Por Waldo Mermelstein, de São Paulo, SP
Há cerca de 40 dias, a Turquia foi palco de um controvertido golpe de estado. De forma descoordenada, oficiais das forças armadas tentaram derrubar o governo do presidente Erdogan. A reação popular à memória das ditaduras militares dos anos 70 e 80 e a falta de apoio levaram à rápida derrota dos golpistas. Cenas de populares nas ruas cercando os tanques deram dimensão dramática àquela noite.
Nem bem acabou a revolta, o governo aproveitou a comoção no país para lançar uma ofensiva contra a oposição, genericamente chamada de golpista. Juntamente com os funcionários e militares supostamente ligados à organização religiosa Hizmet, liderada pelo líder religioso Fetulah Gulen, atualmente exilado nos EUA, milhares de funcionários públicos, incluindo 15.000 trabalhadores da educação, foram demitidos, muitos presos.
O governo conseguiu convocar grandes manifestações públicas para fortalecer sua recém-readquirida legitimidade. O estado de emergência foi decretado, o que possibilita governar por meio de decretos do Poder Executivo. A Convenção Europeia de Defesa dos Direitos Humanos foi suspensa “provisoriamente”. Já nos primeiros dias após a tentativa de golpe, foram registrados ataques de grupos ligados ao partido do governo, o AKP, contra bairros das minorias curda e alevita.
Mas a verdadeira obsessão do estado turco continuava e continua a guiar Erdogan: os cerca de 28 a 30 milhões de curdos, a maior nação sem estado do mundo, dos quais mais ou menos a metade vivem na Turquia, distribuídos entre o Sul e as grandes cidades. Há cerca de 30 anos, uma forte resistência curda luta pelos direitos mais elementares como o de falar e estudar em seu idioma e a autonomia de suas regiões.
Ofensiva Turca na Síria
A partir da invasão americana ao Iraque nos anos 1990, uma zona curda autônoma foi estabelecida no norte do país. Nesta região, agregaram-se os cada vez maiores bolsões curdos do Norte da Síria, a partir da desagregação do país com a violenta reação da ditadura de Assad à primavera árabe em seu país a partir de 2011. É a chamada região de Rojava, que tem inclusive uma proto-estrutura estatal.
Após alguns dias de pausa, pois boa parte dos altos oficiais militares que comandam a repressão aos curdos no sul da Turquia tinha sido presa acusados de participar da tentativa de golpe, a rotina de bombardeios aéreos contra as posições curdas no sul do país recomeçou.
No dia 9 de agosto, um encontro entre os Putin e Erdogan selou uma aparente mudança estratégica na posição de ambos os países. Depois da derrubada de um avião russo pela força aérea turca na fronteira com a Síria, em novembro de 2015, as relações ficaram muito tensas entre os dois países, e qualquer ação militar turca no território sírio seria retaliada por Moscou. A recente reunião, no entanto, sinalizou acordos que começam a ficar mais claros nesta semana.
A partir de quarta-feira (24), forças turcas, incluindo aviões e tanques, cruzaram a fronteira em operação conjunta com as forças rebeldes, apoiadas pela aviação americana, para desalojar os soldados do autodenominado Estado Islâmico da cidade de Jarablus.
Mas o objetivo turco, nada dissimulado, era o de evitar que, no vazio da retirada do Daesh (Acrônimo árabe para o Estado Islâmico), as forças curdas conseguissem unificar seus enclaves no norte do país em um território contínuo, o que significaria que controlariam a fronteira com a Turquia. Uma continuidade territorial poderia se desenhar, pois os curdos são maioria na região do lado turco, o que causou enorme temor no governo de Ankara.
O fato notável é que a maior ofensiva já realizada pela Turquia na Síria, em uma região tão disputada do país, ocorra sob o silêncio iraniano, com declarações protocolares dos russos no sentido de que “compreendem” a atitude turca, reclamações rotineiras do regime de Assad e, crucialmente, sob a aprovação e apoio americanos. Além da cobertura aérea, o vice-presidente americano Joe Biden, em visita a Ankara, no dia 24, o mesmo dia do começo da operação, anunciou sua “compreensão” pela preocupação da Turquia e assegurou que as forças curdas recuariam para a margem leste do Rio Eufrates, e não ocupariam o espaço vazio deixado pela retirada do Estado Islâmico, numa tentativa de aplacar os governantes turcos.
Ao mesmo tempo, revelando que há intensas negociações entre os americanos e as potências regionais, nem Irã, nem Rússia disseram nada sobre a operação.
Um novo equilíbrio instável surge da incursão turca, mas ao entrar no terreno da guerra civil síria, Erdogan pode estar, como outros antes no Oriente Médio, avançando além do que permite uma situação com tantos interesses conflitantes. O Secretário de Estado John Kerry, dos EUA, e o Ministro das relações exteriores da Rússia devem discutir em Genebra esse novo quadro.
Foto: Firas Faham – Anadolu Agency
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