Por Matheus Gomes, de Porto Alegre
Como derrotar o governo Temer? Essa questão inquieta as milhares de pessoas que foram às ruas na última semana. Não esperem nas linhas abaixo uma fórmula mágica para cumprirmos essa missão, mas saibam que eu não a considero impossível. Mesmo que a vitória de Temer tenha significado uma demonstração de força da burguesia, que apoiou-se num golpe parlamentar e em mobilizações massivas da classe média, o rechaço ao governo ilegítimo é grande. O Instituto Ipsos divulgou uma pesquisa realizada no final de agosto, onde o índice de reprovação de Temer atingia 68% da população. Acredito que seja possível concluir empiricamente, a partir da composição etária das manifestações, que entre os jovens a rejeição é ainda maior.
Temer aplicará um pacote de maldades que, guardadas as diferenças e semelhanças, remete as medidas que estouraram a guerra social na Europa a partir de 2008. A massa de jovens e assalariados, os aposentados, os quase 12 milhões de trabalhadores sem emprego e, principalmente, o povo negro que esteve a parte das últimas manifestações, poderão se insurgir a partir do legítimo sentimento de oposição a retirada de direitos? As Jornadas de Junho de 2013 me fazem acreditar nessa hipótese. Foi em Junho que milhões de trabalhadores precarizados ocuparam as ruas e a denuncia do genocídio do povo negro ganhou peso através da campanha “Cadê o Amarildo?”, o que em nada se assemelha aos protestos verde-amarelos de 2015 e 2016¹. Por exemplo, no Rio de Janeiro em 20 de junho de 2013, a composição social das manifestações era a seguinte: 70,4% de manifestantes empregados, 34,3% recebendo até um salário-mínimo e 30,3% ganhando entre dois e três, com idade média de 28 anos². As jornadas foram perigosas aos donos do poder político, econômico e midiático por inspirarem reivindicações que só poderiam se concretizar atacando diretamente os seus privilégios, reduzindo suas taxas de lucro, diminuindo seu poder de decisão sobre temas cruciais nos grandes centros urbanos, como o transporte e a habitação.
É devido a esse conteúdo de classe que os nossos protestos são violentamente reprimidos, enquanto as manifestações verde-amarelas confraternizam e contam com a sua colaboração direta das forças de repressão. Não é pelo prejuízo dos contêineres arrastados ao meio das ruas de Porto Alegre que a Brigada Militar move dezenas de policiais, a Tropa de Choque, vários camburões e um helicóptero para perseguir manifestantes nos arredores da dispersão, em meio a crise da violência urbana na capital. A tática deles é disseminar o medo, associar os protestos a eventos hostis a população, enquanto, na realidade, estamos enfrentando os interesses da burguesia. O receio deles é que aqueles milhões de trabalhadores que fizeram o Brasil tremer em 2013 voltem às ruas³.
Enfim, está nítido que para derrotar Temer é preciso derrotar a repressão em suas diferentes formas, mas é possível que nós, “reles jovens e trabalhadores”, consigamos fazer frente a um inimigo tão poderoso?
O arsenal ‘legal’ do Estado aumentou depois de junho
É preciso que os ativistas que saem às ruas hoje conheçam o repertório de leis anti-movimento em vigência o Brasil4. Saibamos onde estamos pisando, caso o contrário não enfrentaremos o inimigo de forma consciente, nem denunciaremos suas arbitrariedades de maneira consequente. Sob o comando do antigo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo (PT), o aparato repressivo do Estado brasileiro se fortaleceu.
A primeira é a Lei sobre Organizações Criminosas (12.850/13), em vigor desde setembro de 2013, ela visa punir quem “promover, constituir, financiar ou integrar” manifestações consideradas subversivas. Se participarem adolescentes e funcionários públicos, a punição é superior. A delação premiada, nesse caso, a delação forjada por infiltrados ou policiais em atividades de investigação (leia-se P2), foi legalizada a partir dessa lei. A repressão não precisa mais de autorização judicial para ter acesso “a registros de ligações telefônicas e telemáticas, dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais”. Os manifestantes vinculados ao Bloco de Luta pelo Transporte Público de Porto Alegre tiveram suas residências invadidas pela polícia e hoje respondem processo em base a essa legislação. Infelizmente, eu sou um destes acusados.
Já a portaria 3.461/MD para Garantia da Lei e da Ordem, assinada pelo antigo Ministro da Defesa Celso Amorim em 20 de dezembro de 2013, resgatou as bases da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) da época do regime civil-militar. Manifestantes e criminosos são igualados e consideradores Forças Oponentes. As Forças Armadas estão autorizadas a agir em distúrbios urbanos, sinônimo de manifestações para os militares. Estes são definidos pela Portaria como bloqueio de vias públicas de circulação (um ato numa avenida qualquer), invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas (ocupações fazendas improdutivas, de escolas ou reitoria, por exemplo) e paralisação de atividades produtivas (greves). Por falar na DSN, após Junho, a Lei de Segurança Nacional voltou a ser utilizada contra manifestantes, na contramão do processo de revisão dos documentos da época da ditadura que ocorriam na época através da Comissão Nacional da Verdade.
A Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/16), em vigor desde maio desse ano, é a cereja no bolo para os governantes reprimirem as manifestações. Sob pressão do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF), órgão gerenciado por multinacionais, o Brasil entrou no rol dos países que possuem leis antiterrorismo. Mesmo que os movimentos sociais tenham sido retirados do texto, a definição vaga de terrorismo como ato de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”, abre um precedente para que sejamos enquadrados nessa legislação.
Ainda poderíamos nos referir a Lei Geral da Copa (Lei 12.663) ou Lei Geral das Olimpíadas (Lei 13.284), ambas sancionadas por Dilma, que abrem o precedente de instituições como a FIFA ou os Comitês Olímpico e Paraolímpico, instituírem regras de criminalização dos movimentos sociais no território nacional. Lidamos também com a falta de garantias para atuação dos advogados; a “farra” das detenções arbitrárias para averiguação; além do desrespeito permanente as garantias constitucionais de defesa.
A tendência do governo Temer é intensificar a aplicação dessas legislações. O novo Ministro da Justiça é tenebroso Alexandre de Moraes, acusado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo de advogar em 123 processos da Transcooper, cooperativa envolvida em lavagem de dinheiro para o Primeiro Comando da Capital (PCC). Já a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), agora é comandada pelo oficial de inteligência Janér Tesch Hosken Alvarenga, que atuará em parceria com o Ministro Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, o General Sérgio Etchegoyen. Se durante os governos Lula os gastos com a ABIN já haviam aumentado 44% e no governo Dilma a Agência foi a responsável por 50% dos gastos sigilosos do governo, ou mais de R$ 10,5 milhões, agora o “investimento” se ampliará, ou seja, crescerá o monitoramento e a perseguição aos movimentos sociais para tentar coibir a revolta nas ruas contra os planos de Temer.
A necessidade de autodefesa do movimento
Citei acima as legislações anti-movimento, não vou entrar nesse texto num detalhamento dos destacamentos policiais que tem como função principal a perseguição as manifestações e a violência contra o povo negro nas periferias, como o BOPE (RJ), ROTA (SP), BOE (RS), nem em outras iniciativas criadas no último período, como a Tropa do Braço (SP). Mas quem acompanha as manifestações, seja participando diretamente ou através das redes sociais, sabe que a repressão policial ocorre quase sempre sem justificativa alguma. Em Junho nas manifestações de Porto Alegre, bastava chegarmos a esquina das Avenidas João Pessoa com Ipiranga para as bombas começarem a explodir, sem qualquer ação de depredação ou coisa parecida. Aos manifestantes só restava uma opção: se defender da forma como podiam. Acredito que a autodefesa pode e deve ser uma ação organizada e isso é parte da tradição histórica dos movimentos sociais.
Os estudantes secundaristas das ocupações nos deram um bom exemplo disso: a maioria das escolas ocupadas organizava a sua comissão de segurança, que era responsável por gerir o espaço físico, estabelecia determinadas regras, monitorava as pessoas que circulavam no espaço e também tentava organizar os estudantes para agir de maneira organizada diante de grupos provocadores e até mesmo da repressão policial. Nos protestos de rua, também é possível estabelecer mecanismos de defesa coletiva, mas os movimentos precisam tratar com mais prioridade a organização de destacamentos que organizem a resistência a repressão, defendam de fato o direito de liberdade de expressão e organização dos manifestantes. Nas ocupações urbanas e rurais, essa prática é comum, entretanto, o grau de repressão as mobilizações nas ruas das grandes cidades e também nas greves, como vimos na repressão brutal aos servidores públicos do Paraná em 2015, colocam essa necessidade ao conjunto desses movimentos.
Há que se debater os efeitos da tática Black Block no Brasil nos últimos anos nesse terreno. A fórmula Estadunidense da tática, que consiste na realização de atos de depredação simbólica do capital, predominou em nosso país sobre a fórmula alemã, que consistia na organização de grupos de autodefesa que enfrentavam a repressão policial e a ação de agentes infiltrados6. Creio que a ação dos adeptos da tática não ajudou a constituir um senso de coletividade no movimento sobre a necessidade de defender-se da repressão, pois seus sujeitos foram vistos como elementos a parte dos debates e ações coletivas, que agiam da maneira como bem entendiam. Outra questão relevante foi a fragilidade do movimento frente ao tema das infiltrações de provocadores. Passados três anos de seu estopim no Brasil, é possível mensurar o impacto político geral da tática e creio que não foi dos melhores, pois a narrativa construída em torno dos Black Blocks a partir da grande imprensa é um marcador do arrefecimento dos protestos pós-Junho e forneceu o ponto de apoio para a ofensiva criminalizadora de 2014, a partir da tragédia ocorrida no Rio de Janeiro com o jornalista da BAND.
Também não creio que a preparação de embates militares seja a saída aos manifestantes, não há forças para se impor sobre o inimigo nessa perspectiva atualmente, nem condições de ganhar a opinião pública para o nosso lado dessa forma. Sobre as forças de repressão, a tradição marxista defende a tática de inserir a luta de classes no interior de suas fileiras, ou seja, na hora do acirramento dos enfrentamentos, saber utilizar o fato de que as condições de vida dos agentes da repressão, em sua maioria, não se diferenciam das nossas e a estrutura de privilégios da burguesia também existe no interior dessas instituições e atuar a partir daí para dividir suas forças (em síntese, usar a frase pichada recentemente num muro da Cidade Baixa: “cada bomba custa R$ 800 e você recebe parcelado). Sem pestanejar nos enfrentamentos e organizando os destacamentos de autodefesa, lutar politicamente para que uma parcela passe para o lado dos trabalhadores, em nada se confunde com apologia ao pacifismo ou a estratégia Gandhi e Luther King de não-violência, pelo contrário, prepara as massas para os embates mais duro que os de hoje. Mesmo que na atual conjuntura essa hipótese dificilmente se concretize, deve ser guardada como estratégia, porque as revoluções sociais que já ocorreram na história nunca se concretizam sem o desenvolvimento desse fenômeno.
Defendemos desde já que as organizações do movimento discutam esse tema, organizem estudos, recuperem experiências históricas, façam oficinas, organizem seus destacamentos, debatam entre os seus, mas principalmente com o conjunto da sociedade a necessidade de organizar coletivamente a sua autodefesa, pois não há outra forma de resistência a não ser essa.
Ganhar o apoio popular, jamais temer
Na quinta-feira, 13 de junho de 2013, os grandes jornais de São Paulo clamavam em coro por repressão policial as manifestações contra o aumento das passagens. A Polícia Militar de Alckimin montou uma estratégia de guerra e reprimiu brutalmente manifestantes, jornalistas, transeuntes, moradores que assistiam as cenas de terror nas janelas, crianças, idosos. Eles só não esperavam que tiro sairia pela culatra. No dia seguinte a barbárie, a opinião pública unificou-se contra a repressão, três dias depois o Brasil explodiu e ouvia-se o coro inesquecível “que coincidência, não tem polícia e acabou a violência”.
Acredito que a lição maior de Junho nesse terreno é que a maneira mais eficaz de derrotar a repressão é através da luta de massas. Em certa medida, o que vimos na Av. Paulista no último domingo dialoga com essa lição. Alckimin proibiu o protesto, Temer autorizou o uso do Exército, mas dezenas de milhares se uniram e demonstraram a força do movimento.
Mesmo com o arcabouço de medidas legais que dispõem os governantes, o apoio popular é sempre a medida de sua utilização. Por esse motivo, nós não podemos desprezar a consciência das massas para pensar o desenvolvimento de nossas ações, táticas isoladas que não levem em consideração as inflexões do pensamento popular não servem para desenvolver o movimento, nosso foco é ganhar a maioria, hoje, mais precisamente, sair da defensiva e passar a dianteira com condições de apresentar uma alternativa política ao povo negro e trabalhador.
O revolucionário russo Victor Serge, em seu célebre estudo sobre as forças de repressão do antigo regime russo, afirmou que nenhum esquema repressivo era capaz de deter a forças das massas em rebelião. Por isso, é preciso conhecer as armas que o inimigo possui, mas não é hora de temer a repressão, é o momento de trabalhar conscientemente para conquistar o coração da população trabalhadora do nosso país, para que seu gigantismo se imponha ante a repressão da minoria que ordena os ataques. Assim, nada nos deterá!
Notas:
¹ Quando analisamos Junho é necessário que falemos da operação de captura das manifestações, realizada pela grande mídia. A partir de 17 de junho, surge a narrativa dos manifestantes pacíficos e verde-amarelos versus os baderneiros associados as organizações de esquerda; também data daí a inserção da pauta da corrupção nas manifestações, a partir desses mesmos veículos de comunicação. Nas manifestações de 20 de Junho, estouram confrontos de proporções consideráveis entre organizações de esquerda e grupos organizados por bandos fascistas, o eco do “sem partido” se consolida. As manifestações de 2015 e 2016 são uma ruptura com a proposta que impulsiona Junho, que é vinculada a movimentos como o MPL e o Bloco de Lutas de Porto Alegre, entretanto, não podem ser entendidas fora desse contexto.
²As informações da pesquisa foram retiradas do artigo de Ruy Braga, “Sob a sombra do precariado” na coletânea “Cidades Rebeldes”, publicado pela Boitempo (2013).
³O balanço das greves de 2013 apontar um crescimento de 134% com relação a 2012, acredito que Junho tem relação direta com esse fenômeno. O estudo pode ser conferido em http://portal.andes.org.br/imprensa/noticias/imp-ult-973892801.pdf
4Uma análise mais completa dessa nova legislação pode ser encontrada no relatório sobre criminalização dos movimentos sociais produzido pela equipe jurídica do PSTU em 2013.
5O cientista político Pablo Ortellado no livro “Mascarados: a verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc”, publicado pela Geração Editorial (2014), faz uma breve, mas qualitativa análise no artigo intitulado “O Black Bloc e a violência”.
Foto: Julia Gabriela / Esquerda Online
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