Por Enio Bucchioni, de São Paulo
Num intervalo de cinco minutos essa frase foi repetida três vezes por um oficial do exército chileno. Eu a escutei com muita esperança. Fiquei observando se alguém se aproximaria da marquise bem em frente da tribuna de honra do Estádio Nacional do Chile. Em vão. Tulio não se apresentou na marquesina.
Eu estava do lado esquerdo, no setor de arquibancada, junto a algumas dezenas de milhares de prisioneiros naquele imenso campo de concentração improvisado pelos gorilas logo após o golpe militar de Pinochet em 11 de setembro de 1973. Operários e proletários em geral estavam ao meu lado, todos detidos naquele imenso campo de futebol.
Essa cena aconteceu uns 15 dias após o monstruoso golpe. No entanto, as notícias que chegavam ao Estádio Nacional apontavam para o assassinato de milhares de pessoas. Tudo levava a crer que meu amigo Tulio havia morrido.
A vida ou a morte a partir desse 11 de setembro era apenas obra do acaso. Dependia exclusivamente do comandante do batalhão que efetuasse a prisão. Quando eu fui detido na pensão onde morava e colocado num ônibus do exército, deitado e com o peito no chão, o comandante sussurrou para si mesmo:
”E pensar que meus pais e meus irmãos estão que nem esse cara em Valparaíso!”.
Como esse comandante, muitos soldados e até mesmo oficiais médios eram simpatizantes do Partido Socialista, ou do Partido Comunista Chileno. A ele eu devo a minha vida. No entanto, um soldado que o acompanhava, por mero prazer pessoal, passou levemente a ponta da sua baioneta sobre minha perna direita, abrindo um pequeno corte superficial de uns dois centímetros.
Conforme soube posteriormente, Túlio foi detido e levado para o Regimento Tacna, talvez o mais reacionário e fascista de todos, de onde não houve sobreviventes. Testemunhas que moravam nas cercanias do Tacna afirmaram que nas noites posteriores ao golpe era comum a saída de caminhões sobrecarregados de corpos de prisioneiros mortos pelos gorilas.
Tulio antes do exílio chileno
Se ainda estivesse entre nós, Túlio teria feito 70 anos no passado 6 de setembro. Fez engenharia na PUC-RJ, militava no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) – partido adepto da guerrilha – e foi um dos líderes do movimento estudantil da heroica juventude universitária da década de 1960. Seu pai, Ailton, foi dirigente do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão.
Segundo sua mãe, Dona Nairza, “Túlio foi preso em 1969 e esteve em nove prisões. Foi para a Polícia Federal, na Praça Quinze e ali foi torturado. Apanhou a noite toda de dois ou três bandidos. Depois de dois ou três dias, foi levado para Belo Horizonte. Lá, ele ficou no DOPS. Sofreu tortura psicológica. Colocaram ele num quartinho só com um vaso sanitário”. Essa foi a única parte que Túlio me contou posteriormente no exílio chileno. Era obrigado, quando tivesse sede, a beber água da própria privada que ele usava. Sua madrasta, D. Neusa, complementou ao dizer que ele “foi para a Polícia do Exército, na Vila Militar. Lá ele foi torturado com choques elétricos. Depois ele foi para o campo de Jerencinó, perto de Bangu e depois para a ilha das Flores. Voltou para Jerencinó para se recuperar. Quando o visitamos, ele tremia demais. Mas, não conseguiram arrancar nenhuma confissão dele!”.
Passados alguns meses Túlio foi liberado, mas, logo depois, foi condenado à revelia pela terceira auditoria do Exército. Por isto, decidiu pedir asilo no Consulado Chileno em setembro de 1970, um pouco antes da entrada de Allende no governo.
Tulio e o “velho” Mario Pedrosa
Aí ele conheceu e conviveu durante um certo tempo com o “velho” Mário Pedrosa, então com 70 anos. Em 3 de setembro de 1938, em Périgny, França, Mário representou várias partidos operários da América Latina no Congresso de Fundação da Quarta Internacional, com o pseudônimo de Lebrun, onde foi eleito para o Comitê Executivo Internacional (CEI) da Quarta Internacional. No Chile, já com 70 anos, ele não era mais um militante organizado, mas seus artigos contra a ditadura no antigo jornal Correio da Manhã eram magistrais, o que valeu para ele a perseguição e a busca do exílio.
O tempo de vivência em comum no Consulado chileno no Rio de Janeiro à espera do visto para deixarem o país fez com que o ‘velho’ convencesse Túlio sobre a política errada dos guerrilheiros da época, a metodologia voluntarista deles, o programa em geral reformista das organizações foquistas, bem como a degeneração da revolução russa de 1917 sob a batuta do stalinismo. Assim, sob a orientação do velho mestre, Túlio se transformou num revolucionário com ideologia trotskista.
Mário e Túlio foram morar juntos no centro de Santiago no segundo semestre de 1970. A casa deles logo virou um ponto de encontro de exilados já que Mário era uma personalidade reconhecida, e Tulio um militante sumamente respeitado.
O Ponto de Partida
Nesse contexto, nas reuniões e conversas entre os exilados que frequentavam a casa de Mario, é que Túlio fundou o pequeno grupo Ponto de Partida. Em dezembro daquele ano as organizações guerrilheiras sequestram o embaixador suíço no Brasil e, após um mês de negociações com a ditadura, o cônsul foi libertado em troca da liberdade de 70 militantes que foram para o exílio no Chile em janeiro de 1971.
É nesse contexto que Túlio e o núcleo original do Ponto de Partida lançam o documento “A Propósito de um Sequestro” no qual há uma luta ideológica frontal contra a ideologia, a política e os métodos dos guerrilheiros urbanos, recolocando, tal como Marx, as massas, o proletariado e suas mobilizações como o determinante na luta de classes e não os atos heroicos de uma vanguarda dissociada e desvinculada do movimento real das massas. Esse é o documento fundacional da nossa corrente, teoricamente válido, em sua essência, até os dias de hoje.
Assim, a estrada ficou delineada em seus termos gerais, dado que os integrantes do Ponto de Partida, desde o Brasil, eram contrários à visão reformista do velho PCB, agora, faziam a crítica profunda ao voluntarismo guerrilheiro e incorporavam a visão histórica e programática do trotskismo via o “velho” Mario Pedrosa. A entrada na militância orgânica na Quarta Internacional seria, assim, apenas uma questão de tempo.
Eu cheguei ao Chile em março de 1971 e, por mero acaso, Jurandir, meu conhecido da Universidade de São Paulo (USP), me levou para morar na república onde ele vivia com Túlio e Naná, Jones e Leila. Imediatamente ingressei no Ponto de Partida, pois, vindo da Ação Popular, já era contrário tanto ao reformismo do PCB quanto à guerrilha urbana. O documento “A Propósito de um Sequestro” caiu como uma luva em relação àquilo que eu defendia.
No entanto, passadas umas poucas semanas, o Ponto de Partida se dividiu. A estratégia de Túlio era de fazer crescer o Ponto de Partida através da entrada de novos militantes brasileiros no exílio chileno, já que uma avassaladora corrente autocrítica se apoderava dos milhares de brasileiros refugiados no país de Allende. Tratava-se, portanto, de se fazer um acúmulo primitivo de quadros para um futuro retorno ao país e a criação de um novo partido. Já o companheiro Jones optou por ter uma vida política por fora da colônia brasileira, participando, através de textos, da luta política e ideológica interna que se travava entre a minoria e a maioria do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).
Eu fiquei com Túlio. Jones adoeceu e ficou cerca de um ano muito afastado, assim como Jurandir, que pegou tuberculose.
O nome Ponto de Partida ficou com Túlio e ficamos com oito militantes. Jorge Pinheiro e Maria José Lourenço, a Zezé, ficaram com Jones. Não conheci Zezé no Chile e Pinheiro me foi apresentado quase ao final do governo Allende, quando eles ressurgiram na colônia brasileira sendo chamados de Ponto de Partida 2. Estávamos ultimando o processo de reunificação quando veio o golpe e a nova diáspora.
Nos três anos de Chile, o Ponto de Partida manteve discussões regulares com velhos trotskistas chilenos que se mantiveram no Partido Socialista. Com a chegada de Hugo Blanco, eles criaram tardiamente o PSR. Tivemos contatos com dirigentes do SU da IV Internacional, como Peter Camejo, do Socialist Workers Party (SWP) norte-americano e dirigente da minoria do Secretariado Unificado (SU). Enviamos um companheiro nosso para um curso de quadros no Partido Socialista de los Trabajadores (PST) argentino.
A continuidade dos Pontos de Partida após o golpe de Pinochet
Tinha 22 anos e Tulio, 26, quando nos conhecemos em Santiago. Nessa faixa etária a diferença de quatro anos é qualitativa. Jones devia ter o mesmo que Túlio. Eles foram, na verdade, os grandes artífices dos Pontos de Partida. Todavia, se Mário não tivesse existido, não creio que nós, sozinhos, chegássemos ao trotskismo. Mário foi o elo de ligação do Ponto de Partida com o antigo trotskismo chileno, e daí com a minoria da Quarto Internacional através da presença de Hugo Blanco no Chile.
Após o golpe, Pinheiro, Zezé, Valderez e Waldo Mermelstein conseguiram sair do Chile e foram diretamente encontrar o antigo PST na Argentina. Em seguida, de forma corajosa e destemida, em plena ditadura Médici, voltaram ao Brasil para construir a Liga Operária, antecessora da Convergência Socialista. Já Jones se exilou no Canadá.
O Ponto de Partida de Túlio se desintegrou. Eu fui preso, expulso do Chile e fui parar em novo exílio na França. Lá militei por quase um ano num pequeno núcleo da minoria do SU ao lado de Hugo Blanco, que havia saído do seu exílio na Suécia. Foi Hugo, ao voltar de algumas palestras em Lisboa após a Revolução dos Cravos, quem me convenceu a ir para Portugal e militar no pequeno Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) em 1975. Em fins da década de 1970 regressei ao Brasil, ingressando na antiga Convergência. Naná seguiu para o exílio na Itália e depois na França, onde até hoje trabalha com o Secretariado Unificado, não querendo mais retornar ao Brasil. Flavinha, nascida no Chile, filha de Túlio e Naná, é hoje uma das dirigentes do Nouveau Parti Anticapitaliste (NPA) na França. Os demais companheiros do nosso grupo se dispersaram por completo e nunca mais os reencontrei.
Lembranças do amigo Túlio
Ele era um jovem de bem com a vida, sempre sorridente, amável com todas as pessoas, tranquilo. Seu prazer maior era conversar com os amigos qualquer que fosse o assunto. Em reuniões políticas, era um excelente orador, muito comunicativo e bem didático. Era muito respeitado na colônia de exilados brasileiros e, como tal, suas opiniões eram ouvidas, ainda que totalmente destoantes das concepções guerrilheiras ainda reinantes até 1972-1973.
Torcia para o Flamengo e eu para o Palmeiras. Ele, como eu, jogava futebol muito bem. Aliás, ao lado de minha casa, em Las Lomas de Macul, extrema periferia de Santiago, havia um campo de futebol onde, nos primeiros dois anos de exílio, todos os sábados jogávamos uma “pelada”. Formamos até mesmo um time, com camisa e tudo, e disputamos jogos contra times de operários chilenos. Por casualidade, Túlio e eu formávamos o meio de campo dos exilados, junto com o Vermelho, militante do Partido Operário Comunista (POC). Paulo Sandroni, futuro secretário de transportes da gestão da Luiza Erundina era o nosso falso ponta-esquerda. Mares Guia batia um bolão na zaga. Seu apelido era Presidente, por ter exercido esse cargo no DCE da Universidade Federal de Minas Gerais. Vladimir Palmeira, um dos grandes líderes estudantis de 1968, de vez em quando aparecia em Macul, mas era péssimo, muito ruim mesmo com a bola nos pés. As camisas do nosso time ficavam na minha casa e, com o golpe, sumiram.
Muitas e muitas vezes Túlio e Naná passavam o sábado em minha casa. A diversão era conversarmos até altas horas da madrugada e os temas eram os mais diversos possíveis, desde a situação política no Chile, música, filmes e tudo o que inquietava ou chamava atenção aos jovens que éramos. Túlio adorava Chaplin e me lembro bem dele imitando o personagem do Chaplin no filme “O Circo”. Eles é que me convenceram a curtir jazz e blues, pois eu era muito nacionalista e só curtia música brasileira, desde Chiquinha Gonzaga, Almirante, passando por Noel Rosa até chegar em João Gilberto e Tom Jobim. Com eles aprendi a curtir Woodstock, Janes Joplin, Jimmy Hendrix e Joe Coker, entre outros.
Muitos e muitos anos se passaram quando nasceu um filho meu com minha querida companheira Deise. Chama-se Túlio.
Publicado originalmente no blog convergência: http://blogconvergencia.org/?p=2560
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