Por: Leandro Olimpio, de Santos, SP
Quinze anos atrás, com 15 anos, tive meu primeiro emprego. Era num café no centro de Itanhaém, litoral de São Paulo. Limpava mesas, servia clientes, preparava café, assava salgados. Mas não só isso: a maior parte do tempo o café ficava sob minha responsabilidade, incluída aí a encomenda de novos produtos aos fornecedores. O patrão, invariavelmente, apenas recolhia o dinheiro ao final do dia.
Para realizar essas tarefas, de segunda a sábado, recebia 120 reais por mês. Achava injusto e alimentava uma raiva crescente contra essa situação. De uma forma sutil, confusa, em uma realidade microscópica, a luta de classes estava ali. Explorador, explorado.
Até que um dia resolvi me vingar: passei a furtar sorvetes. Volta e meia, ainda mais nos dias de maior movimento, quando percebia a disparidade entre trabalho desenvolvido e remuneração recebida, me trancava no banheiro e, sentado na privada, tomava um cremoso e caro sorvete da Kibon. Muitas vezes, não aproveitava. A pressa era inimiga do prazer. Aliás, o prazer estava no “prejuízo” causado ao patrão. Era uma vingança tola, ingênua, de nenhum efeito prático sobre o lucro da empresa.
No filme Aquarius, de Kléber Mendonça Filho, há uma cena fabulosa que me fez lembrar esse episódio particular. Revirando alguns álbuns de fotografia da família, Clara (personagem da Sônia Braga) se depara com a imagem de uma ex-empregada. Lembra muito bem de suas habilidades na cozinha, mas não recorda o seu nome. Com a leveza que o tempo e a vida abastada produzem, relembra sem rancor o dia em que a doméstica roubou algumas jóias da família. Fátima, irmã de Clara, insere no diálogo uma reflexão: “a gente explora ela, ela rouba a gente de vez em quando e assim vai…”.
A cena simboliza um dos muitos méritos do filme. É na sutileza dos diálogos e das relações pessoais que as contradições da classe média se apresentam, que as fissuras de uma sociedade desigual se manifestam até mesmo entre aqueles que entendem esse abismo, mas não abrem mão dos seus privilégios. O furto de Juvenita – Clara lembra o nome da ex-empregada alguns minutos depois – vira anedota naquela cena. O que restou foi um lamento quase debochado por ter de demitir uma cozinheira de mão cheia após esse episódio. Aliás, seu rosto, nome e pecado só foram ressuscitados por acaso, diante de uma foto aberta ao acaso. Juvenita, sem isso, nem mesmo permaneceria como parte da memória afetiva da família.
Clara está longe de ser uma heroína imaculada, a porta-voz da luta contra a especulação imobiliária – para quem não sabe, o fio-condutor do filme é a queda de braço travada por ela com uma empreiteira que tenta comprar o seu apartamento, o único ainda ocupado em seu prédio de poucos andares e arquitetura acanhada. Mas tampouco pode ser reduzida a uma pequena-burguesa hipócrita, sem autoridade para empreender essa luta, por sua posição privilegiada e inerentes contradições.
Clara é isso, um emaranhado de contradições. Nada mais real. A relação afetuosa com a empregada, Ladijane, está sempre subordinada a uma relação de patrão e empregado. Mas nem por isso menos honesta. A presença de Clara na festa de aniversário de Ladijane, a sua pequena homenagem-surpresa ao tocar piano para ela, nada disso é falso. Por outro lado, a intimidade e liberdade existentes é aquela que ela permite existir, no ritmo e espaço que ela permite existir e, por isso mesmo, carregada de autoritarismo, hierarquia. O filme expõe essas ambiguidades, só não se dispõe a reafirma-las de forma panfletária.
A luta pela permanência naquele prédio também tem suas contradições. Afinal, é motivada muito mais pela tentativa de preservar a memória afetiva guardada naquele pedaço de concreto do que por uma ideologia abstrata contra a especulação imobiliária. A indignação contra o expediente sujo usado pela empreiteira nessa disputa convive paralelamente às suspeitas de que seu irmão mais novo, um político da cidade, seja corrupto. Além disso, sabemos que a possibilidade dessa batalha é facilitada por sua condição financeira. Mas Clara também sabe disso e usa de maneira habilidosa em sua resistência, seja diante dos filhos que já não se importam com a memória afetiva do lar, seja diante dos donos da empreiteira. Se estivesse em Brasília Teimosa, a parte pobre de Recife, do outro lado do cano de esgoto, teria meios e fibra para resistir? Não restam dúvidas que são os seus cinco apartamentos e outros bens que lhe permitem rasgar a proposta da empreiteira sem nem mesmo saber quais as cifras em jogo.
É naquilo que para muitos se apresenta como uma controvérsia incomoda que reside o mérito de Aquarius. Seria um caminho menos arriscado tratar deste tema sob a ótica de um personagem dos excluídos. Seria mais seguro, como o cinema brasileiro ficcional e documental fez por muitos anos, abordar os dramas sociais do país sob o olhar do excluído, com uma narrativa explícita de denúncia.
Uma abordagem possível, mas tampouco a única e mais legítima. Não foram poucas vezes que, escondidos sob a força de um grande tema social, filmes ganharam notoriedade com falhas estéticas e éticas importantes. Não foram poucas vezes que diretores, parte dessa elite, falaram em nome do povo pobre. Kléber Mendonça, ao contrário, assumiu o seu lugar como parte dessa parcela de brasileiros privilegiados e optou conduzir a história através do olhar de Clara.
Aquarius nos mostra ainda que é possível fazer um filme com crítica social sem renunciar à arte, com delicadeza e as mais variadas camadas. Não se trata de uma obra monolítica, reduzida ao tema da especulação imobiliária. Há riqueza narrativa na luta pela preservação da memória, há sutileza e beleza na abordagem dos dilemas do envelhecimento e da sexualidade da mulher, há força na atuação dos personagens.
O filme, assim como a vida, não preenche uma série de lacunas. A motivação de Juvenita para furtar as jóias de Clara é uma delas. Eu, um ladrão adolescente de sorvetes, me permito fabular as razões que a levaram a praticar o furto. Juvenita simplesmente fez aquilo que muitos explorados já fizeram ou desejaram fazer: um pequeno ato de vingança, um gesto de rebeldia contra a exploração cotidiana, mesmo aquela praticada por patrões que lembram que somos “como se fosse da família”. Que fique entre nós, que seja nosso segredo. Depois que os anos passam, eles esquecem.
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