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CULTURA

Aquarius, uma crítica

Por: Marcia Camargos, de Paris, França

Na contramão do oba oba generalizado e das resenhas elogiosas aqui e no exterior, ouso dizer que Aquarius é mediano. O enredo gira em torno de uma escritora e crítica de música aposentada, de 65 anos de idade. Viúva, mãe de três filhos adultos, Clara reside em um apartamento repleto de livros e discos no Bairro de Boa Viagem, num edifício chamado Aquarius, de frente para o mar. Seu cotidiano tranquilo de idas a praia, farra com as amigas, passeios com o neto, almoços regados a vinho e literatura embalada por alguns “baseados” é quebrado quando um construtora resolve demolir o conjunto para erguer um novo espigão no espaço. Os representantes  da empresa conseguem adquirir quase todas as unidades, mas encontram uma inesperada resistência por parte daquela moradora ora “inconveniente”, ora “louca”. Decidida a permanecer no lugar onde criou a família, ela enfrenta com estoicismo o assédio contínuo, que vai de ofertas milionárias a ameaças, veladas ou não, para que venda o imóvel.

Fora a pressão da empresa, de vizinhos e parentes, Clara precisa lidar com as próprias necessidades amorosas e sexuais, em uma sociedade machista que segrega as mulheres da sua faixa etária. Transgressora, ela não hesita em recorrer a um garoto de programa quando o desejo fala mais alto do que a música de mil decibéis da festa “suruba”, organizada em cima do seu apartamento com o nítido intuito de a importunar. Clara venceu um câncer de mama, que deixou no seu corpo uma cicatriz indelével. Sua empregada doméstica e fiel escudeira esconde também a ferida de ter perdido um filho. O rapaz fora atropelado por um motorista bêbado, que escapou sem qualquer punição.

Dirigido por Kleber Mendonça Filho, em sua segunda experiência atrás das câmaras, o longa tem o mérito de deslocar o foco do eixo Rio-São Paulo. Ele mostra o cotidiano de uma integrante da classe média de Recife que, de certa forma, resume o Brasil atual e suas idiossincrasias, nas desigualdades sociais e na corrupção endêmica das altas esferas do poder. Entretanto, comete uma série de deslizes no desenrolar das suas 2,30 horas de exibição. Primeiro, poderia ter boa parte da gordura cortada, com ganho em agilidade, suprimindo cenas desnecessárias que se arrastam. Depois, tem uma abertura que, exceto pelas belas imagens do passado recente e dos ritmos saudosos da década de 1970, não esclarece a que veio, ou seja, não estabelece uma conexão com a trama que segue. O final, então, é constrangedoramente simplista, e aposta no gênero Hollywood, em que o mais fraco vence o mais forte. Melhor teria sido poupar o espectador de tal desfecho clichê, deixando-o em suspense sobre o destino de Clara e da sua cruzada de um homem só, quer dizer, de uma mulher só.

Se Aquarius não merece o título de “obra-prima”, por que tem lotado salas país afora e gerado tanta polêmica? A resposta é fácil. Ele caiu na boca e no gosto do povo porque acabou virando símbolo de um momento chave da nossa história política. Ele faz muitos, e sobretudo os descontentes com as perseguições a Dilma Rousseff, identificarem-se com a luta ao mesmo tempo justa e ingrata do personagem vivido por Sônia Braga. E não é apenas isso. Para além da trama, o que o projetou internacionalmente, dando-lhe uma aura de “desobediência civil”, foi um gesto inesperado e corajoso do elenco. No prestigioso Festival de Cannes, a equipe da única produção latino-americana selecionada entre os 21 filmes de 2016 para concorrer à Palma de Ouro, premiação máxima da maior competição cinematográfica francesa, surpreendeu as plateias do mundo inteiro. Ao pisar no tapete vermelho, e sob os holofotes da imprensa internacional em peso, os artistas exibiram cartazes denunciando o golpe brasileiro.

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A atitude louvável repercutiu nas redes sociais e alastrou-se num piscar de olhos. Na sua avant-première no Festival de Gramado, colheu gritos de “Fora Temer” ao fim da sessão.  O protesto foi replicado em diversas salas do país enquanto alguns internautas a favor do impeachement chegaram a organizar um boicote, no que foram apoiados por certo colunista on-line da revista Veja. Assim, as controvérsias terminaram por fazer dele uma espécie de bandeira, um emblema de resistência dos milhares que se manifestaram nas ruas, e continuam opondo-se ao presidente usurpador.

Na minha opinião, porém, Aquarius não é um grande filme, destes que nos trariam a estatueta do Oscar. Ele teve, antes, a sorte de capitalizar um sentimento nacional de extrema indignação e revolta, diante de medidas antidemocráticas e obscurantistas, que retiram os avanços sociais adquiridos a duras penas, num claro retrocesso político. Posto em outras palavras, ele apareceu no lugar certo, na hora certa.