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TEORIA

Pedagogia social em M. M. Pistrak: A experiência da escola-comuna

 

Francisco Alberto

Nos Fundamentos da Escola do Trabalho o pedagogo soviético expõe os pressupostos que constituem diretrizes de importância essencial para uma teoria pedagógica da nova sociedade, desenvolvendo-as. Os ‘’Fundamentos…’’ e a coletânea de experiências práticas realizadas após o turbulento período da Guerra Civil (1918-1922) que no Brasil é conhecida como “A Escola-Comuna”, organizada pelo então pedagogo russo possuem uma concepção que permeia todo o desenvolvimento da pedagogia de Pistrak: uma concepção transicional de educação. Partindo dessa ótica, a educação cumpriria um papel fundamental na reconstrução da nova sociedade de transição ao socialismo, passando pela abolição da sociedade de classes. Seria uma poderosa ferramenta capaz de desenvolver a consciência de classe dos estudantes e envolve-los na construção do novo. Pistrak formula esses fundamentos a partir de três princípios:

Em primeiro lugar, atenta para a importância de uma nova teoria pedagógica que expusesse a nova concepção de educação no processo de transição ao socialismo. Para ele, em alusão a frase de Lenin, “sem teoria revolucionaria não há revolução”, ocorre o mesmo no campo da pedagogia: Sem teoria pedagógica revolucionária não poderá haver prática pedagógica revolucionária. Mas como isso se reflete na nova prática educativa? Para Pistrak, a teoria pedagógica revolucionária cumpriria o papel de construir a nova escola com objetivos claros e precisos, com base na elevação da consciência da classe trabalhadora e na construção/formação de alunos que sejam também lutadores e transformadores sociais. A pedagogia de Pistrak é a pedagogia de formação de um novo homem, que seja o sujeito da construção da nova sociedade socialista. Isso porque:

Antes de falar sobre os métodos de ensino específicos de uma disciplina qualquer, é preciso em primeiríssimo lugar demonstrar por que ela é necessária; depois, com base nas respostas, definir quais devem ser ensinadas e só depois é que se coloca o problema da procura dos métodos. E pode-se ter certeza de que a resposta à questão de saber se esta ou aqueça matéria é necessária, e por que o é, será completamente diferente em nossa escola do que a formulada pela antiga escola. (p.20)

Essa pedagogia consiste na educação não só dos alunos na visão de mundo da nova sociabilidade em construção, como também pressupõe a organização da escola, do material a ser trabalhado com o alunado. Essa organização não se resume aos conteúdos, mas envolve toda uma concepção social que educa também os professores e os prepara para uma nova visão pedagógica oposta a visão atrasada do período dos czares. Além disso, Pistrak expõe, a partir do debate com o também educador Viktor Nikholaevitch Shulgin (1894-1965), o conjunto de marcas sociais que não são percebidas pela escola capitalista, que percebe a criança de forma geral, abstrata e isolada, não uma criança do ponto de vista concreto, que é de uma dada classe social, nasce, é educada em um determinado meio social e vivencia constantemente essa realidade.

Outra característica da educação capitalista seria a de existir não uma escola, mas escolas destinadas a diferentes classes sociais. A escola que formaria a criança oriunda da burguesia seria alvo de mais investimentos e valorização, em contraponto à escola onde estuda a maioria dos membros da classe trabalhadora, desvalorizada e constantemente afogada na miséria perpetrada pelo modelo econômico e social vigente. (FREITAS, 2009, apud SHULGIN). Segundo Shulgin, não podemos falar em uma criança de forma generalista, mas uma criança que vivencia seu meio, seja o meio urbano, industrial, ou o meio rural. A psicologia dos indivíduos é diferente conforme cada classe social e conforme as representações que eles fazem de si mesmos e da relação com a prática. É aí entraremos em uma outra característica da pedagogia social pistrakeana, que consiste na relação escola-trabalho.

Como colocar de forma correta essa questão? Pistrak expõe a natureza metodológica do problema: sobre qual o caráter que a escola deve assumir na construção da sociedade de transição. Concepções que ora procuravam demonstrar a inexistência do problema em questão, ora subordinavam a parte “prática” do ensino ao programa estudos ou fazia justamente o contrário, implementavam na base do trabalho escola um ofício técnico qualquer sem a relação com a teoria são alvo de críticas em sua obra, pois ambas não visualizam a noção de práxis, que como sabemos é um conceito marxista importante e vai guiar toda a razão de ser dessa pedagogia social. Eis a segunda ‘’Tese Ad Feuerbach’’ que sintetiza a análise marxista da práxis: ‘’a questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas sim uma questão prática. É na práxis que o homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade do seu pensamento. A discussão sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento – isolado da práxis-  é uma questão puramente escolástica. (MARX ,ENGELS, 2001, p.100)

Partindo do conceito marxista de práxis, Pistrak mostra que até o momento essas concepções não atentaram para solucionar o problema de forma correta. Trabalhando com a noção de trabalho socialmente útil, que em outras palavras significa não só tomar o trabalho humano como o centro da atividade prática humana, incluindo a relação entre trabalho e escola, como também especificar suas características: seria um trabalho que fizesse com que os alunos se sentissem úteis e se preparassem para a vida na fábrica. O trabalho nas oficinas, para ele, responde a essa questão, pois servem tanto como instrumentos educativos que fizessem a ligação escola-trabalho, como despertaria a compreensão das crianças em seus distintos níveis sobre o que é o trabalho na grande indústria. Afinal de contas, elas necessitam vivenciar a realidade da revolução nascente, portanto a escola deve constituir uma ponte importante para essa compreensão que não só educa pessoas, mas educa futuros lutadores e participes no processo revolucionário.

Esse trabalho, vale lembrar, não necessariamente é o trabalho na fábrica em uma visão puramente tecnicista, embora o autor não negue a importância desse trabalho no decorrer do crescimento, com a vida adulta, portanto é uma forma de conhecimento do mundo exterior e da vida essencialmente prática. É citado  o uso do tecido, papelão e outros objetos simples para crianças menores, pois o instrumental e os métodos de trabalho devem ser bastante variados, do ponto de vista técnico e de compreensão do alunado. A relação escola e trabalho também está interligada a uma outra visão acerca da escola: escola em Pistrak não resume-se ao ensino. Os programas a serem utilizados devem ser tratados como programas em um sentido amplo, pois também são planos para a vida. A escola de transição não é uma unidade fechada em si mesma, mas reflete a vida do aluno concretamente, seja na cidade ou campo, e deve avaliar as condições e planejamentos de trabalho. Não existe planejamento que trate apenas do ensino e não leve em conta o trabalho manual, fazendo com que esse trabalho se relacione com as demais disciplinas de ensino. A educação é um processo que se dá na escola, na prática fora dela e na vida da criança, isso porque ela não está sendo apenas preparada para a vida; ela já é parte de seu meio social.

Do ponto de vista da aplicação prática dessa forma pedagógica, Pistrak formula o ensino do  complexo, ou, em termos científicos, o sistema de organização segundo complexos, que tem por objetivo analisar um determinado dado da realidade social e ligar o mesmo ao estudo de uma disciplina qualquer, seja ciências exatas ou humanas.  Esse objeto tem uma ligação viva com a realidade concreta da escola e da vivência do alunado, e é uma forma de tornar mais claro e acessível o conhecimento de conceitos importantes das disciplinas. O complexo utilizado como técnica de ensino é indiscutível para o pedagogo da nova sociedade, e guarda um valor significativo. Isso porque em síntese o complexo ajuda o aluno a compreensão da realidade atual de um ponto de vista marxista (materialista histórico e dialético). Isso implica em estudar essa realidade de forma dinâmica e viva, não de forma mecânica, separada do plano de estudos. Esse estudo não é doutrinário, pois está sempre levando em conta as relações recíprocas entre os fenômenos físicos e sociais. A aplicação do pensamento dialético é clara nesse sentido.

A seleção dos complexos deve ser determinada unicamente por tendências do plano pedagógico de cada escola. Por isso os complexos não são um objeto socialmente insignificante para a compreensão do aluno e sua prática cotidiana. O critério de seleção dos mesmos deve ter natureza social e consequentemente foge à lógica livresca e conteudista dos planos pedagógicos construídos na escola capitalista. Um tema geral de física, história ou sociologia pode ser estudado, segundo a técnica do complexo, de diversas formas, correspondentes ao nível de entendimento discente, que é logicamente diferente no primeiro e segundo graus. Também não se trata de conceber os complexos como um fetiche, pois eliminaria a sua natureza, que como dito anteriormente, é não apenas uma técnica pedagógica. É um método de análise da realidade em uma perspectiva marxista.

Outro aspecto importante de sua teoria reside na questão da auto-organização dos alunos. O autor trabalha com essa categoria, que constitui uma das mais decisivas em seu pensamento, partindo da análise das características principais da organização social e política capitalista. Pistrak tenta responder às seguinte perguntas: como o Estado Burguês quer educar as crianças e adolescentes? Quais as características da democracia de classe do capitalismo que são transpostas ao sistema educacional? Afirma:

Quais são os deveres do cidadão na República “mais democrática” do Ocidente ou da América? Em primeiro lugar , ele deve respeitar a lei; em segundo lugar, de vez em quando, em datas determinadas, deve ir a uma cabine de voto, votar por este ou aquele candidato (…) A atividade e a iniciativa das massas são supérfluas nas ‘’verdadeiras democracias’’: qualidades desse tipo ao nível das massas populares são consideradas mais nocivas que úteis. (p.139)

Com isso, a característica mencionada – a iniciativa das massas – é a mais explorada a partir da lógica da auto-organização. Visto que a característica da escola capitalista, em linhas gerais, reflete a organização social do capitalismo como um todo, e oferece à classe dominante a possibilidade de manter essa dominação.  A escola do regime de transição também reflete a situação econômica e as necessidades de consolidação da sociedade socialista rumo ao fim das classes sociais e do Estado: a participação das massas na condução do novo Estado controlado pelos trabalhadores através de mecanismos como os sovietes. Essa visão se reflete na nova escola, que desperta a iniciativa dos alunos, e a leva às ultimas consequências. As prepara para a futura condução do Estado operário, e acima de tudo cativa o interesse pelo estudo, pelo seu vínculo com a realidade.

Como aplicar a auto-organização no ambiente escolar? Esta teria como pedra angular o coletivo infantil. Esse coletivo não é atemporal, mas de uma realidade determinada, que configura na vida pós-Revolução. Por isso não representa a soma simples de indivíduos isolados ou uma reunião acidental de alunos, mas é uma concepção essencialmente qualitativa, que estão unidos por determinados interesses e estão conscientes disso, nesse sentido uma cooperação consciente (PISTRAK, 2011). É uma resposta a pouca atratividade do ensino que é uma característica da instituição escola no capitalismo e ao trabalho do professor, que teria de trabalhar segundo esse critério que fomente a iniciativa do alunado e seja o companheiro mais velho, o mais experiente, que direciona a atividade sem no entanto podar o alunado. As novas mudanças o livrariam nesse sentido das obrigações autoritárias que o professor acaba obtendo para ser considerado um profissional respeitado.  Concorda quando Shulgin caracteriza o professor na escola capitalista como o funcionário estatal, Shulgin diz que:

Mas o professor – funcionário do Estado, condutor último da ordem na escola- representa o poder estatal. Portanto, a luta contra ele, o escarnio e a zombaria sobre ele, é a luta da criança contra o poder estatal. (…)E eis que entre outras medidas, surge a autodireção. Sua tarefa é tirar do professor as obrigações policialescas desagradáveis (como: vigilância, repreensão, castigo, expulsão da escola etc.) e depositá-las no ombro das crianças, quebrar sua união, forçar uns a cuidar dos outros, lança-los no livro de multas e ofensas por uma autodireção voltada para o professor como a última instância. (FREITAS apud SHULGIN,p.53, 2009)

A escola-comuna e o o poder soviético

Em outubro de 1917, após a tomada do poder político pelos bolcheviques é criado o Comissariado Nacional de Educação, ou na abreviação em russo, o NarKomPros. A tarefa principal desse órgão seria reconstruir novas diretrizes para o sistema educacional russo, em contraposição ao extinto Ministério da Educação, que refletia a visão de mundo czarista. Papel importante nesse Comissariado foi o de Nadezhada Krupskaya, companheira de Lenin e também pedagoga, e nomes como Lepeshinskiy, Lunacharsky etc. Começaram a serem postas em prática as escolas-comunas.

Essas escolas eram um local importante que agregava as melhores experiências de educadores que reivindicavam em teoria e concepção de mundo o marxismo, tentando aplicar uma série de medidas educativas que tivessem um horizonte estratégico oposto pelo vértice à escola burguesa. Algumas escolas-comuna também agrupavam jovens acusados de “insuficiência moral”: ladrões mirins, batedores de carteira, viciados em cocaína e prostitutas infantis. Eram integrados à escola com certas condições, como não roubar, não usar cocaína e desenvolver um trabalho socialmente útil, qualquer que seja. E essa mesma juventude que apresentava esses problemas, passo a passo, se transformavam em:

crianças brilhantes, ativas, capazes de grande iniciativa, mas pervertidas pela vida, e que encontram condições quando o coletivo infantil tem a possiblidade de se desenvolver (…)de se organizar numa base social’’(p.160)

A passagem do poder para as mãos dos trabalhadores abriu uma série de perspectivas importantes, e um vasto campo de ação para o desenvolvimento dessas escolas. Com o poder soviético. Nos primeiros seis anos os experimentos educacionais se efetivaram não sem dificuldades. Muitas vezes com material precário e a miséria material deixada pelos anos de guerra civil, além da incompreensão de setores do movimento comunista sobre esse lento trabalho (KRUPSKAYA, 2009). Envolviam diversas matérias como história, ciências sociais, artes plásticas e linguagens, assim como matemática e física, abordados sempre que possível pelo complexo.

Pistrak acaba sendo esquecido e pouco divulgado a partir da reforma educacional proposta por Stalin em 1931. Apesar de ironicamente tê-la apoiado, foi perseguido e caluniado, até ser fuzilado pela burocracia soviética em 1937.

Podemos dizer que essa experiência educacional, contextualizada respondeu à defasagem do sistema educacional russo por anos de atraso cultural de anos de czarismo, e também responder as consequências promovidas pelo desafio de conter a contrarrevolução dos países imperialistas que atuavam sob a nascente sociedade de transição, mostrando que é possível, é necessário educar lutadores e construtores do novo que se avizinhava nos primeiros anos da Revolução. Esse novo não poderia ser de forma alguma algo simples de ser feito, mas também seria a antítese do atraso educacional da classe trabalhadora e camponesa russa. Com isso, os primeiros anos de construção da sociedade sem exploração do homem pelo homem foram também férteis para a pedagogia construída para a escola dos trabalhadores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

PISTRAK, M.M. Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo, Expressão Popular, 3 ed,2011.

PISTRAK, M.M. A Escola-Comuna. São Paulo, Expressão Popular, 2009.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Teses Ad Feuerbach. In. A Ideologia Alemã, São Paulo, Martins Fontes, 2001.


[1]Moisey M. Pistrak (1888-1937) professor, pedagogo e membro do Partido Comunista desde 1924, cumpre um papel destacado na edificação da educação de novo tipo na União Soviética, a partir da pedagogia marxista. Tem duas obras principais, conhecidas de grande público: os Fundamentos da Escola do Trabalho e a organização das experiências pedagógicas que ficaram conhecidas a partir do livro “A Escola-Comuna’’. Os dois livros são publicados pela Editora Expressão Popular. Essas formulações são pouco conhecidas e divulgadas no âmbito acadêmico tradicional, em especial na discussão acadêmica dos cursos atuais de pedagogia.