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Entrevista com Clarissa Ferreira: cultura local e a guerra dos farrapos

Para fechar este especial com chave de ouro, entrevistamos Clarissa Ferreira, que é violinista, doutoranda em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e co autora do Blog Gauchismo Líquido. Ela nos falou sobre cultura e identidade local, música, arte e política, feminismo e sobre seu trabalho e projeto.

Neste mês de setembro, muito se discutiu sobre a Guerra dos Farrapos e também sobre a cultura gaúcha. Acreditas que haja uma identidade cultural local tal como se divulgou por aqui?

Quem visita o acampamento farroupilha no mês de setembro em Porto Alegre pode afirmar que há uma identidade cultural local sendo acionada nestas festividades elucidativas à Revolução Farroupilha (1835-1845). O mais curioso é que essas afirmações se dão por pessoas de diversas etnias, idades e sexo, diferente do que a matriz desta construção cultural pregou.

No entanto, o que quase não se menciona é que está foi uma guerra civil, ou seja, não houve a adesão de toda a população sul-rio-grandense a causa farroupilha, e por isso, não houve uma unidade em torno da mesma. Contudo, considerada marco histórico fundador da identidade gauchesca, é uma das maiores fontes de inspiração e criação da cultura gaúcha. Ao evocá-la com orgulho, os sul-rio-grandenses demonstram sua importância por considerarem-na como o surgimento do sentimento de pertencimento gaúcho, que alicerçada por este “’fundamento histórico”, transmite caráter de verdade. Deste fato histórico, assim como de outras guerras, brotaram os conceitos característicos da figura mítica do gaúcho, como ser bravo, guerreiro, destemido e, principalmente, ligado à sua terra. São esses atributos que refletiram na construção de uma literatura e música de vertente regionalista.

Assim, a cultura gaúcha foi construída, moldada, pensada, desde o século XIX, por movimentos como o Parthenon Literário, depois o regionalismo literário da década de 20, e o Movimento Tradicionalista a partir da década de 50. Foram diversos movimentos, de motivações político sociais e históricas, que objetivaram construir uma imagem homogênea para o Rio Grande do Sul.

Contudo, hoje se questiona a representatividade de toda população gaúcha nessa imagem construída. A multietnicidade do estado, a presença do negro e do índio nessas construções identitárias estão abarcadas na cultura gaúcha? Como vemos, não! Basta prestar a atenção e veremos que ao comemorar a Revolução Farroupilha negligencia-se a morte dos negros na batalha de Porongos. Porém, como mencionamos, vemos atualmente negros participando dessas festividades. Essas questões nos fazem refletir quais são os  interesses que estão em jogo para continuar essa representação.  Seriam eles ideológicos ou financeiros, a partir do lucro envolvido na venda de elementos simbólicos ligados a essa representação?

Em especial sobre a música, acreditas que o RS possui uma musicalidade própria? E instrumentos musicais originários daqui, há?

Há um entendimento construído e moldado sobre o que seria a musicalidade própria e identificável como gauchesca. Nesta questão há muitos interesses ideológicos implícitos, como a invisibilidade e o escamoteamento do negro na identidade cultural gaúcha. Como a construção da identidade gauchesca foi forjada a partir de relatos do século XIX, e calcada somente na imigração europeia, a criação de uma sonoridade característica rio grandense ficou circunscrita aos instrumentos trazidos pelos colonizadores europeus. Nesta interpretação os instrumentos típicos da música gaúcha seriam: o violão, de origem espanhola, o acordeom de origem italiana, o violino trazido pelos padres jesuítas espanhóis, e o pandeiro, trazido pelos portugueses.

Como disse, negligenciou-se e ainda negligencia-se nesta identidade a presença da cultura negra. Um exemplo disto, é a não representação do sopapo na cultura gauchesca, mencionado por diversos pesquisadores como o único instrumento originário do Rio Grande do Sul, recriado nas charqueadas após a diáspora africana, tendo este tambor registros históricos de sua presença desde o século XIX. (Sobre o tema indico o trabalho de pesquisa realizado pelo professor etnomusicólogo Mário Maia “O sopapo e o cabobu: etnografia de uma tradição percurssiva no extremo sul do Brasil

É interessante pensarmos como hoje ainda propagam-se tais restrições artísticas fruto destes entendimentos construídos. Em minha pesquisa de mestrado pude perceber como são proibitivas as regras da maioria dos festivais de música nativista atualmente para o uso de instrumentos não considerados gauchescos, como a bateria e instrumentos eletrônicos. Nas décadas iniciais dos festivais, década de 70 e 80, havia uma abertura maior para experimentação de novas sonoridades. Porém, com a volta à procura por raízes culturais na década de 90, (em contrapartida ao surgimento da tchê music) as experimentações cessariam quase por absoluto, restringindo-se somente a sonoridades de instrumentos considerados autênticos.

Há quem diga que este pedaço aqui do sul é parte de um sul maior, o sul da América. Haveria portanto alguma relação cultural particular do RS com um ou alguns países da América Latina?

Como pude perceber em minha pesquisa de mestrado (Campeirismo Musical e os festivais de música nativista do sul do Brasil: a (pós) modernidade (re)construindo o “gaúcho de verdade” , a criação/ manutenção do “mito do gaúcho” no universo da música regionalista do Rio Grande do Sul, refere-se às origens do gaúcho representado nas performances como o mais “primitivo”, buscado na historiografia e que dialoga com a representação do gaúcho platino (uruguaio e argentino). Assim sendo, as fontes históricas recorrentemente citam a década de 1870 como a que reporta à construção do “mito do gaúcho”, devido às mudanças na conjuntura social e política deste período: como o cercamento dos campos, a introdução de novas raças de gado e a disseminação de uma série de outros transportes. Estas foram transformações que afetaram diversas regiões da América Latina (regiões hoje demarcadas como Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina), devido à consequente eliminação de certas atividades servis como as dos posteiros e agregados, muitos sendo expulsos dos campos. Após a Segunda Guerra Mundial, esse processo se acentuou.

O acesso ampliado das formas simbólicas do “mito do gaúcho” criou novos elementos numa espécie de “neoculturação”, no qual há uma mistura de elementos antigos e novos que se fundem e se complementam transformando e readaptando as diferentes formas de fundamentar a origem do gaúcho. Dessa forma, não se traduz em imobilismo, em preservação estática, e sim num fator mutante e recriador.

A busca pela autenticidade fez com que os indivíduos identificados com a música regionalista rio grandense encontrassem nos países vizinhos a “raiz comum” do gauchismo que tanto almejavam. Nesse contexto, também a identidade gauchesca sul-brasileira resignificou-se: antes a fronteira vista como separadora, hoje é vista como zona de influências, o que ocasionou a criação de uma identidade gauchesca transnacional. Antes, o “gaúcho”, que era visto como defensor das fronteiras do estado e como protetor de seu país, hoje é visto de outra forma, pensando-se em uma irmandade em relação à América Latina. A mudança de um uma identidade regional atrelada à de amplitude nacional para uma transnacional é certamente um dos principais elementos que diferem ao conceito do “gaúcho” cunhado no tradicionalismo, na década de 50, para o entendimento atual.

Existe uma grande discussão, de longa data, sobre o papel do e da artista na realidade. Arte engajada, crítica social, arte e política. Aqui neste Sul da Terra vimos muitos cancioneiros, pajadores e artistas de várias escolas participarem da resistência à ditadura militar na Argentina, por exemplo. No mesmo sentido, vimos a onda de ocupações que os artistas realizaram no Brasil contra a extinção do Ministério da Cultura e pelo #FORA TEMER. Qual sua opinião sobre a participação dos artistas na vida política? Acreditas que a arte pode ser valorada pela posição política do artista, ou são coisas separadas?

Todas as pessoas são seres políticos, artistas ou não. Elas agem em seu cotidiano de acordo com suas premissas, suas ideologias (explícitas ou implícitas), o que não quer dizer que sejam partidárias de siglas políticas.  Os artistas, de certa forma, têm uma visibilidade maior e um poder de influenciar e formar opiniões, por isso, é tão importante que artistas se posicionem e defendam as suas causas.

Importante lembrar, para pensar na música gaúcha, que as artes contemporâneas alcançaram um grau de independência quanto à realidade não artística. Esta visão nos abre um leque de possibilidades sobre a intencionalidade e funcionalidade das obras construídas neste segmento musical. Diferente do papel social que a música nativista possuía na época áurea dos festivais (década de 1980), nos dias atuais o segmento de música nativista traz em sua maioria de temas visões “romantizadas” e ligadas a um tempo mítico construído. Para o sociólogo Bauman (1997), “as artes partilham da situação da cultura pós-moderna como um todo onde a arte, agora, é uma entre as muitas realidades alternativas e cada realidade tem seu próprio conjunto de procedimentos, táticas abertamente auto-proclamadas para sua afirmação e identificação”.

O grande desafio das pesquisas em música atualmente, principalmente na área de Etnomusicologia, é entender o papel que a música tem na vida das pessoas e por que os seres humanos fazem música. Há milhões de pessoas diferentes, vivendo em contextos distintos, usando músicas de formas bem diversas. Pesquisas recentes apontam uma mudança de análise da concepção de música como símbolo para música como ferramenta. Em vez de tentar achar reflexos identitários, atualmente tem-se buscado, nas pesquisas em música no mundo todo, compreender a mesma como uma ferramenta que está à disposição das pessoas, para gerar experiências de encantamento, ou, por exemplo, influenciar estados de espírito e a própria vida cotidiana.

Esses novos estudos dedicam-se em compreender como as pessoas estão usando a música como um meio de controlar, ou melhor, de influir no seu estado emocional. Ela pode ser utilizada politicamente, tanto por grupos subalternos, quanto pelos grupos hegemônicos, como forma de controle, estando a política sempre presente em qualquer contexto musical. A música pode envolver desde a política do indivíduo (a construção de sua identidade), até questões políticas de grupos específicos, e ainda se referirá a questões muito mais amplas. Não há música sem dimensão política, até mesmo porque questões de poder estão presentes em todas as relações sociais.

Essas proposições nos fazem pensar e chegar a algumas questões em relação ao cenário musical sul-rio-grandense: Se a base das representações de arte e identificação do Rio Grande do Sul vem de uma ótica baseada no universo latifundiário, será que hoje elas são válidas visto que vivemos de outro modo? O artista com voz atualmente no cenário gauchesco advém dos ambientes culturais aos quais defendem em suas canções? Há uma consciência sobre o que se canta? De que lugar social partem as vozes artísticas? Esses lugares são assumidos claramente? Que vozes pretendem esses artistas representar? Que interesses estão por trás das canções?

O ambiente de música gaúcha é muitas vezes conservador e dominado pelos homens. A própria ideologia gauchesca dominante é muito opressora às mulheres, pois reproduz a ideia de prenda recatada e do lar. Mas há também uma importante tradição de artistas mulheres que entraram para história como Mercedes Sosa e Violeta Parra. Como tu enxerga a relação de gênero na identidade cultural local?

É importante ressaltar que a cultura gauchesca foi construída e alicerçada a partir das representações do masculino. Segundo o antropólogo Roberto Da Matta “a figura masculina é predominante nos locais que, como o Rio Grande, tem suas identidades forjadas pelas questões políticas. Os gaúchos foram republicanos antes do restante do país. E o que quer dizer ser republicano? Quer dizer igualdade perante a lei, ter uma constituição que vale para todos, etc. Esses elementos acabam determinando uma imagem de um cara que luta pelos seus direitos, é assertivo, fala alto – e que acabou simplificado como machão”.

Outra explicação para esta construção da identidade gauchesca relacionada ao gênero masculino pode ser entendida a partir das citações do historiador Hobsbawm: “Os grupos que geram com mais facilidade o mito heroico, suponho, são as populações especializadas em andar a cavalo, mas que, em certo sentido, ainda se mantêm vinculadas ao resto da sociedade; ao menos no sentido de que um camponês ou um rapaz da cidade possa imaginar a si mesmo como um caubói, um gaucho ou um cossaco”. Este tipo de criação social imaginária não está presente exclusivamente na cultura gaúcha. Segundo o historiador, a constituição deste mito refere-se a uma fundamentação histórica secular, do mito do centauro, que teria influenciado enormemente a cultura ocidental através de características masculinas, pastoris e que possuem ligação com o cavalo.

Assim as canções gaúchas retratam, em sua maioria, os feitos em guerras, trabalhos no campo, ou seja, atividades entendidas como do comportamento masculino. Contudo, para as mulheres resta as esperas da guerra, ser coisificada como flor, ser china ou chinoca, quiçá ser Anita… isso na melhor das hipóteses, pois lembremos da canção “Morocha” que fala de agressão à mulher explicitamente. Em pesquisa realizada por Laura Silva e Leandro Oltramari, intitulada “De beija-flor a urubu: representações das mulheres na música gaúcha”, há uma análise de composições dos segmentos da música campeira e da tchê music, onde foram classificadas cerca de 80 músicas na qual referiam-se de alguma forma a mulher. A categoria onde foram encontradas mais canções foi “Coisificação das Mulheres”, as quais de alguma maneira caracterizam as mulheres como algo atrelado ao uso, consumo, e, portanto, as colocam fora da posição de sujeito, aproximando-as da ideia de coisa. É importante ressaltar que nenhuma prática musical é inocente, afinal, o fenômeno artístico vai muito além de seu efeito lúdico sendo elemento de (re)produção de realidades sociais, conservando-as e solidificando-as. Através do que é representado se (re)produz ideologia, afinal criar e executar música é um ato político. As linguagens música, teatro, cinema, pintura, etc., não apenas representam o real, mas instituem reais.

Dessa forma, nos perguntamos: onde a mulher gaúcha se encaixa no contexto cultural gauchesco do século XXI? Como se identificar com este universo em tempos de empoderamento feminino e de tomada de consciência da nossa posição na sociedade? Como identificar-se com canções que refletem ideologia machista e ideias retrógradas do século XIX?

Nós mulheres ouvimos desde muito pequenas frases como: “não faça isso, isso é coisa de menino”, “isso não são atitudes de mocinha”, “meninas não devem fazer isso”, e simplesmente crescemos achando que somos incapazes de realizar “tarefas masculinas” ou “‘agir como meninos”. Culturalmente o lugar que cabe a mulher é o dos serviços domésticos, e da criação dos filhos. Uma parte muito restrita tem a oportunidade de desenvolver suas aptidões, como por exemplo, tocar um instrumento.

Contudo, dando segmento à uma longa tradição feminista, as mulheres vêm conquistando cada dia mais seus espaços, denunciando preconceitos e abusos de todos os tipos. Atualmente, pode-se perceber um crescimento do protagonismo feminino na sociedade em geral. No entanto, o meio da música gaúcha e, porque não dizer da cultura gaúcha num todo, é ainda muito machista, salvo exceções obviamente. Mas até nesse espaço as mulheres têm buscado se colocar, falar por si, dizer o que pensam e sentem em relação as coisas do mundo e da vida.

Por fim, você é uma importante artista do Sul, já referência para vários da nova geração. Nos conte um pouco sobre o seu trabalho e blog.

Atuando como violinista nos festivais de música nativista e em musicais acompanhadores dos grupos de danças tradicionais gaúchas por cerca de dez anos, sempre me acompanharam, em âmbito acadêmico e artístico, as questões desse fazer musical no que tange aos objetivos de representação do gauchismo. Como minha atuação musical nos primeiros anos de graduação (bachalerado em violino na Universidade Federal de Pelotas) circunscrevia-se basicamente na música tradicional de concerto e nas práticas de orquestra, minha visão sobre a música regionalista gaúcha até o momento era baseada no conhecimento empírico. Ao ingressar em um musical de grupo de danças tradicionais como violinista, imaginava encontrar uma prática musical mais ligada ao improviso, mais livre, mas ao contrário, deparei-me com diversas normas e regras pré-estabelecidas. Os arranjos musicais para o meu instrumento, o violino, eram devidamente pensados de acordo com estas normas e regras, de maneira a evitar qualquer ameaça contra a “autenticidade” e ao “caráter genuíno” dessas danças, conforme o entendimento do Movimento Tradicionalista Gaúcho.

A partir de então nasceu, gradativamente, o interesse por estes assuntos

ligados ao folclore e ao tradicionalismo. Assim, minha atuação como violinista ligada ao tradicionalismo levou-me aos festivais nativistas e a demais trabalhos com colegas músicos do segmento. Na medida em que meu envolvimento neste novo ambiente foi se intensificando, também os questionamentos sobre aquele universo cultural e identitário aumentavam. Deste interesse desenvolvi a pesquisa, em nível de mestrado, realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), já aqui mencionada.

Atualmente sou doutoranda em Etnomusicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e estou pesquisando as questões de música gaúcha e mercado, com o objetivo de compreender como se agenciam estas identidades em meio à economia da música, ou seja, o possível elo entre questões ideológicas e comerciais.

Em 2014 criei o blog Gauchismo Líquido, com o objetivo de trazer reflexões e fomentar discussões sobre as construções identitárias musicais do sul do Brasil. O termo Líquido faz alusão ao sociólogo Bauman, quando refere-se ao momento em que presenciamos, no qual tudo muda muito rapidamente, nada é feito para durar, para ser “sólido”. Desta forma, buscamos tratar neste canal de comunicação o gauchismo em meio ao processo de globalização que vivenciamos na atualidade. Este ano comecei a dividir a produção dos textos com a grande amiga e historiadora Aline Porto, também doutoranda e pesquisadora do gauchismo, que tem contribuído enormemente com os questionamentos que traz, e pela forma que organiza nossas ideias textualmente, assim como colaborou enormemente com esta entrevista, o que corrobora com o entendimento contemporâneo de trabalho colaborativo e multidisciplinar.

Foto: Caroline Quaiato