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EDITORIAL

Bolívia: Crise da água em La Paz, uma catástrofe anunciada

A woman walks with two buckets to wait for a water bowser to arrive near her neighborhood in La Paz, Bolivia, Wednesday, Nov. 16, 2016. Bolivia’s President Evo Morales asks for forgiveness from La Paz residents for the water shortages caused by the worst drought in 25 years and acknowledged that there will be no immediate solutions. (AP Photo/Juan Karita)

Por Joana Benario, São Paulo(SP)

 

Desde o início do mês de novembro, assistimos a uma grave escassez de água na capital do país, La Paz, provocando desabastecimento e racionamento. Afeta diretamente mais de 100 bairros, cerca de 340.000 pessoas, segundo o New York Times. O racionamento agora chegou também na cidade vizinha de El Alto, atingindo o conjunto da população metropolitana, ou seja, um total de 2 milhões de pessoas[i]. Nas principais represas que abastecem a Capital, os volumes de água são menores que 10%. É a pior crise em 25 anos.

Somado a isso, pela pressão alterada nas tubulações devido à escassez e por  incapacidade das operadoras da rede pública de distribuição,  5 artérias de distribuição de água estouraram, fato que prova o envelhecimento do sistema deixado anos sem a manutenção adequada. Segundo o pesquisador Oscar Campanini do CEDIB, 30 a 45% da água se perde por essa causa.

Os principais afetados são os centros de saúde pública e o povo pobre, que  esperam  em longas filas as cisternas a que recorrem na cidade, para receber insuficientes dois baldes d’água que precisam durar 4 ou 5 dias. Na zona Sul, a parte baixa da cidade,  majoritariamente habitada pela classe média e pela burguesia, as cisternas são vendidas por 300 Bs. (R$ 150) e é necessário que se tenha em casa tanques de água com capacidade suficiente para armazenar.

Além disso, 6 regiões do país sofrem pela seca que atinge mais de 300.000 hectares de cultivos e 360.000 cabeças de gado.  Desde o início de dezembro, Cochabamba (terceira cidade da Bolívia) também está padecendo da mesma escassez de agua.

 

Olhando para o céu…

 

A atitude do governo Evo Morales perante a crise foi de considerá-la como uma catástrofe natural imprevisível e declarar estado de Emergência Nacional, demitindo os responsáveis do setor. O Presidente Evo Morales chegou a pedir perdão ao povo da cidade de La Paz, falando que “não sabia, nunca me avisaram” .  As autoridades culpam o clima (atraso das chuvas) e o aquecimento global.  O plano de emergência adotado foi o corte dos serviços de água e abastecimento com cisternas, esperando a chuva cair.

 

Catástrofe anunciada

 

Estudos sérios realizados pelo Instituto Boliviano da Montanha em 2009, muito antes da explosão da crise hídrica, alertaram sobre o grave problema crônico de desabastecimento de água em La Paz e apontaram vários problemas que hoje vieram à tona. Um dos principais pontos abordados no estudo era o fato de que não se estava buscando novas fontes de abastecimento, já denunciando uma má gestão por parte das empresas encarregadas, bem como as crescentes atividades mineiras com o seu enorme consumo de água e, consequentemente, a contaminação. O instituto finaliza o estudo anunciando que as tendências não são alentadoras e podem ser desastrosas. “Se as projeções se cumprirem, o desabastecimento pode se repetir” segundo Dirk Hoffmann, responsável pelo informe.

 

Má gestão da EPSAS e interesses políticos

 

Existem duas EPSAS  (Empresa Pública Social de Água e Abastecimento) na Bolívia, uma em La Paz e outra em Cochabamba. Fazem a coleta, represamento e distribuição da água potável e regulamentação do setor.  A EPSA de La Paz foi criada em janeiro de 2005, como consequência das mobilizações e levantes populares em El Alto, devido às falências graves da empresa Águas do Illimani (AISA), subsidiária da empresa francesa SUEZ.  Foi o segundo levante, depois da “guerra da água” de Cochabamba, em abril de 2000. Foram grandes lutas vitoriosas do povo contra as empresas transnacionais.

Infelizmente, as EPSAS, empresas estatais, se transformaram em “loteamento político”.  Após 10 anos de gestão pelo MAS, o resultado é desastroso, com uma ausência de políticas de longo prazo: não se faz nada a respeito a novas captações de água e à demanda crescente da cidade. Foram nomeadas pessoas que não tinham condições para ocupar essas funções com responsabilidade, tendo como critério a vinculação política com o MAS.  A crise atual é produto combinado das alterações climáticas, da má gestão, dos interesses políticos e da tardia reação governamental. As autoridades nacionais interpretam um papel no debate internacional de defesa do meio ambiente e da mãe Terra – a pedido da Bolivia, em julho de 2010, a ONU reconheceu o acesso à água como direito humano básico, –  mas não garantem políticas nacionais no abastecimento da água na Bolívia. Similar ao caso dos hidrocarbonetos, não basta nacionalizar as empresas de serviços básicos e as grandes empresas do país; é necessária uma correta gestão dos recursos em beneficio das maiorias, com transparência e mecanismos de participação real da população e controle dos trabalhadores e usuários.

 

Outras causas da escassez

Em meio a todo esse cenário também existem conflitos permanentes entre autoridades do Governo Nacional (MAS) e as prefeituras de La Paz e El Alto, que são dirigidas por partidos de oposição [ii], em uma campanha permanente em vista das próximas eleições municipais previstas para 2019.  Esses partidos da oposição burguesa exigem renúncia imediata do ministro da Água e Meio Ambiente e expulsão das empresas chinesas que trabalham em mineração no Illimani, a grande montanha que domina La Paz.  Em oposição radical ao MAS, propõem municipalizar a EPSA, mas nenhuma medida concreta para a superação da crise hídrica. Utilizam-se do grave problema da escassez de água como artifício político.

Certamente, as mudanças climáticas também são parte do problema. A água é um recurso estratégico e limitado. A Bolívia é um país particularmente sensível ao aquecimento global, com a perda acelerada de suas geleiras e o fenômeno do El Niño, que a afetou ainda mais entre 2015-2016.

Esse problema é intensificado pelas empresas mineiras e megaprojetos mineiros das transnacionais que, além de deixarem em todo o país os rios e margens contaminadas, utilizam milhões de litros de água por dia sem compensação alguma.  Durante os 10 anos do governo do Evo, cresceu bastante o extrativismo no país, apoiado pelas políticas do MAS que fomentaram uma presença ainda maior de megaprojetos no pais.  Isso é certamente um fator essencial que contribuiu para a crítica situação atual em relação à água no país.  Apesar de todos esses elementos que influenciam o problema, o principal fator causador da crise hídrica é a má gestão e a ausência de controle das instituições públicas, deixadas ao sabor dos interesses políticos partidários, sem se preocupar pelas necessidades e interesses da maioria do povo.

 

Reações populares

Dia após dia, grandes cabildos (assembleias populares territoriais) são organizados em La Paz, atraindo cada vez mais gente. O povo está furioso, e com razão.  Uma ativista social em La Paz comentava: seguimos com muitos bairros na cidade sem água e o pior é que não há soluções imediatas. Este é um momento muito importante porque toda a população se deu conta da necessidade de encontrar responsáveis além das mudanças climáticas e inicia uma tomada de consciência sobre os efeitos do modelo extrativista que este governo aprofunda”.

Um sentimento compartilhado nas redes sociais era:  “chega de desabastecimento, chega de não ouvir o povo, quando se vê que as autoridades não têm nem a menor ideia de como solucionar os problemas! Chega dessa realidade medíocre disfarçada de ‘processo de mudança”!

Contudo, é mais que provável que a situação continue e se repita. Mesmo com a crise hídrica afetando o país, sofrem os mais pobres. Quem pode pagar, tem acesso à água.

[i]               A população total da Bolívia é de 10, 8 milhões de pessoas. Aproximadamente 2 milhoes morran na Capital e EL Alto, cidade vizinha

[ii]              A prefeitura de La Paz é controlada pelo  SOL.BO  (Solidariedade e Liderdade) e a prefeitura de El Alto, pela Unidade Nacional (UN).