Por Raquel Varela
Numa banal conversa entre amigos, em que se debatia a infantilização dos jovens e a ausência de participação política destes, uma amiga confessou-nos irónica que saiu de casa porque o filho, com mais de 20 anos, não saía. «Saí eu, mudei de cidade, era a única forma de o tipo se desenrascar…»
Rimo-nos. O humor é o princípio do prazer contra o sofrimento, escreveu André Breton. O que aconteceu aos jovens em Portugal nas últimas quatro décadas? A resposta a esta pergunta pode ajudar-nos a compreender o futuro. Porque indagar o que aconteceu aos jovens é olhar para o que aconteceu ao País todo: a reconversão do mercado de trabalho, a erosão da Segurança Social, a perda de força do sindicalismo, e a facilidade com que cortaram os salários dos setores médios a partir de 2011. Pode-se pressagiar a crise do regime democrático-representativo respondendo a esta simples questão: o que aconteceu à geração nascida no pós-25 de Abril?
No final dos anos 80 e 90 enviaram-se os pais para a pré-reforma ou negociou-se com sindicatos cláusulas que mantinham para «os de abril» os direitos, e os que se seguiam, os filhos, eram precarizados.
E foram estes pais que, direta e indiretamente, pagaram a precariedade dos filhos. Por um lado, mantendo-os em casa até aos 30, 40 anos; por outro, financiando a Segurança Social, que criou os programas assistencialistas que evitariam «revoltas sociais» — expectáveis, diz temeroso o Banco Mundial. expectáveis com o crescimento dos baixos salários, da precariedade laboral e da perspetiva de imobilidade social ou regressão dos padrões de vida. Imobilidade e regressão social significam viver ou ter a expectativa de vir a viver pior do que os pais.
Precariedade quer dizer desemprego. Desemprego quer dizer pressão sobre os salários ou meios de vida de todos. Dos que estão empregados e dos que estão desempregados. Construiu-se para isto uma explicação psicológica, que advogava esta ideia simples: uma espécie de protecionismo maternal, que levaria os filhos a permanecer em casa dos pais até tarde, porque as mães não se conseguiam separar deles… Simples a ideia. Mas errada. Não há, em sociedades complexas, urbanizadas, escolarizadas, explicações redutoras para fenómenos complexos. Se existem é porque são sombras da realidade, com alguns laivos de verdade — todas as boas mentiras têm sempre um pedaço de verdade … Mas as mães católicas — que eram mais católicas nos anos 60 do que são hoje — foram para França e deixaram cá os filhos; outras choraram a assistir à partida dos filhos para a guerra contra a libertação das colónias; milhares viram-nos partir para Lisboa, num salto do campo para a cidade, da aldeia camponesa para a cidade do trabalho fabril. Não os prenderam em casa por um impulso narcísico para impedir a perda desse afeto incondicional…
Na verdade, não foram as mães que nos anos 90 não se conseguiram separar dos filhos. A estrutura de acumulação do País nos últimos 40 anos, mas sobretudo a partir da década de 90, esteve assente em reestruturar a economia de forma a aproveitar todas as «vantagem e possibilidades» (mão de obra mais barata) abertas com o incremento da globalização. Possibilidades que estavam longe de incluir algo como a racionalização produtiva, uma produção equilibrada e planeada de bens de uso e serviços, alta qualificação da força de trabalho. O modelo dos baixos salários juntou-se a garantias de investimento privado, parcerias público-privadas, desequilíbrio na captação de impostos (mais sobre o trabalho, 75% de todos os impostos, do que sobre o capital). Este projeto era evidentemente incompatível com os direitos conquistados nas lutas sociais da revolução.
A luta por aumentos salariais e direitos, de um lado, e, do outro, a manutenção ou elevação das taxas de lucro não pode ser uma guerra familiar, em que a família paga o salário e é ao mesmo tempo o Estado social, a família-social. A maior fatia dos desempregados dependia, em 2001, da família (35,4%) e só em segundo lugar do subsídio de desemprego (31,3%). Entretanto, esses números revelam-nos duas outras informações preciosas. Se compararmos o Censo de 2011 com o de 2001, podemos observar que enquanto a proporção de desempregados a viverem dependentes da família caiu em 10 anos (era de 42,8%) o número de dependentes do subsídio de desemprego permaneceu quase inalterado. O assistencialismo do rendimento mínimo garantido (RMI), principal fonte de rendimento para 2,6% do total dos desempregados em 2001, eleva-se para 6,7% com o rendimento social de inserção (RSI) em 2011. Foi impressionante o crescimento do trabalho informal, de 9% em 2001 para 15,7% em 2011. É também importante recordar que o número de desempregados de referência para o Censo de 2011 (662 180 desempregados) era quase o dobro do número do Censo de 2001 (339 261). Além disso, esses valores não consideram os chamados inativos disponíveis e o emprego parcial, que na maioria dos casos partilham uma estrutura de relações laborais semelhante à dos desempregados. A tendência é para estas pessoas deixarem de viver da família e passarem a vegetar, a morrer lentamente; ou recorrerem ao trabalho informal, em grande medida porque a queda progressiva dos salários leva a que os pais não consigam mais sustentar os filhos, ou se revoltem. «Ou sai de casa ele ou eu» é uma espécie de grito de mãe, metafórico, uma expulsão do conflito social da família para o obrigar a regressar ao lugar de produção — a fábrica, a empresa, o serviço.
Um trabalhador precário ganha em média quase 40% menos do que um trabalhador com direitos, o que significa que não consegue descontar para a Segurança Social ou desconta um valor muito baixo. Significa também que ciclicamente está desempregado. A UE e os governos, de maioria absoluta de Cavaco Silva entre 1985 e 1995, ponderaram que a criação de uma massa de desempregados e precários (precários que ciclicamente entram no desemprego) implicava inevitavelmente a criação de programas de cunho estrutural para evitar revoltas sociais desta camada de «eternos jovens»: subsídio de desemprego, extensão deste subsídio, rendimento mínimo, RSI, agora cantinas sociais, etc. Numa palavra, a assistência social para gerir o desemprego, organizada ou financiada pelo Estado em troca da redução dos custos das empresas privadas. A assistência social — é preciso acentuar isto — não é o Estado social. A assistência é focalizada, ou seja, é para gerir o desemprego e a pobreza, decorrente deste e dos baixos salários. E é arbitrária. Quem decide quem recebe o quê? O Estado social é de todos e para todos, tem um caráter de universalidade, não está dependente da discricionariedade do Governo de turno e seus subordinados.
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