A ofensiva contra Mossul e a agonia de Aleppo

A displaced Iraqi family arrives at a safe zone on June 17, 2016 in Amiriyiah al-Fallujah, after Iraqi government forces evacuated civilians from the city of Fallujah due to their ongoing military operation to retake the city from the Islamic State (IS) group. Iraqi forces raised the national flag over the government compound in Fallujah on June 17, 2016, top commanders said, a breakthrough in the nearly four-week-old offensive against the Islamic State group’s bastion. Significant parts of northern Fallujah, where thousands of civilians are believed to remain, have yet to be retaken. Amriyat al-Fallujah is located some 30 kilometers (18.6 miles) south of Fallujah. / AFP PHOTO / MOADH AL-DULAIMI

Por Waldo Mermelstein, São Paulo(SP)

Após o fracasso da trégua organizada por russos e americanos, a ofensiva contra os rebeldes na parte leste de Aleppo, a segunda maior cidade da Síria, continuou de forma implacável.

As forças russas e do ditador Assad decretaram uma trégua “humanitária” de 24 horas, prorrogada até o final do dia de sábado em Aleppo. A cidade está praticamente reduzida a escombros, mas o regime não conseguiu ainda conquistá-la. Uma frota russa se encaminha para a Síria para fortalecer a ofensiva. A queda de Aleppo significaria uma mudança importante a favor do regime na guerra civil de mais de cinco anos e que já causou a morte de centenas de milhares de pessoas.

A Turquia desfechou uma ofensiva em agosto para controlar as cidades fronteiriças em território sírio. Com isso, cortaram as rotas de abastecimento do autodenominado Estado Islâmico (EI) e expulsaram as forças das Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG em sua sigla em curdo) que controlam a região semiautônoma de Rojava na Síria. Estabeleceu-se na área uma zona tampão controlada pelo exército turco e pelos seus aliados sírios (a zona verde do mapa, sendo a amarela a dominada pelos curdos).

No Iraque, após uma longa preparação, as tropas do exército iraquiano começaram o anunciado ataque para reconquistar Mossul, tomada pelo EI em 2014 e considerada como a “capital” do califado proclamado pela organização.

Mossul é a segunda maior cidade iraquiana, centro comercial da região e próxima da Turquia e da Síria. Além disso, está localizada na província de Kirkuk, rica em petróleo. Tinha entre 1 milhão e meio e dois milhões de habitantes antes de ser conquistada pelo EI, mas várias fontes afirmam que esse total foi bastante reduzido pela fuga após a junho de 2014, o que alimentou o imenso contingente de refugiados na região. Suas origens históricas remontam a 6 mil anos antes de Cristo, sendo denominada de Nínive durante o império assírio. Foi conquistada pelos muçulmanos no século VII D.C.

Dada a desproporção de forças, a queda de Mossul é praticamente certa, mas os prazos, as formas e os resultados estão em aberto. Os atacantes são  calculados em 30 mil soldados compostos por:

-uma divisão do renovado exército iraquiano (dominado desde a invasão americana de 2003 pelos xiitas);

– combatentes da região autônoma do Curdistão iraquiano, liderados por Masud Barzani e denominados peshmerga. São aliados dos americanos e dos turcos;

– além disso, a força atacante é apoiada por 5 mil membros das forças especiais da coalisão liderada pelos americanos, o que inclui a cobertura aérea, decisiva, ainda mais em um terreno desértico como o do Norte do Iraque.

 

Aliados rivais disputam o espólio de Mossul

 

O ataque foi precedido de uma longa negociação entre os vários atores locais e regionais. O que está em jogo é muito mais do que a retomada da cidade, o que já seria por si só muito importante. Trata-se da própria reorganização do país que após a invasão americana em 2003 foi cada vez mais dividido em linhas étnicas e/ou religiosas sectárias. Xiitas (60% da população), sunitas, e curdos controlam de forma variável diferentes partes do país e complexas alianças foram formadas ao longo do tempo para constituir o governo. Terríveis guerras civis sectárias foram fomentadas pelos ocupantes americanos e continuaram após sua humilhante retirada em 2011. O EI é uma expressão extrema desse fenômeno sectário gerado após a invasão americana e pela guerra civil desencadeada pelo regime de Assad na Síria.

Ao mesmo tempo em que se desenvolve a ofensiva, há uma furiosa competição entre os diversos atores locais e regionais para conquistar o máximo de território e de influência política.

A Turquia não pode avançar em sua ofensiva contra a região autônoma de Rojava na Síria, devido ao veto dos EUA que necessitam dos combatentes curdos para atacar o Estado Islâmico, tanto na Síria como no Iraque. Para contornar essa limitação,  os turcos lançaram nesta semana um violento bombardeio contra as forças curdas do YPG que ocuparam alguns vilarejos antes dominados pelo Estado Islâmico na região de Aleppo. Ao mesmo tempo, o presidente Erdogan declarou que a Turquia quer participar no campo de luta e na mesa de negociações em Mossul, invocando antigos direitos históricos antes da independência do Iraque em 1932. Ressalte-se que a Turquia tem tropas em território iraquiano, uma base em Bashika, a 30 km de Mossul e apoia as tropas curdas de Barzani. Isso provocou a dura resposta do governo iraquiano.

O Irã tem uma influência decisiva por ser aliado natural das mais importantes milícias xiitas e parte da própria sustentação dos governos iraquianos.

Os curdos provaram ser a força militar terrestre mais importante e confiável no enfrentamento ao Estado Islâmico. Já o tinham provado na batalha de Kobane de setembro de 2014 a junho de 2015 na Síria. No Iraque há uma disputa também entre os curdos para ver quem terá um papel mais destacado na ofensiva contra Mossul. Os peshmerga (combatentes do Curdistão iraquiano) contam com o apoio turco e americano, mas também as tropas do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão Turco) tentam avançar a partir de suas posições na província de Shinjar no Iraque.

Por enquanto, as milícias sectárias xiitas pró-iranianas (acusadas de efetuar massacres em batalhas similares em áreas com maioria sunita, como em Falluja) estão sendo mantidas de fora da ofensiva sobre Mossul. Mas uma das principais milícias xiitas, as Forças de Mobilização Popular ligadas aos iranianos declararam-se dispostas a entrar na luta pela reconquista de Tal-Afar, uma cidade de 150 mil habitantes de maioria turcomeno xiita.

A população civil já começa a fugir, temerosa das batalhas que já estão a 15 km da cidade e levando em conta o terror empregado pelo Estado Islâmico nesses dois anos de dominação e as represálias adotadas em outras cidades reconquistadas do Estado Islâmico.

A batalha de Mossul é a maior no país desde a invasão americana em 2003 e se antecipam importantes combates na cidade, seu entorno e na retaguarda, como os contra-ataques ocorridos ontem na cidade de Kirkuk, da qual o EI já tinha sido expulso.

De qualquer forma, a ONU antecipa uma nova onda de refugiados provindos da cidade, o que aumentará significativamente a crise no país. As tensões sectárias poderão crescer e a divisão virtual do país em cantões sectários poderá se tornar uma realidade.

Sem dúvida, a queda de Aleppo e de Mossul mudará o cenário da guerra civil síria e da configuração do estado iraquiano e terá dramáticas consequências em toda a situação geopolítica da região e aprofundará o infindável sofrimento de milhões de habitantes dos dois países.