Edgardo Lander
O principal motivo para a crise que hoje atravessa a Venezuela, mas obviamente não a única causa, foi o colapso dos preços do petróleo ao longo dos últimos três anos. Em 2013, o preço médio do petróleo venezuelano foi de 100 dólares, em 2014, baixou para 88,42 dólares e, em 2015, para 44,65 dólares. Em fevereiro 2016, o petróleo chegou ao nível mais baixo, com um preço médio de 24,25 dólares.1 O governo do presidente Chávez, longe de assumir que uma alternativa ao capitalismo tinha necessariamente de ser uma alternativa ao modelo predatório de desenvolvimento do crescimento sem fim, longe de questionar o modelo rentista do petróleo, o que fez foi radicalizá-lo a níveis historicamente sem precedentes no país. Nos 17 anos do processo bolivariano, a economia foi-se tornando sistematicamente cada vez mais dependente das receitas do petróleo, receitas sem as quais não é possível importar bens necessários para satisfazer as necessidades básicas da população, incluindo uma ampla gama de produtos que antes eram produzidos no país. Durante estes anos, deu-se a prioridade à política assistencialista sobre a transformação do modelo económico, reduziu-se a pobreza sem alterar as condições estruturais da exclusão.
Identificando socialismo com estatismo, mediante sucessivas nacionalizações, o governo bolivariano expandiu a esfera estatal muito para além da sua capacidade de gestão. Em consequência, o estado é agora maior, mas também mais débil e mais ineficaz, menos transparente, mais corrupto. A prolongada presença militar na gestão de organismos estatais contribuiu significativamente para estes resultados. A maioria das empresas que foram estatizadas, nos casos em que continuaram a operar fizeram-no graças ao subsídio das receitas do petróleo. As políticas sociais, que melhoraram significativamente as condições de vida da população, tal como as múltiplas iniciativas de solidariedade e integração no contexto latino-americano, só foram possíveis graças aos elevados preços do petróleo. Ignorando a experiência histórica em relação ao caráter cíclico dos preços das commodities, o governo agiu como se os preços do petróleo se fossem manter indefinidamente acima de cem dólares por barril.
Uma vez que o petróleo passou a constituir 96% do valor total das exportações, a quase totalidade das divisas que entraram no país nestes anos foi por meio do Estado. Através de uma política de controle de câmbios, acentuou-se uma paridade insustentável da moeda, o que significou um subsídio ao conjunto da economia. Os diferenciais de taxa de câmbio que caracterizaram esta política chegaram a ser de mais de cem para um. Isto, juntamente com a discricionariedade com que os funcionários podem dar ou não as divisas solicitadas, fez com que a gestão das divisas se tornasse a espinha dorsal da corrupção no país.2
No tempo das vacas gordas toda a receita fiscal extraordinária foi gasta, incorrendo-se mesmo em elevados níveis de endividamento. Não se criaram fundos de reserva para quando os preços do petróleo descessem. Quando estes colapsaram, o inevitável aconteceu, a economia entrou numa recessão profunda e prolongada e o projeto político do chavismo começou a meter água.
O PIB caiu 3,9% em 2014 e 5,7% em 2015.3 Para 2016, a Cepal prevê uma queda de 7%.4 Há um importante e crescente défice fiscal. Segundo a CEPAL, a dívida externa duplicou entre 2008 e 20135. Ainda que em percentagem do PIB não seja alarmante, a redução drástica das receitas em divisas dificulta o seu pagamento.6 Houve uma forte queda das reservas internacionais. Em junho de 2016, as reservas representavam 41% do montante correspondente no final de 2012.7 O acesso a novos financiamentos externos está limitado pela incerteza sobre o futuro do mercado petrolífero, a falta de acesso aos mercados financeiros ocidentais e as muito elevadas taxas de juros que são exigidas atualmente ao país.
Acresce a isto que a taxa de inflação é a mais alta do planeta. Segundo dados oficiais, em 2015 a inflação foi de 180,9%, e a inflação dos produtos alimentares e bebidas não-alcoólicas foi de 315%.8 E, certamente, está subestimada. Não há dados oficiais disponíveis, mas a taxa de inflação na primeira metade deste ano, particularmente nos produtos alimentares, foi muito superior à do ano anterior.
Esta severa recessão económica poderá levar a uma crise humanitária. Há uma escassez geral de alimentos, medicamentos e produtos domésticos. As famílias venezuelanas têm de passar mais tempo percorrendo estabelecimentos e fazendo filas em busca de alimentos que não estejam além do seu poder de compra. Está a produzir-se uma redução significativa no consumo de alimentos por parte da população. Da situação em que a FAO fez um “reconhecimento de progressos notáveis e excecionais na luta contra a fome”, baseada nos dados até ao ano de 2013, assinalando que havia uma proporção de menos de 6,7% de pessoas subnutridas,9 passou-se para uma situação de crescente dificuldade na obtenção de alimentos e onde a fome se tornou um tema de conversa de todos os dias. De acordo com as últimas estatísticas oficiais, a partir de 2013 veio produzindo-se uma descida sustentada no consumo de praticamente todos os tipos de alimentos. Em alguns casos de forma muito pronunciada. Entre o segundo semestre de 2012 e o primeiro semestre de 2014, o consumo de leite reduziu-se para menos de metade.10 Estes dados são anteriores ao aprofundamento da escassez e da inflação, que ocorreram no último ano. As sondagens registam que é cada vez maior o número de famílias que deixou de comer três vezes ao dia, aumentando mesmo a percentagem de famílias que afirma que só come uma vez por dia. De acordo com o inquérito Venebarómetro, a grande maioria da população (86,3%) afirma que compra menos ou muito menos comida do que antes.11
No campo do acesso a medicamentos e serviços de saúde, a situação é igualmente crítica. Os hospitais e outros centros de saúde apresentam elevados níveis de escassez de produtos básicos e falta de equipamentos e instrumentos médicos devido a limitações no acesso a peças de reposição e outros materiais, nacionais ou importados. Nos hospitais e centros de saúde, é comum que só se possa atender e alimentar os doentes se a família puder fornecer os produtos e alimentos necessários. São frequentes as suspensões de operações devido à falta de equipamentos, produtos ou pessoal médico. Pacientes que necessitam de diálise não recebem tratamento. Escasseiam severamente os medicamentos indispensáveis para o tratamento de doenças como a diabetes, a hipertensão e o cancro.
O governo não reconhece a possibilidade de o país estara entrar numa situação de emergência que requeira ajuda do exterior. Por um lado, porque isso seria visto como uma admissão do fracasso da sua gestão. Mas também para impedir que esse reconhecimento possa servir como porta de entrada para aoperação de dispositivos de intervencionismo humanitário, armado se considerado necessário, cujas consequências são bem conhecidas.
Nos últimos anos, o governo lançou várias operações e mecanismos de distribuição de alimentos, que foram de curta duração e, em geral, falharam por ineficiência e altos níveis de corrupção. Não conseguiram desmantelar as redes mafiosas, governamentais e privadas, que operam em cada um dos elos das cadeias de comercialização, dos portos à venda a retalho. Por outro lado, todos esses mecanismos têm estado concentrados na distribuição, sem abordar de forma sistemática a profunda crise existente na produção nacional.
A mais recente iniciativa são os Comités Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), orientados principalmente para a venda, diretamente em casa, de sacos com alimentos subsidiados. Foi este mecanismo muito polémico, entre outras coisas porque não há alimentos disponíveis que cheguem a todos, e por operarem através das estruturas do partido (PSUV). Com muito pouco tempo de funcionamento, já foram feitas múltiplas denúncias tanto pelo seu caráter político excludente dos que não se identificam como partidários do governo, como, mais uma vez, por corrupção.
Com exceção de Caracas, durante meses, em 2016, houve racionamento de energia elétrica, com a suspensão do serviço por quatro horas por dia.12 Para poupar eletricidade, os estabelecimentos públicos em todo o país só trabalham dois dias por semana, durante meses e com um horário diário reduzido, enfraquecendo ainda mais a limitada capacidade de gestão do Estado venezuelano. A distribuição de água foi racionada, afetando desproporcionalmente os setores populares. Há também uma grave crise nos transportes públicos devido à falta de peças de reposição, mesmo as mais comuns como baterias e pneus.
Tudo isto se traduz numa grave deterioração das condições de vida da população, levando à perda acelerada de melhorias sociais que se tinham conseguido em anos anteriores. O governo deixou de publicar, ou só publica com muito atraso, a maior parte das principais estatísticas económicas e sociais. Por isso, as únicas fontes atualizada ssão alguns estudos universitários e sondagens privadas.13 No mais recente estudo divulgado por um projeto interuniversitário,14 sobre rendimento e capacidade de aquisição do que definem como a cesta padrão de alimentos, caracteriza-se como pobre 75,6% da população e metade da população como extremamente pobre.15 Isto, mais do que uma deterioração, é um colapso do poder de compra da maioria parte da população.
A redução do poder de compra é generalizada, mas não afeta por igual todos os setores da população, o que provoca um aumento das desigualdades sociais. A redução das desigualdades de rendimento tinha sido uma das conquistas mais importantes do processo bolivariano. A atual deterioração do poder de compra afeta em primeiro lugar quem vive de um rendimento fixo, como salários e pensões. Ao contrário, quem tem acesso a divisas que compram cada vez mais bolívares, e aqueles que participam nos múltiplos mecanismos especulativos chamados bachaqueo (mercado negro), com frequência acabam favorecidos pela escassez/inflação.
Nas condições atuais, o governo já não conta com os recursos que seriam necessários para abastecer a população através de programas massivos de importação de alimentos. Pelas mesmas razões, a incidência das políticas sociais, as Misiones, é marcada por uma deterioração acentuada.
Pela via dos fatos, a política económica do governo opera como uma política de ajustamento que contribui para a deterioração das condições de vida da população. Deu-se prioridade ao pagamento da dívida externa sobre as necessidades alimentares e de saúde da população venezuelana. Segundo o vice-presidente para a Área Económica, Miguel Perez Abad, a Venezuela cortará, neste ano, as importações substancialmente, para cumprir os compromissos da dívida.16 Foi anunciado que o montante total de divisas disponível para importações não petrolíferas em 2016 será de apenas 15 mil milhões de dólares17, o que representa um quarto do volume das importações de 2012. E, no entanto, o presidente Maduro informou que “… o estado venezuelano pagou nos últimos 20 meses 35 mil milhões de dólares aos credores internacionais… “18 Isto é extremamente grave, tendo em conta os elevados níveis de dependência que a alimentação básica da população tem das importações.
Várias propostas têm vindo a ser formuladas tanto por organizações políticas e académicas como por movimentos populares, sobre possíveis maneiras de obter os recursos necessários para responder às necessidades urgentes da população. Entre estasdestaca-se a Plataforma de Auditoria Pública e do Cidadão,19 que exige a realização de uma investigação completa dos extraordinários níveis de corrupção com que operaram os processos de entrega, por parte de organismos do Estado, de divisas subsidiadas para as importações.20 Esta auditoria iria começar os processos de recuperação dos recursos subtraídos à nação. Esta possibilidade foi rejeitada pelo governo. Seria abrir uma caixa de Pandora que, certamente, implicaria tanto altos funcionários públicos, civis e militares, como empresários privados.
Igualmente importante seria a realização de uma auditoria da dívida externa, a fim de identificar que parte desta é legítima e que parte não é. A partir daí, propor-se-ia uma renegociação das condições de pagamento da dívida, partindo do que é prioritário para responder às necessidades imediatas de alimentação e de saúde da população sobre o pagamento aos credores. Defendeu-se igualmente a conveniência de um imposto extraordinário sobre os bens de venezuelanos no exterior, assim como uma reforma fiscal para aumentar a contribuição das grandes fortunas, especialmente do setor financeiro, que pagam taxas muito baixas.
Nada disto, é claro, teria impacto se não se criassem mecanismos efetivos de controle social para assegurar que, neste contexto de corrupção generalizada, esses bens chegam a quem deles necessita.
Primeira parte do artigo “A implosão da Venezuela rentista”21 de Edgardo Lander , publicado em julho de 2016 em aporrea.org. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net
1 Nos meses de maio e junho de 2016 houve uma lenta recuperação dos preços do petróleo, o crude venezuelano aproximou-se dos 40 dólares, muito abaixo, no entanto, do preço necessário para alcançar um equilíbrio orçamental.
2 De acordo com o ex-ministro do governo do presidente Chavez, Hector Navarro, “cerca de 300 mil milhões de dólares, do bilião de dólares entrado entre 2003 e 2012, desapareceram das arcas da nação, sem que os responsáveis tenham sido castigados.” Mayela Armas, “Hector Navarro: Isto não é socialismo … é vagabundagem. Fracassou o capitalismo de Estado e a corrupção’” Aporrea, Caracas 12 de dezembro de 2015.
3 Banco Central da Venezuela, Resultados do índice nacional de preços ao consumidor, produto interno bruto ebalança de pagamentos , Caracas, 18 de fevereiro de 2016.
4 “CEPAL prevê que a economia venezuelana se contraia 7% este ano”, El Nacional, Caracas, 8 de julho de 2016.
5 CEPAL, Anuário Estatístico da América Latina e do Caribe 2015. Santiago do Chile 2016.
6 Na realidade não há acesso público transparente aos valores da dívida. Esta tem diversos componentes, entre os quais a dívida da PDVSA e a dívida que se define como interna, mas que tem de ser paga em dólares.
7 Banco Central da Venezuela, Informação estatística.
8 Instituto Nacional de Estatística, Quadro 1. Índice Nacional de Preços ao Consumidor. Variações percentuais, 2008 – Dezembro de 2015.
9 Reconhecimento da FAO à Venezuela, Departamento Regional da FAO para a América Latina e Caribe, Roma, 26 de junho de 2013.
10Instituto Nacional de Estatística, Inquérito ao consumo de alimentos (ESCA). Relatório Semestral, do segundo semestre de 2012 ao primeiro semestre de 2014.
11 Venebarómetro 2016, Croes, Gutierrez e Associados abril de 2016.
12 Uma elevada proporção da energia elétrica gerada no país é hidroelétrica. O governo atribuiu a crise elétrica exclusivamente ao fenómeno do El Niño. A seca tem, sem dúvida, um impacto elevado, mas não basta para explicar a profundidade da crise. São igualmente importantes a devastação das bacias hidrográficas dos rios da Amazónia venezuelana, como consequência da exploração do ouro por milhares de mineiros informais, e a ausência das previsões e dos investimentos necessários para fornecer métodos alternativos de geração de energia elétrica, quando este fenómeno de caráter cíclico se voltar a repetir. Os investimentos em energias renováveis têm sido praticamente inexistentes.
13 A velocidade com que as coisas estão a ocorrer na Venezuela é tal que todas as estatísticas citadas no texto estão necessariamente atrasadas em relação à realidade em mudança.
14 Inquérito de Condições de Vida na Venezuela. ENCOVI, Pobreza e Missões Sociais em Novembro de 2015,Universidade Católica Andrés Bello, Universidade Central da Venezuela, Universidade Simon Bolívar e outras instituições. Caracas de 2016.
15Este estudo, assim como todos os que se realizam atualmente na Venezuela, tem sérios problemas metodológicos. Uma proporção significativa das receitas, assim como do consumo da população venezuelana ocorre hoje por meio de mecanismos informais, ilegais e até mesmo mafiosos, mecanismos que estão longe da transparência. Por conseguinte, é extremamente difícil obter acesso a informação medianamente confiável.
16“Perez Abad anuncia restrição de divisas para cumprir dívidas da PDVSA”, Caracas 16 de maio de 2016.
17 Perez Abad calculou importações não petrolíferas em 2016 de apenas 15 mil milhões, El Cambure, Caracas 12 de maio de 2016.
18 Correo del Orinoco, 17 de maio de 2016.
19 Ver: Plataforma de Auditoria Pública e Cidadã.
20 Segundo Edmeé Betancourt, que na época presidia ao Banco Central da Venezuela, do total de 59.000 milhões de dólares em divisas subsidiadas entregues somente num ano, em 2012, cerca de 20.000 milhões de dólares foram entregues a “empresas offshore”, uma “procura artificial” “não associada com atividades de produção”. “Presidente do BCV: Parte do 59.000 milhões entregues em 2012 foi para ’empresas offshore’” – www.aporrea.org, Caracas 25 de maio de 2013.
21 Este texto foi escrito como contributo para os debates do Grupo de Trabalho Permanente sobre Alternativas ao Desenvolvimento, promovido, em Quito, pelo Departamento Regional Andino da Fundação Rosa Luxemburgo.
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