Aldo Cordeiro Sauda |
Há cinco anos, o exército egípcio cometia seu primeiro massacre em grande escala na Primavera Árabe. Assassinavam 28 civis, todos membros da minoria copta cristã, que protestavam por liberdades religiosas.
O Massacre de Maspiro, como ficou conhecido o evento, entrou para a história do movimento social egípcio como a mais cruel das ações da contra-revolução. Sua importância está mais relacionada ao significado político-social do ataque que à quantidade de caídos. O número, inclusive, é tímido quando comparado aos mais de 800 mortos na praça de Rabia Al Adawya, no banho de sangue contra a Irmandade Muçulmana que marcou o fim da aliança entre o exército e os islamistas.
Diferente daquele ato, das batalhas de barricadas ou dos outros protestos esmagados pelo exército, em Maspiro as vítimas caíram sem resistência. Pior, foram massacradas pelo mesmo exército ao qual os coptas clamavam por proteção contra os repetidos incêndios em seus templos, realizados por fundamentalistas islâmicos.
Esta semana, a União da Juventude de Maspiro – um grupo pró-democracia que organiza membros da minoria religiosa – planejava uma homenagem pública às vitimas. Eles foram, porém, expressamente proibidos pelo Ministério do Interior de realizar qualquer ato que lembrasse o crime do exército. Os ativistas responsáveis por enviar o pedido de autorização ao governo, tem sofrido, desde então, ameaças de morte por membros do serviço secreto local.
Em defesa da memória de Maspiro, resgatamos, abaixo, uma versão editada da narrativa do massacre e análise política do evento, que publiquei originalmente no site Passa Palavra. Escrito há cinco anos, o documento carrega muito do otimismo revolucionário presente no Cairo durante o período após a queda de Mubarak. Apesar dos erros políticos, principalmente a ilusão na radicalização dos coptas e do movimento operário, o documento merece ser revisitado, por registrar algo que hoje se tenta apagar da memória coletiva.
Aldo, 2016
Os Mártires de Maspiro
Eram 17. Todos enfileirados em meio à rua. Caixões inteiramente fechados, alguns traziam sobre si antigas fotos dos mortos. Os corpos, levados ao hospital cristão copta durante a noite do domingo, foram escondidos da autopsia pelo exercito egípcio. Encobria-se, ali, um massacre.
No pequeno espaço do necrotério, milhares de egípcios, cristãos e muçulmanos, prestavam suas homenagens às mais novas vítimas da junta militar. Nas calçadas em frente ao hospital, dominadas pela comoção e lamento, a maior comunidade cristã do Oriente Médio chorava a morte dos seus.
Não foram poucos os que desmaiavam ao se aproximar do conglomerado de caixões. Sob o sol escaldante da África, mulheres, inteiramente vestidas de preto, com o cabelo coberto por um fino véu, gritavam, choravam e gesticulavam. Há alguns metros de distância um grupo composto por homens cantavam, embaixo de cruzes improvisadas, pela derrubada do regime.
Ninguém sabe ao certo o número de mortos no “Massacre de Maspiro”. O número oficial registra 25, porém diversas pessoas afirmam terem testemunhado o exército egípcio atirar corpos de manifestantes no Rio Nilo. A luz dos eventos de domingo não se pode descartar essa hipótese.
O crime perpetrado pelo exército carregava os resquícios típicos da crueldade das ditaduras militares latino-americanas. “Os tanques passaram por cima da cabeça dos nossos meninos, eu vi a cabeça deles explodir”, afirmava George Daut, um dos presentes na manifestação de domingo. “Elas pareciam bexigas d’água”. Entre choros e suspiros, George afirmava não manter nenhum ressentimento contra os muçulmanos egípcios. “Nossos filhos não foram assassinados pelos muçulmanos, ele foram assassinados pelo exército do Marechal Hussein Tantawi”.
A consolidação da aliança militar-islamista se encontra no plano de fundo do massacre de Maspiro. Como era de se esperar, a minoria cristã está sendo utilizada pelo regime como bode expiatório para a construção de um novo bloco política e social, que inclui uma aliança entre o exercito e a Irmandade Muçulmana. Alem disto, os crimes de Maspiro permitem ao governo lançar mão do argumento da estabilidade política contra as incertezas da continuidade da revolução. Estabilidade esta, segundo o discurso oficial, somente pode ser garantida pelo exército.
Sectarismo religioso
No início da tarde de domingo, quando milhares de manifestantes marcharam em direção à sede da televisão estatal egípcia, local tradicional das manifestações da minoria copta desde o inicio da revolução, ninguém imaginava que o dia terminaria em tragédia. O ato, um protesto contra a destruição de uma igreja na província de Aswan, no interior do Egito, não era algo novo. Há anos radicais islâmicos, com a conivência ou proteção do Estado, têm atacado os templos da minoria, que, desde a queda do regime Mubarak, vem manifestado seu descontentamento publicamente.
Baseadas em um conjunto de éditos do Império Otomano, redigidos em 1856, a legislação egípcia na prática impede a execução de obras nas igrejas coptas do país. Segundo a regulamentação, qualquer construção ou reforma de um templo não islâmico requer uma série de documentos específicos e a aprovação do governo local, algo quase sempre impossível. Não são raros os casos em que, sob argumentos da ausência de documentação correta, radicais islâmicos assumem para si a responsabilidade de impor a lei, vandalizando templos cristãos. Quase sempre os agressores são inocentados pelo Estado.
Seria um erro, obviamente, afirmar que não existem tensões religiosas no país; porém, a forma com que elas se desencadearam no domingo foi de inteira e exclusiva responsabilidade da junta militar. A caminhada do ato, que saiu do bairro cristão de Shubra em direção à região de Maspiro, no entorno da praça Tahirir, era inteiramente pacífica. Ela era composta de mulheres, homens e crianças, carregando algumas cruzes, velas e imagens da Virgem Maria.
Assim como tem sido comum em quase todas as manifestações críticas ao governo, em certo momento, um grupo de rapazes, partindo por de trás das linhas policiais, atacou os manifestantes com paus, pedras e coquetéis molotov. O ataque à manifestação por parte dos agentes provocadores, conhecidos no Egito como “Baltajiyyah”, ocorreu em clara coordenação com a polícia e as forças armadas.
Um pouco após a ação do lumpesinato, o exército, pela primeira vez de forma clara e direta desde o início da revolução, começou a atacar os manifestantes. Entre bombas de gás lacrimogêneo e rajadas de fuzil, os militares desencadearam uma brutal repressão contra a minoria. Em meio aos ataques, blindados do exército avançaram contra os civis, esmagando até à morte no mínimo 10 manifestantes.
Mensagem aos “cidadãos de bem”
Ao longo do dia, a TV Estatal, canal mais assistido do Egito, iniciou uma ampla campanha de agitação e propaganda contra a minoria copta. Imagens de soldados supostamente feridos no “confronto” começaram a ser veiculadas pela TV, dando a impressão de que uma suposta guerra estava se desenrolando. Junto com a imagem de militares feridos a televisão do governo, no melhor estilo “Rádio Ruanda”, exibiu uma entrevista ao vivo com um militar descrevendo os coptas, que supostamente o atacaram, como “cães”.
O canal estatal, que opera sobre firme controle do Ministério da Informação, anunciou que três soldados tinham se tornado “mártires” na “batalha” contra a turba. Logo em seguida, começaram a circular pelos rádios da cidade rumores de que os coptas portavam metralhadoras e as utilizavam contra o exército. Em meio a um tom apocalíptico, a apresentadora responsável por conduzir o noticiário da TV convocou os “cidadãos de bem” para proteger o seu exército do ataque cristão.
Para além do show televisivo, não havia nenhum soldado morto. Os manifestantes coptas, que carregavam apenas artefatos religiosos, foram massacrados pelo exército. No dia seguinte, o canal estatal anunciou que a jornalista havia ficado “nervosa” e se confundido na hora de transmitir a notícia da morte dos militares. Quanto à convocatória aos “cidadãos de bem”, nenhuma explicação oficial foi dada, para além da afirmação do Ministro da Informação de que o canal estatal é “imparcial” e “objetivo”.
Com a divulgação ao vivo das notícias dos confrontos, centenas de manifestantes deslocaram-se as ruas do centro, aderindo a ambos os lados em embate. Alterando o caráter originalmente confessional da manifestação iniciada na tarde de domingo, o ato tornou-se um grande enfrentamento no entorno da praça Tahrir. Não que a marcha contra o ataque à igreja em Aswan fosse composta originalmente apenas por cristãos; mas durante seu desenrolar na madrugada o conflito tornou-se um ato tipicamente anti-junta militar, composto igualmente por cristãos e muçulmanos.
Nacionalismo e islamismo
A tensão social entre cristãos coptas (10% da população egípcia) e a maioria muçulmana não é nova. O processo de islamização da sociedade, capitaneada pelo Estado há 30 anos, tem sido o principal combustível para estas explosões de ódio sectário.
Durante a era pan-arabista e nacionalista de Gamal Abdel Nasser, entre 1954 e 1970, o Egito, ligado politicamente à União Soviética, viveu um processo relativo de integração das diferentes comunidades religiosas. A iniciativa, dirigida pelo estado, foi revertida em nível internacional pelas vitorias políticas e militares do imperialismo.
Após os acordos de paz firmados entre Israel e Egito, em 1979, e a consequente expulsão dos conselheiros soviéticos do país pelo então presidente Anwar Saddat, que sucedeu Nasser após sua morte em 1970, o Estado egípcio passou por um longo processo de alteração de seu paradigma ideológico central. O nacionalismo pan-arabista não se fazia mais útil à nova configuração política, interna e externa, do país.
Novo aliado de Israel e do Ocidente, iniciando um processo de liberalização econômica, o Egito de Saddat buscou no Islã ponto de apoio para sua legitimidade política. Também conhecido como “O presidente Fiel”, Awnar Saddat, e futuramente seu herdeiro político Hosni Mubarak, aprofundaram, por meio do Estado, a inserção da identidade religiosa no espaço público. Trabalhando ostensivamente para expurgar resquícios do pan-arabismo, a islamização da sociedade eliminou os principais opositores à nova aliança política e econômica com os Estados Unidos.
O processo de islamização, eventualmente, incluiu uma aproximação entre o Estado e a Irmandade Muçulmana, que de organização banida e criminalizada por Nasser, passou a ser tolerada. Mesmo que excluída parcialmente do espectro político-parlamentar durante os anos Mubarak, a organização ganhou força por meio de trabalhos de caridade e presença no movimento estudantil.
A queda do ditador, que contou em seus últimos dias com a participação ativa da Irmandade – principalmente de sua juventude, que empurrou a direção a aderir ao movimento – de forma alguma implicou no fim da cooperação entre ela e o exército. O processo revolucionário enfraqueceu os elementos de sustentação social das forças armadas, tornando a Irmandade potencialmente um dos mais viáveis instrumentos de apoio do regime. O fim do partido de Mubarak, somado ao enfraquecimento moral dos intelectuais orgânicos ligados ao exército e o desmantelamento da central sindical oficial, empurram os militares em busca de novas alianças sociais.
Os islamistas, ao que tudo indica, em nada pretendem alterar o controle direto do exército e da burguesia sobre os meios de produção. Eles têm se mostrado, consequentemente, candidatos perfeitos ao Partido da Ordem como sócios minoritários das Forças Armadas.
As minorias e a Revolução
Se para a ampla gama do povo egípcio o exército tem se colocado como guardião da estabilidade, tal fato é ainda mais verdadeiro frente à comunidade cristã. Inevitavelmente as revoluções obrigam as minorias a fazer duras escolhas: de um lado, a antiga “ordem social”, na qual certamente serão oprimidos como anteriormente, porém dentro de limites preestabelecidos que não colocam em risco a sua existência física; de outro, a possibilidade de liberdade e emancipação, permeada sempre pela possível reversão das relações sociais, na qual a antiga ordem opressora pode ser substituída por um estado de coisas ainda pior, em que sua eliminação física se dará quase como certa.
Não por acaso, diversas lideranças coptas se colocaram contrárias à revolução. O temor de um fortalecimento do campo radical islamista, que potencialmente implicaria na destruição da comunidade fazem de muitos coptas conservadores por natureza. No Egito revolucionário pós-Mubarak, com o aumento dos ataques aos templos cristãos, muitos membros da comunidade enxergavam o exército como único agente social capaz de os proteger. Não que os coptas desconheçam a pouca simpatia que existe por eles nas forças armadas; mas, ao mesmo tempo, muitos acreditam que estas sejam a única força capaz de impedir o avanço dos islamistas, que, por sua vez, compõem desde o inicio da revolução o bloco político-social de apoio aos militares. A contradição é evidente.
O massacre de Maspiro, porém, pode ter contribuído para alterar esta equação. Se a relação entre os radicais islâmicos e o exército antes não se era clara aos coptas, agora certamente é. Provavelmente serão poucos os membros da comunidade que procurarão refúgio entre os militares. Não que os coptas não se oponham em algum grau à junta, muito pelo contrário, sempre fora comum ouvir nos atos políticos da minoria chamados pela a derrubada do governo, porém agora os mesmos chamados tomam uma nova dimensão.
Para onde vai o Egito?
Os eventos do domingo, inevitavelmente, contribuem para a radicalização da comunidade cristã e sua consolidação no bloco contrário à junta militar. Apesar de tal fato, é difícil captar o sentimento da maioria islâmica, alimentada pela imprensa com contínuo ódio religioso. Em uma região com pouca tradição de imprensa livre e um déficit histórico de participação popular, teorias da conspiração, na qual coptas subversivos em conjunto com estrangeiros estão tentando assumir o controle do país, tendem a encontrar solo fértil.
Ao longo de todo domingo boatos que circularam na mídia anunciavam que os Estados Unidos pretendiam mandar tropas ao Egito para proteger os templos cristãos, independente da vontade do governo local. Suposição esta inteiramente descolada da realidade, principalmente dado os fortes vínculos entre Washington e a Junta Militar. Mesmo assim, tais argumentos tendem a seduzir muitos egípcios, os levando a se unir ao seu governo contra o suposto inimigo externo.
A relação entre as diferentes comunidades religiosas do país, porem, é complexa. Em meio aos funerais das vítimas, Nagiba Shenouda, uma jovem estudante copta, fazia questão de enfatizar esta especificidade. “Isto aqui não é o Líbano” afirmava. “Por mais que ao longo dos últimos 30 anos cristãos e muçulmanos tenham se afastado uns dos outros, nossas vidas continuam entrelaçadas. Aqui no Cairo, ao contrário de cidades libanesas como Beirute, existe uma constante interação social entre as comunidades. Cristãos e muçulmanos muitas vezes residem nos mesmos bairros, estudam nas mesmas escolas e trabalham nas mesmas empresas”, dizia a jovem. “Existem problemas entre as comunidades, um cristão médio sofre mais dificuldades sociais do que um muçulmano médio, mas daí para um conflito sectário é uma distância muito grande”, concluía Nagiba.
As greves continuam
O massacre realizado pelo exército à manifestação é também um aviso a toda oposição. No Egito as regras do jogo podem estar mudando. O descontentamento cada vez maior com a junta militar, expresso abertamente nas recentes críticas feitas pelos partidos liberal-burgueses ao processo de transição, somado à onda de greves vitoriosas, desencadeadas nos últimos dois meses, revelam um acirramento das tensões sociais no país. A tentativa orquestrada pelo regime de fomentar a divisão entre as massas pode muito bem indicar que a junta militar precisa aumentar o grau de coerção frente à clara redução do consentimento.
Na cidade de Mahallah, coração industrial do Egito, uma nova onda de greves na indústria têxtil pode mais uma vez eclodir em meio à crise de Maspiro. Enquanto a central sindical independente cresce a cada dia, a contradição central da sociedade, aquela que coloca os proprietários dos meios de produção no campo oposto aos produtores, parece estar longe de ser esquecida pela classe trabalhadora. Por mais que a junta do Mareshal Tantawi insista na tecla religiosa, nada garante a estabilidade de seu emprego. Mesmo após o tenebroso massacre do domingo, como diz a velha expressão militante, a luta continua. Que os mártires de Maspiro não tenham caído em vão.
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