A morte de Shimon Peres e seu papel na história

Por: Waldo Mermesltein, São Paulo, SP

Poucas vezes a hipocrisia que cerca as cerimônias oficiais quando da morte de dirigentes públicos superou o que ocorreu no funeral de Shimon Peres. Dezenas de chefes de estado compareceram para homenagear alguém que supostamente foi um pacifista. Barack Obama já tinha declarado que ele foi “um pai fundador de Israel e um homem de Estado cujo compromisso com a segurança e a busca da paz era fundamentado em sua inquebrantável força moral e em seu inquebrantável otimismo”.  No discurso no funeral, acrescentou que “Shimon Peres nos mostrou que a justiça e a esperança estão no coração do ideário sionistas, uma vida em liberdade em um lar nacional reconquistado”.

De tudo isso, a única parte verdadeira é que foi um dos fundadores do estado sionista, mas faltou explicar que a “reconquista” significou que os habitantes originais foram expulsos e a terra “conquistada” nesses quase 70 anos.

Um balanço mais honesto foi feito por Yossi Cohen, chefe do Mossad, o serviço secreto de Israel, conhecido pelos seus crimes mundo afora:
“Por muitos anos, Shimon Peres trabalhou com o Mossad em operações para garantir a segurança de Israel e foi um dos lideres mais proeminentes de Israel. Foi um símbolo de paz e irmandade e fez imensas contribuições para o fortalecimento da segurança do estado de Israel”

Mas quem foi Shimon Peres?
Nascido na Bielorrússia em 1923, Szymon Perski – Shimon Peres em hebraico – emigrou para a Palestina em 1934 e se tornou ativo no movimento sionista. Foi militante da corrente trabalhista do sionismo durante muitos anos. Em 1947, assumiu tarefas na Haganah, milícia judaica na Palestina, predecessora do Exército Israelense.

Enviado ao exterior pelo então dirigente da chamada esquerda sionista e depois do futuro estado, David Ben Gurion, negociou a aquisição de armas que foram logo utilizadas para a limpeza étnica perpetrada a partir daquele ano e que expulsou 700 mil palestinos de suas terras e propriedades.

Naquela época, como depois, os palestinos, os habitantes locais, eram vistos como um incômodo e deveriam ser eliminados ou expulsados, de forma fulminante em 47 ou lenta – mas inexorável – como nos quase 70 anos seguintes. Estes foram os métodos legados pela geração de Shimon Peres.
Suas credenciais em favor do imperialismo ocidental na região ficaram ainda mais claras em 1956, quando era diretor-geral do Ministério da Defesa de Israel na preparação e execução da invasão do Egito em conjunto com a Inglaterra e a França, após o dirigente Gamal Abdel Nasser ter nacionalizado o Canal de Suez.

O pai do arsenal nuclear de Israel
A partir de 1956, Peres foi um dos principais encarregados em gerenciar o projeto nuclear israelense, centrado no reator atômico de Dimona no deserto do Negev, o que abriu as portas para que o estado sionista se tornasse a grande potência atômica da região, com um arsenal calculado em 200 ogivas nucleares.

Em 1976, segundo documentos secretos revelados, como ministro da Defesa, ofereceu ao regime do apartheid sul-africano a venda de ogivas nucleares.

Em setembro de 1986, como primeiro-ministro do governo de coalizão com o partido direitista Likud, em que participava Itzhak Shamir, (também antigo criminoso de guerra, participante do grupo terrorista Lehi e co-responsável pelo massacre de Deir Yasin em 1948) ordenou o sequestro de Mordechai Vanunu, o técnico nuclear que denunciou em Londres a existência do programa nuclear israelense. Condenado à prisão em julgamento secreto, cumpriu 18 anos no cárcere e hoje ainda está sob liberdade vigiada e proibido de sair do país e de manter contato com a imprensa, apesar de intensa campanha internacional.

Não por acaso, em uma declaração extremamente rara, a Agencia Israelense de Energia Atômica (AIEA) declarou após sua morte que “A atividade de Shimon Peres foi parte da atividade da AIEA desde a sua fundação” e que “Peres deu uma contribuição significativa para o Centro de Pesquisas Nucleares no [deserto do] Negev e para a fundação da política nuclear de Israel, como um pilar fundamental para assegurar sua segurança nacional”. Mais direto, impossível.

E Peres era claro sobre a importância do potencial nuclear de Israel:
“[O reator de] Dimona nos ajudou a chegar a Oslo. Pois muitos árabes, por suspeita, chegaram à conclusão de que é muito difícil destruir Israel por causa dele, por causa de suas suspeitas. Bem, se o resultado é Dimona, penso que eu estava certo”

Papel chave na limpeza étnica após 1948
Depois da expulsão de 700 mil palestinos e destruição de centenas de aldeias palestinas, as leis básicas do novo estado regulamentaram a expropriação de suas propriedades e a vida dos palestinos remanescentes. Um dos artigos dessas leis, o de número 125 da Lei de Emergência de Requisição de Terras,  autorizava que terras palestinas fossem declaradas zonas militares fechadas. Seus donos eram então impedidos de acessá-las, o que possibilitava sua confiscação por “falta de cultivo”, sendo destinadas para novos colonos judeus.  Peres elogiou este Artigo como um meio de “diretamente continuar a luta pela colonização e imigração judaicas”

Além disso, foi um arquiteto chave no plano de “judaização” da Galileia, a única região do estado de Israel que tinha permanecido com maioria árabe, o que significou a expropriação de terras palestinas para criar várias cidades.

Em 1967, assumiu o ministério responsável pelos territórios ocupados e foi um dos primeiros impulsionadores do nascente movimento de colonização da Cisjordânia, tendo apoiado a iniciativa das alas mais radicais de colonos, chamada de Gush Emunim.

O Conselho das Comunidades Judaicas da Judeia e da Samaria (nome dado pelos colonos sionistas à Cisjordânia) declarou após sua morte que “neste momento, queremos recordar a grande contribuição de Shimon Peres para estabelecer a infraestrutura de segurança de Israel desde os seus primeiros dias, e sua contribuição substancial para a colonização judaica na Samaria”.

Neste ano, resumiu sua posição em relação à convivência com os palestinos utilizando a tese (racista) da chamada ameaça demográfica, voz corrente em todo o establishment israelense. Essa tese diz que os judeus não podem ser minoria no estado (e se possível em nenhuma de suas regiões). Perguntado se tinha receio que Israel se tornaria (sic!) um estado de apartheid,  porque ao final os cidadãos árabes seriam a maioria e Israel se tornaria um estado em que a minoria domina a maioria, respondeu:
“Muitas pessoas se preocupam com isso, e com razão, porque é uma questão de demografia, mas penso que temos que chegar a uma solução de dois estados antes que cheguemos a isso, para que possamos impedir isso. Não é automático. Se chegarmos a um acordo com os palestinos e eles tiverem seu estado, então essa sombra(sic!) demográfica desaparecerá”.

Premio Nobel pela participação nos Acordos de Oslo
Em 1987, participou do governo de Yitzhak Rabin quando da repressão à Primeira Intifada, a chamada rebelião das pedras, Foi este governo que ordenou “quebrar os ossos” dos que atiravam pedras, inclusive das crianças. A força da rebelião obrigou o governo a abandonar a ideia de compartilhar a administração da Cisjordânia com o rei Hussein da Jordânia e demonstrou que Israel não mais poderia dominar os territórios ocupados sem negociar com os palestinos. Isso culminou nos Acordos de Oslo em 1993, que teve Peres como um dos arquitetos e pelo que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1994.

Os Acordos despertaram grandes esperanças entre os palestinos à época, mas foram totalmente favoráveis a Israel.

Os palestinos renunciaram de fato ao retorno dos milhões de refugiados, reconheceram as fronteiras de Israel de 1948, contentaram-se com a administração local das maiores concentrações urbanas da Cisjordânia, deixando para Israel o controle total de sua economia, de suas fronteiras, com direito a intervir militarmente onde e quando desejasse. Em troca, Israel simplesmente reconheceu a OLP como representante dos palestinos, mas nenhum dos direitos palestinos, que ficariam para negociações posteriores, que nunca chegaram a ocorrer de fato.

Enquanto isso, a colonização na Cisjordânia seguiu sem parar, reduzindo a população palestina a pequenos territórios desconectados, recordando os antigos bantustões do regime do Apartheid sul-africano. Jerusalém foi anexada a Israel Os palestinos do interior das fronteiras de 1948, que eram vinte por cento da população, também foram abandonados e seguem sendo cidadãos  de segunda categoria dentro do estado sionista. Gaza tornou-se uma prisão a céu aberto, rodeada por terra, ar e mar e sujeita ao controle total e expedições punitivas periódicas.
Esta é parte da obra de Shimon Peres.

Crimes de guerra
Após o assassinato de Yitzhak Rabin em 1995, Peres era o  primeiro-ministro e foi responsável direto pelo massacre na aldeia de Qana, no Líbano, durante a chamada Operação Vinhas da Ira em abril de 1996. Mais de 100 refugiados palestinos que fugiam dos bombardeios morreram em um abrigo da ONU.

Sua carreira também incluiu a participação nos governos que reprimiram com maior violência ainda a segunda intifada a partir de 2001, inclusive como primeiro-ministro adjunto no governo de unidade nacional liderado por Ariel Sharon, conhecido por sua truculência.

Os poderosos do mundo se reuniram hoje, prestaram homenagem a um suposto pacifista, respaldaram o status quo em que os palestinos perdem cada vez mais. Não se preocuparam com essa encenação, mais dramática ainda por ser numa região em que há outras tragédias em pleno andamento, como a guerra civil na Síria, em que o cerco de Aleppo causa cada vez mais mortes, entre outras.

O eterno dirigente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abas, deu a nota dissonante entre os palestinos ao pedir autorização ao exército israelense para comparecer à cerimônia e homenagear Shimon Peres, sem escutar, como disse Ilan Pappe, a voz de suas vítimas.