Há 106 anos explodia a Revolta da Chibata: João Cândido presente!

Por Matheus Gomes, Porto Alegre, RS

Entre 22 e 27 de novembro de 1910, mais de 2400 marinheiros se rebelaram contra a permanência dos castigos corporais na Marinha e dominaram os maiores navios de guerra que existiam no Brasil. João Cândido (o Almirante Negro), gaúcho do Vale do Rio Pardo, coordenou a rebelião acompanhado de inúmeras lideranças negras como Adalberto Ferreira Ribas, Francisco Dias Martins (a “Mão Negra”), Manuel Gregório de Nascimento, Ricardo Freitas, André Avelino (o “Pau de Lira”), Hernani Pereira dos Santos, (o “Sete”) e Aristides Pereira da Silva (o “Chaminé”).

Foi um movimento extremamente organizado e plenamente consciente, que inspirou-se nas experiências de luta de marinheiros por todo o mundo, principalmente na revolta do Encouraçado Potemkin (1905), fato chave da Revolução Russa que triunfou em 1917. A inteligência e capacidade técnica dos marinheiros negros era uma completa subversão da ideologia que inferiorizava os descendentes dos escravizados no Brasil. Os marinheiros se organizaram através de Comitês que prepararam a revolta nos navios.

Nas palavras do próprio Almirante Negro, “Ficou combinado, então, que a Revolta seria entre 24 e 25. Mas o castigo de 250 chibatadas no Marcelino Rodrigues precipitou tudo. O comitê resolveu, por unanimidade, deflagrar o movimento no dia 22”. O castigo sobre Marcelino ocorreu porque ele portava uma garrafa de cachaça, o que expressa o tamanho da crueldade sobre a marujada, que sofria não só com as chibatadas, mas também com o bolo, uma espécia de palmatória. Também estavam entre as reivindicações a melhoria da comida e do soldo (salário), além da exigência de uma melhor distribuição das funções dos marinheiros nos navios.

A perplexidade da elite

O recado dos rebelados para o presidente Hermes da Fonseca foi direto: “Tem Vossa Excelência o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada”. Em 1904, a partir do “Projeto de Reaparelhamento Naval”, a Marinha adquiriu os potentes encouraçados Minas Gerais e o São Paulo, além do scout Bahia. Com os canhões virados para o Rio de Janeiro, a elite política e econômica da república estava refém da revolta. A forma como Hermes da Fonseca tomou conhecimento da situação demonstra que a conspiração foi vitoriosa em seu objetivo: como o presidente havia sido eleito a menos de uma semana, ele e todo seu ministério assistiam tranquilamente uma ópera do compositor alemão Wagner no Clube da Tujica, até que o estrondo dos disparos interrompeu a festa.

Sabemos o Estado escravocrata constituiu-se a partir de uma legislação repressora extremamente violenta, que não oferecia condições de apelação, pois tinha como objetivo o controle permanente das constantes revoltas que colocavam em risco o desenvolvimento daquele modo de produção. Em 1910, 22 anos após a assinatura da Lei Áurea, imaginem o pânico da elite ao ver a revolta se constituindo a partir do braço naval das Forças Armadas, pondo em cheque a hierarquia e a disciplina militar. Ao bombardear o Rio de Janeiro, os negros da Marinha abriam o caminho para um questionamento geral das permanências da escravidão, o que poderia tomar dimensões incalculáveis.

O discurso do Senador Rui Barbosa demonstra o tamanho do impasse: “Ou o governo da República dispõe dos meios cabais e decisivos para debelar esse lamentável movimento, e então justo seria que os empregasse para restituir imediatamente a tranquilidade ao país; ou desses meios não dispõe o Governo da República e, em tal caso, o que a prudência, a dignidade e o bom senso lhe aconselham é a submissão às circunstâncias do momento.. Não havia outra opção a não ser o recuo.

Depois da vitória, novos confrontos, repressão e crueldade

Entretanto, ao mesmo tempo que a Revolta saía vitoriosa ao abolir os castigos corporais no dia 26, a repressão foi brutal e as principais lideranças terminaram presas e assassinadas. A tentativa de uma nova insurgência no dia 28 foi derrotada. A chamada “Segunda Revolta” não contou com o apoio do Almirante Negro e as principais lideranças do movimento anterior, mas foi a oportunidade de instaurar a perseguição generalizada sobre eles.

No presídio da “Ilha das Cobras”, com celas remanescentes do período colonial, foram aprisionados 18 homens. 16 morreram devido as condições desumanas da prisão, não resistindo a inalação constante do pó de cal usado para “desinfetar” o ambiente. O relato do Almirante é assustador:

A prisão era pequena e as paredes estavam pichadas. A gente sentia um calor de rachar. O ar, abafado. A impressão era de que estávamos sendo cozinhados dentro de um caldeirão. Alguns, corroídos pela sede, bebiam a própria urina. Fazíamos as nossas necessidades num barril que, de tão cheio de detritos, rolou e inundou um canto da prisão. A pretexto de desinfetar o cubículo, jogaram água com bastante cal. Havia um declive e o líquido, no fundo da masmorra, se evaporou, ficando a cal. A princípio ficamos quietos para não provocar poeira. Pensamos resistir os seis dias de solitária, com pão e água. Mas o calor, ao cair das dez horas, era sufocante. Gritamos. As nossas súplicas foram abafadas pelo rufar dos tambores. Tentamos arrebentar a grade. O esforço foi gigantesco. Nuvens de cal se desprendiam do chão e invadiam os nossos pulmões, sufocando-nos. A escuridão, tremenda. A única luz era um candeeiro a querosene. Os gemidos foram diminuindo, até que caiu o silêncio dentro daquele inferno, onde o Governo Federal, em quem confiamos cegamente, jogou dezoito brasileiros com seus direitos políticos garantidos pela Constituição e por uma lei votada pelo Congresso Nacional. Quando abriram a porta já tinha gente podre.”

O Almirante e o marujo João Avelino Lira sobreviveram, mas o líder da revolta foi considerado “louco” e “indigente” e levado dali para um hospício, o Hospital dos Alienados, da onde saiu dois anos depois com a concessão da anistia.

A reparação até hoje não ocorreu: mantenhamos vivo o espírito dos marujos rebelados!
Até hoje, falar nesse episódio dentro da Marinha é um crime. João Cândido e todos os líderes negros nunca foram “perdoados”. Na realidade, a anistia de 1912 veio acompanhada da expulsão sumária das lideranças da revolta do corpo da Marinha. O Almirante viveu como vendedor de peixe na Praça XV do Rio de Janeiro o restante de sua vida, até falecer de câncer com 89 anos em 1969.

Em 2008, Lula concedeu uma anistia simbólica ao Almirante, mas a covardia dos três governos petistas diante da punição aos criminosos das Forças Armadas se impôs: sua reintegração na corporação (com as devidas promoções) e a reparação financeira que os seus herdeiros tinham direito foi negada.

Cabe a nós retomar essa história, trazer a tona as injustiças vigentes até hoje e retomar o espírito rebelde dos marinheiros porque os castigos não acabaram, o genocídio da nossa juventude dia a dia comprova isso, o racismo institucionalizado nas forças de repressão mata sem dó nem piedade, como vimos recentemente na chacina da Cidade de Deus. Façamos como os marinheiros: viremos nossos canhões para a elite e os governos que atacam nossos direitos, nos rebelemos contra o racismo e a exploração.