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TEORIA

«Todo cozinheiro deve saber dirigir o Estado»(*) e os erros de nossa vitória

Raquel Varela  |

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo/
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,/
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida/
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana/
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;/
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!/
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam./
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?/
Ó príncipes, meus irmãos / Arre, que estou farto de semideuses!/
Onde é que há gente neste mundo? (Por Fernando Pessoa)

A vida poderia ser um pouquinho melhor se tivesse mais gente que soubesse a importância de errar, gente “falhada”, por assim dizer, ocupando lugares de responsabilidades públicas – da culinária(**) à revolução –, porque a medida do nosso sucesso é também o nosso falhanço. Errar é humano. E mais do que isso. É, mesmo, necessário. É, realmente, impossível triunfar sem erros. Digo-o, assim, sem exageros. Explico-me?

Faço uns bolos deliciosos. Geram comentários instigantes de meus amigos – quando há piqueniques cria-se expectativa. Todos querem saber com que ingredientes eu inventei um bolo, uma receita nova, talento que não tenho na culinária regular. Tudo a olho. Não tenho balança. Já me perguntei por que será que algo tão fácil, para mim, gera tanto entusiasmo, nos outros. Levo escassos minutos a fazer um bolo delicioso, do exótico gengibre ao banal chocolate, da inesperada courgette (ou abobrinha italiana) à, já velhinha, batata-doce. A resposta, científica e comprovada, está no meu passado, justamente, “falhado”. Tive o privilégio de ter uma mãe tolerante aos erros. Quando eu era pequena odiava estar em casa, cresci convencendo, com luta e ardor, o meu irmão, mais velho, a levar-me para as brincadeiras de rapazes, na rua, onde, aí sim, eu era feliz. Quando por alguma razão eu tinha que ficar em casa, a minha mãe, para sobreviver ao caos, deixava-me invadir a cozinha e fazer bolos, sujando tudo à volta, assumindo com piadas o prejuízo, que era também o preço mesmo do seu sossego.

Solados, esturricados, insuportavelmente doces ou horrivelmente amargos, foram dezenas saídos do forno diretamente para o lixo. Um dia, Otelo Saraiva de Carvalho, oficial militar que planejou um dos mais bem-sucedidos golpes de Estado de todo o Séc.XX, o 25 de Abril, que abriu as portas à Revolução dos Cravos, disse-me que só conseguiu fazê-lo porque, um mês antes, em 16 de março, tinha ocorrido o famigerado golpe das Caldas, que falhou. E ele foi estudar em que é que os outros tinham, enfim, errado. Disse-me, e cito-o literalmente: “sem o golpe das Caldas não teria sido possível o 25 de Abril”. O golpe das Caldas é retratado na historiografia-padrão como uma precipitação imponderada, um rotundo falhanço. Qualquer cientista sabe que o caminho do sucesso é uma estrada feita de erros, nossos e dos nossos colegas – quando um médico descobriu uma cura para a humanidade baseou-se nas tentativas, “falhadas”, de centenas de colegas. Não se omita com isto o brilhantismo individual – a coragem, a persistência e o talento individuais costumam ser mesmo indispensáveis. Mas não podem ofuscar a construção coletiva, e falhada, que está por trás de todo e qualquer sucesso.

Dir-me-ão então que o caldo cultural desta sociedade de “sucessos”, assim medidos, pela ausência de erros, é a cultura competitiva, individualista, narcísica, que domina este “fim de século”, este final dos tempos? Acho porém que é algo mais forte do que isso. Nós vivemos numa sociedade perigosa, em que todos os poros da nossa vida – a afetiva e a intelectual, política e social – foram contaminados por uma chaga que atingiu a todos, crianças a adultos, mesmo os que dela não deram conta: a assim-chamada “avaliação de desempenho”. A avaliação de desempenho é a contraparte da empresa enxuta – mantém-se 5% dos trabalhadores com direitos e 95% precarizados, e cria-se uma avaliação que impede os 95% de acederem à quota preestabelecida, de salários mais altos, dos 5%. Todos estão porém na concorrência mais brutal. Na universidade o teto são vinte artigos, quando todos atingem esse teto, passa-se a trinta artigos e assim sucessivamente. Já nos médicos é atender cinqüenta doentes por dia, quanto atinge-se o teto, este passa a ser sessenta. É como a linha do horizonte, ao longe, vai-se afastando mais, à medida em que nos aproximamos. É a terrível distopia do capitalismo decadente.

Na avaliação de desempenho a medida do sucesso é: 1) o resultado, e não o processo; 2) o indivíduo, e não o coletivo e, por fim, 3) o tempo curto e não a longa duração. Logo, o sucesso aparece como uma característica inaudita, individual e algo urgente. É assim que o sucesso do jovem mede-se pelo resultado que teve no exame vestibular e não pela educação sentimental, da escola e da família, cultural e científica, afetiva e intelectual, política e social, que teve ao longo dos seus primeiros dezessete anos de vida. Se quiséssemos rir com a desgraça alheia imaginemos só o que é isto na vida sexual – um sucesso medido pelo desempenho de um só indivíduo, urgente e de uma só vez… A avaliação de desempenho mudou a vida do mundo inteiro, diz o psicólogo social do trabalho Christophe Dejours, o mais famoso desta área, e tem toda a razão.

Porque o jovem que falhou no exame é, todo ele, um falhanço, desde sempre. Porque o trabalhador que errou é despedido, sem mais; porque à primeira discussão no partido o militante abandona a filiação, sem mediações; porque o jantar estava ruim o cozinheiro é proscrito, de imediato; porque a relação correu mal um par de vezes faz-se a ruptura, de preferência de modo a ser o mais dramática e intempestiva possível ou imaginável; porque o vizinho estava com má cara, não lhe falo mais, e por aí afora, nas mais diversas esferas da vida. Não há espaço ou tempo para bolos queimados nem golpes falhados nesta sociedade de gente bem-sucedida, que nunca erra e quando o faz é para assumir erros de que se orgulha, jamais daqueles de que se envergonha.

É trágico vivermos assim porque deste “sucesso” nascem cada vez mais erros, graves, e sérios. Quem erra evita assumir para não ser acusado de frágil e, portanto, oculta os erros. Quem assume o erro é considerado fraco – não cuidou do seu orgulho, e é desprezado. Quem persiste no erro é “determinado” ou “forte”. Gerou-se uma intolerância aos erros, do local de trabalho micro às relações humanas macro. Não há sequer espaço ou tempo para perceber que uma percentagem ínfima das pessoas é sociopata – i.e., erra, erra outra vez, não se para por nada e rumo ao precipício sem volta. A maioria, a grande maioria, sairá mais forte, mais capaz, mais interessante, mais instigante, melhor preparada, mais feliz, mais amorosa, se apenas tiver tempo e espaço para assumir, olhar para trás – balanço e perspectivas – pensar e corrigir os seus erros. Erros que devem ser acarinhados em nossa história de vida. E, também por isso, far-se-á bolos mais que deliciosos e, quem sabe?, belas e fortes revoluções de cravos nas mãos.

(*) Vladimir Ilitch Ulianov Lenin costumava dizer que todo cozinheiro, após a revolução dos soviets, deveria saber dirigir o Estado dos trabalhadores. No cartaz soviético de agitprop público, de I. P. Makarychev [acima reproduzido], lê-se, nos dizeres em cirílico, que: «Todo cozinheiro deve saber dirigir o Estado» (1925). O pôster é uma clara referência ao modo de agir lenineano e à concepção bolchevique de partido, ressaltando que as mais altas cúpulas de Estado deveriam ser governadas pelos trabalhadores de virtualmente toda categoria e qualquer setor da produção – e reprodução – da vida total em sociedade.

Os realizadores do longa-metragem da Pixar Animation Studios, “Ratatouille” (“Ra•ta•tu•i”), ao que tudo indica, não são leitores assíduos do marxismo revolucionário. “Não sabem, mas fazem”, diria o Velho Mouro. O ídolo do ratinho cozinheiro camponês, Remy, é o cosmopolita chef de cousine parisiense, Auguste Gusteau. O seu mote predileto, e que dá título a seu renomado livro de receitas, é justamente: “Anyone can cook” (“Qualquer um pode cozinhar”). Impressiona – a qualquer leitor atento de Antonio Gramsci e Vladimir Lenin – a proximidade de sua concepção total de mundo. Assista aqui a seu trailer: