas ficam aparentemente intactas. O campo parece o mesmo. Mas a morte está agora em toda parte. Impregnada nas folhas e nos bichos, corroendo os órgãos dos homens. A paisagem é verde, o céu é azul, as nuvens brancas. Não há o cinza e a fuligem da cidade. Mas há a destruição, empesteando o ar.
Em determinados momentos alguns narradores falam sobre a ficção. Contam sua história, pedem para que elas fiquem registradas, mas brincam com a possibilidade de que aquilo se torne fantasia. É claro que salientam o sensacionalismo da imprensa europeia, mesmo da imprensa russa, mas afirmam ser impossível tornar ficção Tchernóbil. O que aconteceu ali não pode ser contado em forma de alegoria. Não pode ser metaforizado. Não pode ser contado na forma de uma narrativa típica do realismo mágico. É traumático demais, demasiado atroz. Já é muito pedir para que as testemunhas narrem suas histórias.
Algumas vezes o silêncio se impõe. Há os traumas. O desejo de esquecer. Há relatos impossíveis de vir a tona. O horror, as deformações, o choque, o fim da esperança. Há vozes emudecidas. Há vozes que tangenciam, não conseguem falar. De alguma forma, Tchernóbil é parte das catástrofes que inauguram o nosso tempo fraturado e não há nada que se possa fazer quanto a isso. Alguns não querem falar sobre Tchernóbil. Outros querem, mas não sabem como ou o que dizer.
As crianças de Tchernóbil brincam, vivem sabendo que vão morrer. Falam da morte como quem pede uma bicicleta emprestada, como quem participa de uma brincadeira. São serenas. Criadas em volta do câncer e da radiação. Os parentes choram e as crianças apenas esperam. Não é indiferença, mas resignação diante do único mundo possível de ser vivido.
Que mundo é esse que surge depois de Tchernóbil? As vozes falam do fim do homem soviético, do fim de um tempo, do fim de um homem. A promessa de modernidade animada pelo comunismo de estado se encerra, nos relatos, em Tchernóbil. Todos os ideais propagados no período stalinista estão mortos. Alguns dizem que nunca se mentiu e se falseou tanto a realidade. A memória coletiva volta aos tempos de Stalin. É um tempo de mentiras e desvios, meias-verdades e engodos. A ciência e o comunismo real, de mãos dadas, conduzem ao engano e ao erro. Todos os pilares da confiança da sociedade soviética, partidos. Os reatores também liberam decepção e tragédia.
O homem soviético é um homem de fé, um homem que acredita. Suas crenças os tornam vítimas. Alguns cientistas entram em desespero, indignados com as ordens políticas dadas aos camponeses, que vivem suas vidas e seguem suas rotinas, infectando-se e condenando-se a morte. Poderiam ser salvos, dizem alguns. Um crime político imperdoável. O patriotismo guia os camponeses para a mutação e destruição dos corpos. Outros, soldados e operários, voluntariam-se para enterrar Tchernóbil. Munidos apenas de pá, vão enfrentar o demônio radioativo. O patriotismo russo, a fé aparentemente inabalável, incapaz de vencer o monstro.
A tragédia também é dos homens do Partido. Alguns choram, lamentam, indignam-se com a situação. Cumprem ordens, são obrigados a obedecer uma máquina burocrática que parece autônoma. Todos dividem a tragédia. No fim, também vítimas. Todos pagam juntos a dor e o erro.
Um determinado relato fala que Tchernóbil foi pior que a II Guerra. Da batalha contra o nazismo, o homem soviético saiu mais forte, mais unido, mais solidário, sentindo-se invencível. Disposto a reconstruir um país e todas suas aldeias. De Tchernóbil, ninguém sai vivo. Serão duzentos anos de radiação no ar e, até lá, não se sabe inteiramente ainda o que pode acontecer. Tchernóbil não oferece nenhuma possibilidade de esperança.
Svetlana encerra o livro lamentando que o desastre nuclear tenha se tornado mais uma memória fetiche de nosso tempo. Um souvenir. Um símbolo inofensivo no mercado das reminiscências. O livro revela-se uma luta para lembrar de Tchernóbil além dos números e do espetáculo.
Svetlana é uma continuadora da tradição literária russa mais elevada. Ao passo que diversas das vozes registradas lembram da importância da literatura em suas vidas — das leituras de Gogol, Tolstói e outros — enxergamos também em Svetlana uma partícipe da construção dessa arte. Ecoa em seu livro Dostoiévski, Tchekhov,Tolstói. Svetlana é parte de uma tradição de escritores, mas erige uma visão própria do sofrimento russo. Um povo que exala uma aura religiosa, patriótica, de fé e esperança, que não aguenta mais sofrer, mas ainda assim ergue-se e se dispõe a suportar o fardo do futuro.
A literatura de Svetlana Aleksiévitch, pelo caminho da não-ficção, da história, da memória, presta um tributo aos de baixo. É expressão do nosso tempo, do colapso de uma sociedade e um indício do que todos nós somos, após Auschwitz, após Tchernóbil, após a tortura sistemática do século XX. A autora construiu um monumento à narração, à oralidade, aos sussurros, gemidos e gritos dos povos. Um monumento literário onde pulsa, escancaradamente, a nossa barbárie.
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