Jorge Luiz Souto Maior
- Alienação e otimismo
Permitam-me interromper essa onda de pessimismo que tem sido espalhada diariamente pela grande mídia e que se encontra estampada também nos discursos da intelectualidade de esquerda.
Sei que em um momento complexo como este, em que tantos, por tantas razões diferentes, nem sempre muito bem compreendidas, apostam no caos, ou o assumem como inexorável, podendo-se identificar um processo de desolidarização ou desumanização, falar em otimismo pode parecer meio idiota. Mas ser otimista quando está tudo bem é fácil, embora o que se devesse exigir nas épocas de bonança fosse uma boa dose de pessimismo para evitar os mascaramentos. Então, em momentos de depressão o papel da razão não é aprofundar o desespero e sim tentar trazer à tona fatores favoráveis para impulsionar ações positivas, sem se deixar levar, é claro, pelas banalidades da auto-ajuda e sem reforçar as lógicas de alienação.
Não se trata apenas de ser otimista pelo resultado prático da vontade, guardando o pressuposto necessário do pessimismo na formulação teórica, mas de encontrar na realidade elementos de otimismo que reforçam e dão base material para a mobilização, até porque a vida social é repleta de contradições, decorrente que é de um percurso dialético.
O otimismo preconizado no presente texto, portanto, não vem de uma ilusão, de um sonho fugaz ou de mera “força de vontade”, mas de constatações, extraídas de dados da realidade, que, diante de uma visualização que se pauta apenas pelo pessimismo e o desespero, poderiam passar despercebidos.
Nos jornais de cada manhã e em cada programa jornalístico no rádio e na TV é notória a insistência em destacar a existência de uma crise que é ao mesmo tempo econômica, institucional, política e moral. Uma insistência que tenta nos conduzir a um vazio existencial, ao mesmo tempo em que indica como possibilidade de redenção a percepção exclusiva de que o “inferno são os outros”.
Essa forma de descrever a realidade busca espraiar o desânimo, reduzindo, ou mesmo eliminando, a crença na capacidade da ação coletiva para promover mudanças na realidade social no sentido da justiça social. Impulsiona-se o individualismo e o “salve-se quem puder”, isso quando não se vai ao ponto de propugnar uma mobilização para impor retrocessos.
Esse é um dado concreto, que pode ser verificado nos documentos produzidos pela grande mídia e em algumas das manifestações “dominicais” que ocorreram recentemente no país.
Na linha do otimismo realista, há de se perceber que essa autêntica luta da grande mídia não se dá por acaso. Bem ao contrário, é reveladora de que o conservadorismo está em desespero com relação às mudanças que vêm ocorrendo no Brasil nas últimas décadas, cabendo, neste passo, uma ressalva, porque no momento complexo de exposição de ideias partidariamente comprometidas é sempre muito perigoso ser otimista e dizer o que acabei de dizer, pois alguém já entenderá, conforme a sua conveniência, que eu esteja fazendo uma defesa do Partido dos Trabalhadores ou da Presidenta Dilma. Pois bem, não estou nem de longe tratando desse embate partidário e quando falo de mudanças positivas havidas nas últimas décadas estou no plano da dinâmica social, que transcende as formas Estado e Direito. Falo, aliás, de mudanças que se deram a despeito da repressão e das estruturas retrógadas, levadas a efeito por todos os governos de todos os partidos no poder durante esse mesmo período. Verifique-se, por exemplo, o caso da terceirização, que começou no governo Collor, avançou no governo FHC, foi consolidada no governo Lula e procura uma generalização no governo Dilma, o que demonstra, claramente, a importância de nos afastarmos de qualquer tipo de retórica partidária-eleitoral se quisermos compreender a realidade e interagir com ela.
Sem procurar diminuir retoricamente a gravidade do momento e sem tentar minimizar os erros dos diversos partidos no que tange ao acatamento da lógica neoliberal, que impõe redução de direitos trabalhistas e sociais como forma de salvar o capitalismo e também no que se refere aos ajustes com setores específicos do grande capital para sustentação da “governabilidade”, da qual se alimentam a corrupção e o favoritismo, o fato incontestável é que diversos segmentos da sociedade, carregando consigo a marca comum da opressão, se organizaram e se não obtiveram vitórias definitivas e plenas atingiram um estágio de mobilização e consciência que é impossível que retrocedam.
Os avanços verificados no que se refere às questões de gênero, de raça, de etnia, de orientação sexual, da essência dos direitos sociais e trabalhistas, da emergência da construção da justiça social e até mesmo da consciência da existência de uma sociedade de classes, são mudanças que, mesmo ainda longe de um patamar ideal, se apresentam como irreversíveis. Por mais pessimista ou reacionário convicto que se queira ser é impossível reverter o processo de avanço nas temáticas referidas, que incluem, ainda, o relevante protagonismo assumido pela juventude nas mobilizações que resultaram em junho de 2013.
E, como dito, embora os avanços na condição dos oprimidos ainda estejam muito aquém do necessário, que é o fim das diversas formas de opressão, a capacidade de organização e de mobilização dos grupos diretamente envolvidos é um aprendizado que não tem como ser extraído da inteligência social.
Assim, pode-se dizer que há uma espécie de “utopia” da direita conservadora em querer manter inalterada a realidade de uma sociedade ainda economicamente desigual e ao mesmo tempo oligárquica, elitista, racista, machista, LGBTfóbica e opressora.
Dentro desse contexto do percurso irreversível de avanços sociais e humanos, destacando-se a perda do medo de lutar por direitos, a insistência da grande mídia em ver crise em tudo e em difundir o desânimo apresenta-se como uma tentativa quase desesperada de impedir que “o medo acabe”. Como diz o escritor moçambicano, Mia Couto, na sociedade estruturada no medo, aqueles que se situam em uma posição de privilégio têm “medo de que o medo acabe”[1]…
Mas está acabando…
- O paradoxal impulso do avanço
Segundo decreta a sabedoria popular: “não mexe, se não fede!” Mas a soberba dos que se integram a classe economicamente dominante da sociedade pouco se importa em saber o que o povo diz e assim acaba por desconhecer qualquer limite na defesa de seus interesses exclusivos. Foi desse modo que quebraram a regra de ouro da dominação, já expressa por Pascal, no sentido de que o “[O povo] não deve sentir a verdade da usurpação: ela foi um dia introduzida sem razão e tornou-se razoável; é preciso fazer que ela seja vista como autêntica, eterna, e esconder o seu começo se não quisermos que logo tenha fim.”
Fato é que não satisfeitos em explorar o trabalho, auferindo lucros não só por meio da mais-valia como também pelas formas já extremamente precarizadas das relações de trabalho, os representantes do capital, sentindo um momento político favorável para levar adiante seus anseios, que, em certa medida, guardam relação com estruturas culturais escravistas e colonialistas, vieram a público pleitear a ampliação da terceirização.
Paradoxalmente, foi aí que a coisa desandou.
Ocorre que, impulsionado pela força da grande mídia, que, por razões particulares, se mostrou bastante interessada no tema, o debate a respeito da terceirização acabou atingindo a todas as pessoas da sociedade, independente do credo ou profissão. Hoje não há cidadão brasileiro que não tenha sido ao menos informado sobre a terceirização, sendo que a grande maioria procurou inclusive firmar uma posição a respeito. Jornalistas, políticos, professores, estudantes, advogados, juízes, procuradores, empresários, atletas, operários, empregados domésticos, médicos, ferroviários, enfermeiros, dentistas, rodoviários, servidores públicos etc, etc. etc., todos, enfim, ficaram sabendo do PL 4.330 e da pretensão de se alargarem as possibilidades do trabalho terceirizado.
Formaram-se, a partir daí, dois grandes grupos: o dos defensores da ampliação da terceirização e o dos opositores da ideia, dentre os quais me incluo.
O projeto de lei, agora no Senado, onde ganhou o número PLC 30, ainda não foi definitivamente votado, mas, independente do resultado, já é possível extrair dois efeitos de toda essa discussão.
Primeiro, que 12 milhões de trabalhadores terceirizados, na sua maioria mulheres, saíram da invisibilidade a que foram submetidos há décadas.
Segundo, que todas as pessoas da sociedade, dentre elas os próprios terceirizados, tomaram consciência das perversidades da terceirização.
E estes são efeitos necessários, inevitáveis e irreversíveis.
Dito de outro modo, independente de qualquer resultado a que se chegue no processo legislativo, não será possível reconduzir esses trabalhadores à condição de pessoas invisíveis e não haverá retórica suficiente para suprimir a consciência adquirida de forma publica e unânime, em torno dos males da terceirização.
Há de se ter, inclusive, a percepção de que muito já se fez durante esse longo período de extenso debate, sendo de se destacar a formação de um Fórum Nacional de Combate à Terceirização, formado por professores, sociólogos, economistas, advogados, sindicalistas, juízes do trabalho, procuradores do trabalho, auditores fiscais do trabalho e demais entidades e profissionais ligados à defesa dos direitos dos trabalhadores, que conseguiram difundir, inclusive junto à grande mídia, a perspectiva da classe trabalhadora sobre o tema, chegando à realização de audiências públicas nas assembleias estaduais de todo o país.
Esse poder de organização e de mobilização para uma ação coletiva multidisciplinar, por si, já é um avanço que não pode ser desconsiderado.
Já é um dado da realidade, portanto, a percepção pública da condição precária de vida e de trabalho dos terceirizados.
O efeito inevitável de tudo isso, ou seja, do que já foi feito, é que a terceirização, tal qual fora juridicamente concebida desde 1993, quando editado o Enunciado 331, do TST (hoje, Súmula 331), não se sustenta mais, isto porque se há um ponto em comum entre defensores e opositores do PL 4.330 é o de que a terceirização, no modo como se encontra regulada, é um grande mal para os trabalhadores terceirizados.
Diante das evidências denunciadas, os defensores da ampliação da terceirização não tiveram como deixar de reconhecer que a terceirização gera riscos aos terceirizados e à eficácia dos seus direitos, tanto que, para atingirem o objetivo de conseguirem ampliar essa forma de exploração do trabalho, ofereceram aos terceirizados, conforme previsto no PLC 30, a responsabilidade solidária entre as empresas tomadora e prestadora dos serviços, superando a responsabilidade subsidiária prevista na Súmula 331. Além disso, vislumbraram a necessidade de que as empresas prestadoras de serviços, preenchendo os requisitos da especialidade e da qualificação técnica, detenham capital integralizado compatível com a execução dos serviços, isto é, com o custo pertinente ao número de trabalhadores contratados, oferecendo, ainda, caução, seguro garantia ou fiança bancária, como garantia aos trabalhadores.
Aliás, no afã de venderem o seu peixe, de sentirem a glória de vencer o debate, acabaram reconhecendo a relevância do respeito aos direitos trabalhistas constantes da CLT, chegando a dizer que a “nova” regulamentação garantiria aos terceirizados a aplicação da CLT, destruindo o discurso histórico de que a CLT é ultrapassada e que gera custos insuperáveis às empresas.
Por outro lado, os opositores da ampliação da terceirização valeram-se de imagens e de dados estatísticos que explicitam como o trabalhador terceirizado sofre cotidianamente com a precariedade das condições de trabalho, a invisibilidade, a discriminação, as jornadas excessivas, os acidentes de trabalho, os baixos salários etc. O que tem ocorrido, basicamente, é que a terceirização, que já atinge 12 milhões de trabalhadores, provocou todos esses efeitos nefastos e que a ampliação da terceirização, mesmo com as garantias oferecidas, tenderá a multiplicar os mesmos problemas, causando, sobretudo, um esfacelamento da organização sindical, que tornaria impossível qualquer mobilização de resistência e de luta dos trabalhadores.
Cumpre perceber que, para rejeitar o projeto de lei de ampliação da terceirização, juristas, políticos e instituições, pintando o quadro sombrio de uma situação futura, pautaram-se não em projeções, mas em imagens do presente e em dados construídos ao longo dos últimos 22 (vinte e dois) anos, durante os quais esteve vigente a Súmula 331 do TST, que a despeito de limitar a terceirização à atividade-meio manteve o terceirizado sem qualquer garantia jurídica, possibilitando as formas mais perversas de exploração, cabendo verificar, inclusive, que a jurisprudência não foi eficiente para coibir a utilização da terceirização ao ponto da mera maldade, consagrada nas alterações constantes de local e de horário de trabalho e de variações dos tomadores de serviços, além de não ter impedido, também, as fragilizações dos trabalhadores nas subcontratações e na exploração em rede do trabalho.
Neste aspecto da ineficiência do tratamento jurídico dado à terceirização para a proteção de direitos fundamentais e o respeito às normas constitucionais, destaque-se ainda a convivência conivente e supressiva da Constituição com a terceirização no serviço público, onde enormes perversidades contra os trabalhadores se efetivam. No âmbito da administração pública, são inúmeros os casos de terceirizados trabalhando há anos sem usufruir férias ou receber a integralidade de seus direitos, inclusive rescisórios, valendo lembrar que a contratação das empresas terceirizadas se dá por licitação, ganhando aquela que oferece o menor preço, o que carrega consigo a lógica da precarização, constituindo, ainda, uma porta aberta para a corrupção, o favoritismo e o desvio temerário do dinheiro público.
Ou seja, após difundidos todos esses discursos e revelada a realidade do trabalho terceirizado, é inevitável reconhecer que os males da terceirização não são culpa do PL 4.330 e sim da terceirização em si, sendo certo que o que preconiza o projeto de lei é a formação de um futuro ainda pior.
Mas há de se reconhecer que, em certa medida, as garantias jurídicas concedidas pelos defensores da ampliação da terceirização, assumidas como necessárias diante do reconhecimento das perversidades da terceirização, são superiores àquelas que, presentemente, os que se dizem contrários à ampliação da terceirização conseguiram oferecer aos 12 milhões de terceirizados durante 22 (vinte e dois) anos.
Ocorre que uma vez que já foram oferecidas essas garantias não há mais como se possa simplesmente retirá-las…
Essa melhoria das garantias aos terceirizados, por si, obviamente, não é motivo para justificar a ampliação da terceirização, mas, paradoxalmente, é razão mais que suficiente para evitar que os 12 milhões de terceirizados sejam mantidos na situação precária em que se encontram.
Nesta medida, a obstrução do projeto de lei que amplia a terceirização, mantendo-a nos padrões da Súmula 331 do TST, é um efeito impossível de ser produzido, vez que representaria a legitimação de todos os efeitos perversos da terceirização denunciados à exaustão.
O resultado inevitável de tudo isso, repita-se, é que já não será mais possível fazer vistas grossas para todos os efeitos nefastos provocados pela Súmula 331 do TST, que autorizou, sem qualquer garantia jurídica, a terceirização nos setores público e privado.
Se o PL 4.330 é nefasto para os trabalhadores porque amplia a terceirização, à Súmula 331, do TST, também é porque é a culpada dos males sofridos atualmente pelos 12 milhões de terceirizados.
Mas aí, cabe reparar, já não é mais mera questão de opinião ou de conveniência. Trata-se mesmo da produção de um efeito social e político, que repercute juridicamente, que extrapola a intenção dos contentores, que é a superação da Súmula 331, do TST.
- Superação da Súmula 331, do TST
De fato, juridicamente falando, a terceirização, tal como regulada na Súmula 331 do TST, acabou.
Primeiro, porque se, contrariando a lógica do PL 4.330, que generaliza a terceirização, estabelece-se o raciocínio de que a terceirização só pode ser vislumbrada como forma excepcional de contratação, a Súmula 331, do TST, não é parâmetro adequado para tanto, pois, como bem destacam até mesmo os defensores da ampliação da terceirização, neste ponto, críticos da Súmula, a diferenciação baseada em atividade-meio e atividade-fim é insustentável.
De fato, não se pode dizer, criteriosamente, o que é atividade-meio e o que é atividade-fim e é exatamente por conta disso que a experiência da terceirização acabou se situando nas atividades de limpeza e de vigilância, não por atenderem ao postulado fixado na Súmula, mas por expressarem um fator cultural de discriminação e de preconceito no que tange à posição social da mulher e do trabalho doméstico, refletidos em tais modalidades de serviço.
Além disso, se a rejeição à ampliação da terceirização se dá por meio da defesa da eficácia de direitos fundamentais, esses mesmos argumentos servem para afastar a possibilidade de terceirização em “atividades-meio”, onde a dignidade, como todos agora sabem, encontra-se perdida.
Segundo, porque após todo esse debate chegou-se a um consenso em torno das perversidades da terceirização, tanto que até mesmo o projeto de lei em discussão, que é nefasto aos trabalhadores, procura eliminar algumas das fragilidades jurídicas nas quais as perversidades se sustentam. Então, diante do padrão jurídico estabelecido no projeto de lei, que é, inclusive, considerado prejudicial aos trabalhadores, não se pode mais ficar dizendo que há uma diversidade de direitos trabalhistas entre terceirizados e efetivos e que há uma responsabilidade subsidiária, e não solidária, da empresa tomadora de serviços pelas obrigações assumidas pela prestadora, até porque, convenhamos de uma vez, essa criação da jurisprudência trabalhista é uma autêntica aberração jurídica, vez que estabelece uma ordem obrigacional em favor do devedor, ou, inversamente falando, em prejuízo do credor, contrariando até mesmo o padrão jurídico do direito das obrigações do Direito Civil.
Terceiro, porque se a terceirização pudesse ter alguma razão de ordem econômica que a sustentasse, não poderia, jamais, gerar o efeito perverso de conduzir à total ineficácia os direitos fundamentais dos terceirizados. Assim, estão fora de qualquer parâmetro jurídico, mesmo se pudessem ser preservados os dispositivos da Súmula 331 do TST, as práticas de utilização dos trabalhadores terceirizados como verdadeiras coisas, onde se efetivam variações constantes de horários e de locais de trabalho dos terceirizados, assim como trocas promíscuas de tomadores, chegando ao ápice das estratégias perversas de supressão do pagamento de verbas rescisórias, com transferências abusivas para imputação de justas causas por abandono de emprego.
E quarto, porque se o debate público realizado conduziu a uma valorização dos preceitos constitucionais, não é concebível que se mantenha, sob o ensurdecedor silêncio jurídico, a prática inconstitucional da terceirização no serviço público, vez que a Constituição garante à cidadania o acesso ao serviço público por meio de concurso público de provas e títulos, sem qualquer modalidade excepcional para o implemento das atividades integradas à dinâmica permanente dos entes administrativos, em todas as suas esferas.
Como efeito imediato da correção dessa grave injustiça, praticada ao longo de 22 anos, com ofensa direta à Constituição, há de se reconhecer, judicialmente, ao terceirizado, que, nos termos do padrão fixado pela própria Constituição (art. 19, do ADCT), tenha prestado serviços à administração por cinco anos ou mais, o direito à relação de emprego público com a administração, com todos os efeitos constitucionalmente assegurados.
A objeção a esse efeito com o argumento de que contraria a Constituição é insustentável, e digamos assim para evitar qualquer adjetivação que desvia o foco do debate, pois, afinal, enquanto os terceirizados ficaram – e ainda estão – submetidos a diversas inconstitucionalidades nenhuma voz se ergueu para garantir a esses trabalhadores a eficácia das normas constitucionais.
Em suma, o efeito necessário, já concretizado, é o da rejeição plena da Súmula 331 do TST, que, na forma acima referida, representa o fim da terceirização.
Poderia se dizer que somente restaria, então, a possibilidade de uma empresa contratar outra para a realização de serviços desvinculados da dinâmica permanente da contratante, ou seja, em atividades ocasionais, para satisfação de necessidades desvinculadas do processo produtivo visto como um todo, que exigissem expertise específica de alta tecnologia e grau de investimento, como, por exemplo, um condomínio que contrata uma empresa para manutenção do elevador. No entanto, nestes casos, já não se trataria mais, propriamente, de terceirização.
- Fim da terceirização
E por mais paradoxal que pareça, a decretação do fim dos fundamentos jurídicos para a terceirização pode ser vislumbrada mesmo que o PLC 30 seja aprovado.
Ora, a rejeição jurídica à terceirização, tal qual conhecida atualmente, parte do pressuposto de que a terceirização fere direitos fundamentais dos trabalhadores, tais como a vida, a saúde, o lazer e a própria dignidade e é mais que evidente que algo ruim em pequena escala não se transforma em algo positivo em grande escala.
Não é lógico o argumento de que a generalização da terceirização elimina a discriminação de que são vítimas os terceirizados porque se todos são terceirizados ninguém mais seria discriminado, pois se tal argumento fosse válido era só negar escola a todas as pessoas para resolver o problema da evasão escolar.
Por outro lado, se a ampliação da terceirização não transforma a índole da terceirização e nem elimina a discriminação de que são vítimas os terceirizados, acaba, de fato, extinguindo a terceirização, ela própria. A proposição lógica não é “se todos são terceirizados ninguém é discriminado”, mas sim, se todos são terceirizados ninguém é terceirizado.
Mas o efeito dessa proposição generalizante não pode ser o rebaixamento de todos os trabalhadores à condição social e de trabalho dos ex-terceirizados e sim a elevação de todos aos patamares até alcançados pelos empregados, tidos por efetivos, vez que o princípio constitucional é o da melhoria da condição social dos trabalhadores (art. 7º, CF), cumprindo destacar que as garantias aos terceirizados, vislumbradas no projeto de lei, solidariedade etc., não são eficazes para eliminar as agressões a direitos fundamentais que a terceirização representa, na medida em que esfacela a classe trabalhadora, favorecendo ao processo de reificação, da comercialização da mão-de-obra, ou seja, da contratação não de pessoas, com nome, história e ambições, mas de força de trabalho líquida.
Mesmo com responsabilidade solidária, caução financeira, requisitos estatutários para a constituição de empresas prestadora de serviços, a terceirização destrói os vínculos básicos de categoria e de socialização pelo trabalho e seu efeito concreto, se isso fosse juridicamente possível, é o rebaixamento total dos direitos dos trabalhadores, que se veem, inclusive, impossibilitados de formular práticas coletivas de resistências, conduzidos a uma lógica individualista e atomizada, sendo bastante evidente, aliás, a consciência do próprio setor econômico em torno desses efeitos, tanto que entrega garantias aos terceirizados em troca da ampliação do modelo, sem perderem, por certo, a projeção do aumento de lucros.
Além disso, se uma empresa pode empreender sem ter empregados, contratando serviços de outras empresas, a contratante não é uma empresa, não é empreendedora de nada, sendo mera contratante de empresas contratadas, que, por sua vez, adotando o mesmo instrumento jurídico, poderão não ter empregados, valendo-se de outras contratadas. O resultado é que só se chegará uma relação de emprego ou por opção da empresa ou quando nas subcontratações formalizadas as empresas que se situarem no final da rede não tiverem mais condições econômicas de contratarem outras empresas.
O efeito dessa situação de generalização da terceirização não é apenas uma questão de presunção de precarização das condições de trabalho dos trabalhadores, que já é, por si, muito grave, mas uma quebra da estrutura jurídica trabalhista como um todo, provocando uma reação sistêmica que, naturalmente, provoca um expurgo da terceirização, sob pena de uma corrosão irremediável.
Ora, a relação de emprego é o vínculo jurídico básico da efetivação dos direitos trabalhistas. Esses direitos não existem apenas para satisfazer necessidades básicas do trabalhador. Existem para melhorar, de forma progressivamente constante, a condição de vida dos trabalhadores, fazendo com o modelo de sociedade capitalista se apresente como viável para promover justiça social, conferindo a todas as pessoas condições dignas de vida.
A relação de emprego, portanto, não pode existir apenas na periferia do capitalismo, formando-se entre trabalhadores sem representação sindical e empresas subcapitalizadas, porque nestas condições não se pode extrair do capital produzido, diretamente, as necessárias repercussões sociais ao projeto do Estado Social, nem tão pouco assegurar a eficácia dos direitos fundamentais dos trabalhadores. A reparação de um acidente do trabalho de um empregado de uma empresa terceirizada, subcapitalizada, será muito menor que a reparação de um acidente de um empregado de uma empresa capitalizada.
Também não se pode vislumbrar a formação da relação de emprego com as empresas centrais do capitalismo apenas como fruto de uma opção gerencial destas, ou seja, quando estas empresas resolvam não terceirizar determinadas atividades por quaisquer motivos que sejam, criando, inclusive, uma discriminação odiosa entre terceirizados e efetivos, que apenas favorece a sua demonstração de poder frente aos trabalhadores, transformando a subordinação em mera submissão, isto porque os interesses econômicos das empresas não se sobrepõem à consagração constitucional dos direitos trabalhistas como direitos fundamentais (art. 7º, CF) e ao projeto, também constitucional, de desenvolvimento de um capitalismo com respeito aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF), tendo-se estabelecido, inclusive, o princípio de que a economia respeite aos ditames da justiça social (art. 170, CF).
No projeto constitucional, a relação de emprego, portanto, não pode se configurar como efeito último de uma exploração reticular do trabalho, quando a empresa, considerada empregadora, não seja mais apta a cumprir, de fato, uma função social trabalhista. De uma generalização da relação de emprego, cuja função de ordem pública é apreender parcelas do capital produzido pelo trabalho, para garantir a rede de proteção social que organiza e viabiliza o modelo de produção capitalista, a ampliação ilimitada da terceirização conduziria a relação de emprego a uma condição periférica, desvinculada do capital e sem força, portanto, para conduzir qualquer projeto social. De forma concreta, seria o fim do Direito do Trabalho, da Justiça do Trabalho e do Estado Social.
Ocorre que, como dito, a Constituição Federal estabelece um valor social à livre iniciativa, exige uma função social da propriedade e determina que o desenvolvimento econômico obedeça aos ditames da justiça social, sendo que o social em questão atende pelo nome de direitos sociais, conforme fixados nos artigos 6º e 7º da mesma Carta, tidos como direitos fundamentais e integrados ao conteúdo das cláusulas pétreas da Constituição.
Ou seja, a ampliação ilimitada da terceirização cria um problema metodológico insuperável, fazendo com que o efeito seja o aniquilamento da terceirização, ela própria, porque, ademais, não se pode, em nome da terceirização, destruir a Constituição Federal.
Lembre-se que é exatamente para impedir que o capital, pelo uso do poder econômico que detém, consiga se desvincular do trabalho e, consequentemente, das obrigações sociais, que a Constituição, além dos dispositivos já referidos, conferiu aos trabalhadores o direito à relação de emprego, que é, inclusive, uma relação jurídica qualificada, porque é protegida contra a dispensa arbitrária (art. 7º. I), não prevendo qualquer tipo de subterfúgio para o capital.
Nunca é demais lembrar que os artigos 2º e 3º da CLT estipulam que a relação de emprego se forma entre o trabalhador e a empresa, fixando uma responsabilidade solidária, que equivale a uma multiplicidade de empregadores, na associação de empresas para a exploração do trabalho, entendia como grupo econômico, tudo para ampliar o potencial de aplicação do Direito do Trabalho, evitando, assim, que seja minado o projeto constitucional. É por isso que as leis que afastam a relação de emprego só se avaliam como constitucionais quando se apoiam em justificativas de excepcionalidade, não se podendo conceber formas de exploração do trabalho alternativas à relação de emprego.
A terceirização, é verdade, não exclui formalmente a relação de emprego, mas traz elemento muito mais grave porque, como visto, destrói a funcionalidade da relação de emprego e, por conseqüência, do próprio Direito do Trabalho. Ao implodir a essência da relação de emprego, a terceirização ilimitada, baseada, pois, em vício jurídico insuperável, traz consigo o germe de sua própria destruição.
É impossível, ademais, não se vislumbrar a atuação futura corretiva da jurisprudência diante de conflitos trabalhistas originados em relações jurídicas onde um grande conglomerado econômico tenha terceirizado todos os seus empregados, sendo estes empregados não das empresas contratadas pelo grande capital, mas de empresas contratadas pelas contratadas da primeira, e que dessa relação promíscua advenham baixos salários, acidentes, jornadas excessivas… Para conferir eficácia aos preceitos jurídicos básicos da condição humana dos trabalhadores, trazidos na Constituição como direitos fundamentais, a jurisprudência terá todos os argumentos jurídicos possíveis para afastar a lei infraconstitucional da terceirização, atraindo o capital para a sua responsabilidade social por meio da declaração direta do vínculo de emprego, superando as intermediações.
Generalizando-se a terceirização, o efeito corretivo inevitável, para a plena eficácia do projeto constitucional, é a rejeição da terceirização, para manter a regra da relação de emprego, essencial ao projeto constitucional.
E se a esse resultado não se chegar por uma questão de consciência jurídica, pode-se vislumbrá-lo como efeito de um instinto de sobrevivência da Justiça do Trabalho, que estaria fortemente ameaçada com o estímulo ao acatamento da lógica da eficiência econômica, integrada às já introduzidas estratégias de gestão, e com o excesso estrondoso de serviço que certamente adviria da generalização da terceirização.
De um ponto de vista metodológico, só se poderia entender juridicamente válida a terceirização como uma forma excepcional de contratação, para não quebrar a regra geral e o projeto constitucional baseado na relação de emprego e na fixação de responsabilidades sociais diretamente ao capital. A generalização da terceirização, portanto, gera, como efeito, reverso, o fim da terceirização, já que não se pode chegar ao fim da relação de emprego ela própria e do projeto constitucional que carrega consigo, simplesmente, para atender a um postulado setorial integrado a uma lei.
Ocorre que, como visto, não há parâmetros jurídicos válidos para se chegar a uma terceirização nem mesmo perifericamente, diante dos preceitos constitucionais aplicáveis às relações de trabalho no Brasil, apoiados, ainda, nos tratados de convenções de Direitos Humanos, sendo que até por isso nenhuma relevância possuem os argumentos em defesa da ampliação da terceirização que parte do exemplo ocorrido em outros países, porque, afinal, temos uma Constituição e ela deve ser respeitada para a garantia de todos os cidadãos.
Cabe acrescentar que não comovem os argumentos de aqui ou ali, em algum lugar do planeta, a generalização da terceirização tenha sido adotada, porque temos uma Constituição Federal e esta deve ser aplicada antes de se pensar nas formas jurídicas existentes em quaisquer outros países.
Aliás, na linha dos avanços necessários advindos da consciência já produzida, apresenta-se como também inevitável à reavaliação da compreensão em torno da constitucionalidade da Lei n. 9.637/98, com as alterações introduzidas pela Lei n. 9.648/98, conforme definido na ADI 1923, pois se juridicamente a terceirização de serviços não existe mais, muito menos ainda se poderão encontrar argumentos para justificar a terceirização da própria administração, que tanto precariza as condições de trabalho quanto favorece ao favoritismo e a corrupção, além de privatizar a atuação do Estado em áreas essenciais à efetivação dos direitos sociais.
Na linha do otimismo, no mínimo há de conferir aos trabalhadores que executem esses serviços, ainda que atuando para entes privados, o status de servidores públicos, com todas as garantias constitucionais, vez que pressupostamente necessárias ao projeto do Estado Social.
- Conclusão
Então, se aprovado for o PLC 30, que amplia a terceirização de forma ilimitada, o efeito será o da extinção da terceirização e como os parâmetros hoje aplicados para a terceirização não mais se sustentam, o efeito já produzido é o do fim jurídico da terceirização.
Em suma, por todos os ângulos que o fato social da terceirização se submeta a uma análise jurídica, pautada pela prevalência dos Direitos Humanos e a eficácia dos direitos trabalhistas, considerados, constitucionalmente, como direitos fundamentais, sobretudo diante da visibilidade que o fato adquiriu e de todas as avaliações feitas a seu respeito, é impossível manter o padrão jurídico da Súmula 331, do TST, ou vislumbrar uma fórmula jurídica para regular a terceirização.
Esse resultado se impõe a juristas, mas, sobretudo, aos sindicatos, pois todas as Centrais Sindicais foram unânimes na rejeição do projeto de lei, destacando as perversidades da terceirização, e será, no mínimo, uma incoerência histórica, se, desde já, deixarem de integrar os terceirizados aos efeitos plenos de suas ações coletivas. A não imediata incorporação dos terceirizados revelaria que as preocupações expressas pelas entidades referidas não tiveram em vista as condições de vida e de trabalho dos terceirizados, mas tão somente os seus interesses particulares.
A situação nos coloca, a todos, diante de um sério dilema: ou agimos em conformidade com as falas que estão sendo expressas contra a terceirização, sendo que todos os fatos e dados se referem ao padrão de análise jurídica da terceirização, baseado na Súmula 331 do TST, resultando no fim da terceirização; ou, na lógica do mal menor, concebendo que a Súmula 331 TST é o garante necessário para que a terceirização não se amplie, nos contentamos em barrar o PL 30 e assim deixamos tudo como está, mas com isso legitimamos os atentados, que foram tornados públicos, aos direitos fundamentais dos 12 milhões de terceirizados. Mas nesta última hipótese, perderemos, por consequência, todo moral para expressar argumentos futuros em defesa de uma ordem jurídica pautada pela proteção da dignidade humana.
Pertinente, para uma melhor reflexão, a trama do filme, Força Maior (2015, do roteirista Ruben Östlund), que trata da história de uma família, composta por um casal e dois filhos, que sai de férias durante cinco dias nos Alpes franceses. Na cena principal, os quatro membros da família estão almoçando em um restaurante a céu aberto próximo de um penhasco e uma avalanche vai se aproximando assustadoramente sobre o restaurante. Um dos filhos fica desesperado e começa a chamar pelo pai, mas este diante do perigo pega o seu celular e suas luvas e sai correndo, deixando para trás, a mulher e os filhos. Só que era apenas fumaça e não uma avalanche propriamente dita. Abaixando a poeira, ele retorna ao local e senta-se à mesa e continua almoçando como se nada houvesse ocorrido.
Claro que a situação não foi tratada como normal pela mulher e esta submete o comportamento do marido a um julgamento, ainda que este não admitisse que tivesse agido daquela forma.
Pois bem, a questão é que depois de tudo que já se passou em torno da discussão da terceirização, é inconcebível que se retorne à sala de audiências, aos gabinetes, aos escritórios, aos sindicatos e às mesas de negociação e se proceda da mesma forma anterior, julgando e avaliando a terceirização dentro dos parâmetros da Súmula 331 do TST, como se nada tivesse ocorrido, sendo a situação, nesta nossa história, ainda mais grave, porque, para continuar agindo da mesma forma ter-se-ia que negar vigência à CLT e à Constituição, cujas existências e relevância também foram exaltadas no correr do debate. Além disso, a preservação dos mesmos padrões jurídicos significaria legitimar e dar continuidade a todas as situações fáticas de supressão de direitos fundamentais dos terceirizados que foram exaustivamente denunciadas publicamente.
Forçando um pouco o argumento, imaginemos a situação de que tivesse havido uma proposta para a ampliação da escravidão a todos as pessoas que não tivessem meios próprios de sobrevivência e no debate público da proposta se explicitassem todos os males humanos da escravidão, vindo a sociedade como um todo a tomar conhecimento do que se passava nos navios negreiros e nos cafezais, mas, ao final do debate se contentasse em manter a escravidão nos limites estritos dos negros e negras.
Claro que a condição dos terceirizados não se assemelha à dos escravos (embora muitos trabalhem em condições análogas à dos escravos), mas se, na hipótese imaginada, a sociedade, toda ela, não seria historicamente perdoada por ter se tornado cúmplice e até co-responsável pelas atrocidades de que tiveram conhecimento, não é exagero algum dizer que o mesmo se poderá dizer de todos nós que, tendo conhecido as atrocidades da terceirização, nos contentemos em mantê-la do jeito que está, sendo que, no nosso caso, a situação é ainda mais grave porque não se trata de uma realidade que não possamos mudar, já que a ordem jurídica historicamente concebida não só possibilita, como de fato exige, a rejeição inconciliável e radical a todas as formas de rebaixamento da condição humana, não havendo, por certo, qualquer argumento econômico que, juridicamente, as justifiquem.
Mas, partindo do necessário pressuposto da sinceridade de todos que se manifestaram sobre a terceirização e no respeito a uma ordem jurídica que explicita a prevalência dos Direitos Humanos, o valor social do trabalho e da livre iniciativa, a proteção da dignidade humana como princípio fundamental da República e o desenvolvimento da economia sob os ditames da justiça social, tomando por base a eficácia de direitos trabalhistas que tem como objetivo central melhorar a condição social dos trabalhadores, diante do conhecimento público da condição a que são submetidas 12 milhões de pessoas, só se pode acreditar que, independente de qualquer alteração legislativa, já que normas e princípios jurídicos não faltam, a tercerização não encontrará mais guarida nas práticas sindicais, nos discursos, nas peças jurídicas e nas decisões judiciais.
Enfim, após tudo o que já ocorreu até aqui, é impossível que as coisas retornem ao ponto em que estavam, como se nada tivesse ocorrido. Há um processo histórico em curso, que já produziu efeitos necessários, inevitáveis e irreversíveis, que nos obrigam a afirmar, inclusive, que, juridicamente falando, a terceirização já era, acabou!
[1]. Mia Couto, in: https://www.google.com.br/?gws_rd=ssl#q=mia+couto+medo, acesso em 12/06/15.
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