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TEORIA

O rap na tradição musical revolucionária

Diego Braga

Quem já foi a algum protesto, principalmente àqueles marcados por forte presença da juventude, sabe que dificilmente lhe faltam músicas que entoem os ideais que o animam. Música e revolução andam de mãos dadas pelas ruas do mundo, embalando, animando e consolando oprimidos e explorados onde quer que resistam ou avancem. A cultura viceja na revolução, muito embora via de regra predominem os ditames degradantes na cultura que circula majoritária, como mercadoria, à medida de sua submissão às garras tirânicas do capital. Sob o capitalismo, a única liberdade garantida é a de compra e venda. A criatividade tem como condição de fomento a possibilidade de gerar lucro.

Capitalismo e viço cultural se converteram, na época imperialista, numa contradição em termos. Todas as manifestações genuínas e vigorosas de cultura viva, contra um sistema decadente que gera morte e propaga ilusões,  são absorvidas e degeneradas na forma mercadoria ou esmagadas e extintas. Podem, ainda, resistir, transformando-se constantemente, como expressão libertadora dos anseios e interesses históricos dos explorados e oprimidos.

Uma das últimas manifestações da dialética histórica desta dupla dinâmica – música e revolução – aconteceu no Egito, com o já consagrado músico e ator Mohamed Mounir, cujas músicas (que têm elementos de rapEzay (Como?) e Ali Sotak (Levante sua voz), por exemplo, foram compostas no espírito do período revolucionário que se abriu no Egito por conta da derrocada do ditador Hosni Mubarak pela força da classe trabalhadora e da juventude unidas na Praça Tahrir. Suas músicas foram censuradas nas rádios egípcias, mas o sistema não conseguiu evitar que se espalhassem como espécie de hino dos novos tempos entre a juventude.

A música, hoje, segue provando que as revoluções sempre estão em pauta, e a juventude, apta a cantá-las de maneiras a todo tempo inovadoras. Apesar da acachapante modernidade que mistura batidas eletrônicas, rap e jazz a elementos de música árabe, referências a redes sociais e televisão, a tradição em que se inserem as canções revolucionárias ou de protesto como as de Mounir assinala, ao mesmo tempo, uma já antiga caminhada de luta pela liberdade e pela construção de uma sociedade mais justa.

Música como tradição de liberdade e revolução

Do Canto de Guerra para o Exército do Reno (que seria rebatizado como A Marselhesa) na revolução da burguesia francesa à Internacional cantada pelo proletariado na Comuna de Paris e retomada durante a Revolução Russa de 1917; da Warszawianka (Varsoviana) dos poloneses contra o império russo que por sua vez foi entoada pelos russos contra o seu próprio czar em 1905 (mais uma mostra do internacionalismo intrínseco aos interesses históricos do proletariado); da Lady Macbeth do distrito de Mtensk de Shostakovitch, gênio musical russo crítico ao stalinismo; e também da alegre espanhola La Cucaracha, que em solo revolucionário mexicano, com sua infinita variedade de letras, traz referências a Pancho Villa e satiriza o ditador Huerta; passando pelo belíssimo Vai Passar de Chico Buarque e Edu Lobo contra a ditadura no Brasil e pela imortal Grândola, Vila Morena de Zeca Afonso, estopim do levante de abril português, a tradição de músicas revolucionárias ou de protesto se configura tão rica quanto longa.

As guerras civis russa e espanhola nos legaram um cancioneiro revolucionário profícuo, com hinos inesquecíveis como A las barricadas que, via versão russa, é uma recriação em língua espanhola da já mencionada Warszawianka. Só no século XX, a lista é grande demais para sequer ser mencionada em nomes aqui.  Há, por exemplo, uma música cujo título virou slogan de esquerda, The Revolution Will Not Be Televised (A revolução não será televisionada), de Gil Scott-Heron, que incorpora o canto falado de protesto do rap a uma levada soul e instrumentação progressiva. Vale a pena ouvir a pegada rock de The Revolution Starts… now (A revolução começa… agora), de Steve Earle.

Mas não nos enganemos com qualquer título:  Revolution, dos garotos de Liverpool, trata-se de uma resposta irônica e cética à onda revolucionária que atingiu a juventude europeia em 68. Obviamente que, tendo parte desta onda referências em Mao Tse-tung, apresentava por conseguinte contradições enormes entre a liberdade que exigia e a referência burocrática e autoritária de direção que reivindicava, estando a resposta crítica dos Beatles ao menos parcialmente justificada.

As próprias spirituals, músicas de teor religioso cristão cantadas pelos negros nos EUA, ao mesmo tempo em que são expressão de um processo de imposição cultural e ideológica violento e mistificador associado à realidade da escravidão, testemunham igualmente sobre a criatividade daqueles que se apropriaram do cristianismo e o manifestaram em música contagiante e única. Não bastasse, as spirituals serviram, simultaneamente, não raro como forma de comunicação entre escravos de distintas regiões. De modo mais elaborado, estas canções religiosas eram maneiras de passar mensagens em forma cifrada ou metafórica entre escravos, indicando rotas de fuga e pontos onde poderiam encontrar ajuda.

Por exemplo, uma das rotas mais comuns atravessava os estados livres do norte dos EUA, rumo ao Canadá, pela chamada Ferrovia Subterrânea, linha férrea que levava muitos negros fugidos da escravidão para territórios onde esta prática era oficialmente condenada. Estes trens repletos de negros em busca da liberdade foram chamados de Gospel Trains, (Trens do Evangelho), na música The Gospel Train’s a Comin’ (Os Trens do Evangelho Estão Chegando). Ou seja, a própria ideologia mistificadora imposta pelos proprietários brancos aos escravos negros, que reservava a libertação para depois da morte, era transmutada por estes escravos em música cuja linguagem metafórica indicava os caminhos da liberdade em plena vida, a liberdade genuína e possível.

Com o rap não é diferente, embora o caminho talvez seja o oposto. Um dos grandes símbolos da resistência e da consciência racial negra, de sua riqueza e criatividade, está também eivado de contradições. Esta forma musical, tornada sucesso mundial, foi apropriada pelo grande capital da indústria de cultura e transformada em canal ideológico predominantemente alienante e opressivo na vertente mais mercantil do rap atual. Não que estivesse isento de contradições desde suas origens, mas nos referimos aqui à vertente que faz uma apologia à mais alienante das mercadorias, o dinheiro[1], e retrata brutalmente as mulheres como objeto, por exemplo.

Raízes africanas e americanas do Rap

Apesar de hoje não ser utilizada exclusivamente por artistas negros, historicamente, a linguagem do rap moderno tem como antepassada a tradição africana de récita poética acompanhada por tambores e instrumentos melódicos, uma arte de contar histórias, transmitir e atualizar a sabedoria tribal. Esta arte era própria de poetas-cantores-sábios chamados griots[2], jali ou jeli, que atuavam em regiões da África Ocidental habitadas pelos Mandingas, os Fulas, os Hauçás e outros povos. Estes sábios cantores normalmente estavam a serviço de reis, como conselheiros, embora também atuassem entre o comum do povo, nos vilarejos. A arte dos griots continua viva e importante em diversas regiões da África ainda hoje.

Foi através da barbárie da escravidão que milhões de negros, dentre os quais havia decerto inúmeros griots, foram trazidos agrilhoados em tumbeiros para as Américas. O apego dos negros à sua cultura, àquilo que os afirmava como seres humanos e não como mercadorias, constituiu uma das principais formas de resistência à disposição contra o flagelo da escravidão [3].

Nas plantations, as grandes plantações de algodão trabalhadas por escravos no sul dos EUA, os negros e negras cantavam para embalar o ritmo de trabalho. Não raro, este canto era imposto pelo próprio dono da plantação, como forma de dar ritmo ao trabalho, otimizando a produtividade. Ocorre que, historicamente, as classes e setores sociais oprimidos sempre foram capazes de transformar dialeticamente uma situação de opressão em contexto de libertação. Assim, por exemplo, ocorre quando os trabalhadores, levados pela burguesia à penúria, decidem lutar contra a miséria e se chocam inevitavelmente contra as bases da própria sociedade burguesa. A miséria que a própria burguesia exploradora cria pode ser uma força propulsora para lutas que tendem a destruir a própria sociedade burguesa.

Da mesma forma, aquele canto de trabalho escravo muitas vezes estimulado pelo escravista era ao mesmo tempo coordenado pela técnica do chamado-e-resposta[4]: um cantor dentre os escravos trabalhando na plantation dirigia a cantoria, “puxando” uma estrofe ou verso, que por sua vez era respondida em coro pelos demais. Esta técnica da música negra trazida para as Américas por africanos está também na raiz de estilos de samba como o partido alto, por exemplo. Incorporando a música ao trabalho forçado, única atividade que lhes cabia na sociedade escravista, os negros mantiveram viva sua cultura ao adaptá-la às novas condições – brutais – e transformá-la numa forma de resistência à cruenta desumanização feita em prol da acumulação de capital.

O rap, em suas raízes, traz consigo as origens em solo geográfico e cultural africano, mas também incorpora o lamento pelo suplício da escravidão após o traslado da raça negra às plantações, tecendo em suas estrofes a longa história de resistência contra este flagelo e suas reminiscências modernas. Afinal, esta luta continuou quando a escravidão em sentido estrito se transformou em escravidão assalariada, transformação que não alterou muito o complexo ideológico com o qual a exploração capitalista se abateu com maior intensidade sobre o povo negro: o racismo.

A manutenção do racismo sob a igualdade formal da democracia burguesa serve à intensificação da exploração pela desigualdade salarial de que são vítimas os povos negros. No Brasil, esta desigualdade de facto disfarçada pela igualdade de jus é mascarada ainda pelo terrível mito da democracia racial brasileira, que procura impedir que os negros se organizem e lutem contra o racismo uma vez que este mito afirma que, por aqui, o racismo “não existe”. O rap, neste contexto, seguiu como expressão de afirmação de negritude por um lado, e de resistência contra o racismo e os males inerentes ao capitalismo por outro.

Desde sua entrada no Brasil nos anos 80, uma das tarefas do que de melhor há no rap nacional tem sido justamente desmascarar a realidade com rimas e ritmos magistralmente adaptados à prosódia brasileira. Obviamente, como já dissemos, também o nosso rap está eivado de contradições, com diferenças de grau. Há muito machismo, muita homofobia, muita capitulação às ideologias burguesas que alimentam e refletem a própria violência social contra a qual se levantam as vozes mesmas do rap.

Criatividade e tradição como voz da liberdade e da resistência

Nascido com a juventude negra dos EUA como arte de rua nos anos 70, o rap foi desenvolvido inicialmente nas festas de comunidades em Nova Iorque, sobretudo na região sul do Bronx, predominantemente habitada por negros. Os DJs (disc jockeys, aqueles que “pilotam” os discos) começaram a isolar batidas de estilos diversos de música negra como funk, soul, etc, ou a estender determinada parte de uma música à vontade, pela repetição.

Funcionava mais ou menos como aconteceu com o DJ Kook Herc, em 1973. Usando dois toca-discos, ambos com o clássico Give it up or turn it a loose, de James Brown,  Kool Herc deixou que um dos toca-discos tocasse uma parte da música e depois, imediatamente, mudou para o outro toca-discos, já preparado para tocar a mesma parte da música. Ele pode assim ficar alternando entre os toca-discos, repetindo à vontade determinada parte da música. Assim se recriava, em linguagem de rap moderno, uma das principais características da música dos griots, a repetição de determinada passagem, só que agora modernizada, não mais pela técnica do chamado-resposta.

O toca-discos, até então instrumento de mera reprodução de uma música gravada, foi como que reinventado por aqueles jovens negros como instrumento de produção de músicas sempre novas a partir das que já haviam sido feitas. A técnica hoje conhecida como looping ajudou a transformar a reprodutibilidade técnica da arte sob o capitalismo de que falou Walter Benjamin (1994) numa técnica de produção de novidade [5]. Não novidade como um fim em si, novidade mercantil, mas novidade a serviço de uma linguagem musical originalmente voltada para o protesto contra o racismo e as mazelas do capital. Com o rap, a juventude negra dos EUA criava um estilo musical a partir de suas bases africanas, apto a falar a voz da modernidade e que logo se espalharia pelo mundo.

A repetição de determinada passagem musical gravada em disco pelo looping, contudo, ainda não era o rap propriamente dito, mas uma de suas bases, de seus aspectos decisivos. O canto falado tão característico do rap se desenvolveu em conjunto com outros de seus aspectos. Este também tem suas origens em tradições africanas, uma vez que deriva de técnicas de recital narrativo ritmado, uma técnica mnemônica para armazenar e transmitir informações numa cultura ágrafa.

No entanto, o canto falado do rap moderno é fundamentalmente uma forma de arte contemporânea. Aquelas festas nas periferias do Bronx em que a juventude negra, oprimida e superexplorada se reunia eram ocasiões em que se trocavam experiências, se compartilhavam os dramas, realizavam-se disputas numa espécie de assembléia política ritmada, expunham-se as esperanças e a poesia nascida da vida comum daqueles jovens [6]. Assim, as festas onde nasceria o rap consistiam em importante espaço para intervenções ao microfone, inicialmente entre uma música e outra, mas logo as falas começaram a se incorporar nas próprias músicas. Desta feita consubstanciou-se em linguagem moderna a velha tradição da crônica musicada, a expressão da voz coletiva por meio do talento individualizado de um artista que se identificava fundamentalmente como artista daquela comunidade e não como um indivíduo especial, isolado e supostamente autônomo em relação à sociedade em que vive. A figura do MC (Master of Ceremony, ou seja, o Mestre de Cerimônias, aquele que, de posse do microfone, comanda a festa com seus discursos e versos) surge, então, no contexto destas festas, como parte fundamental do estilo que logo viria a ser denominado de rap.

A aculturação brasileira do rap e a voz da mulher negra

Muitos de nossos rappers incorporam ao ritmo estadunidense elementos específicos da linguagem musical brasileira, como melodias modais, instrumentação latina e síncopes próprias de ritmos afro-brasileiros, sem contar elementos mais vanguardistas como certo atonalismo que já fora explorado nos incomparáveis fraseados jazzísticos de um John Coltrane.

Salvo exceções, a matriz africana do rap não nos deixa sentir grande estranhamento ao se fundir nossa música com este estilo importado dos EUA. Está longe de ser simplesmente uma imitação ou reprodução da cultura imperialista em solo brasileiro, e não menos pelo fato de que esta linha de força cultural seja de matriz negra. O nacionalismo, mesmo no caso de um país semicolonial como o Brasil, pode nos tornar vesgos se não for tomado dialeticamente. O rap é expressão musical de toda uma cultura urbana negra contemporânea de raiz estadunidense conhecida como cultura hip-hop, que inclui formas de vestimenta, de dança, de linguagem verbal e visual (o graffiti) e também uma determinada visão política que consiste, de modo bem amplo, em ser um canal cultural de expressão contra a exploração e a opressão racial, mas não apenas estas.

Um dos mais felizes exemplos disto é que as mulheres negras de nosso país vêm fazendo o rap dar um passo à frente na sua longa história. Em matéria recente na revista R, que inclui entrevistas com as principais expoentes mulheres – a maioria negras – da nova geração do rap nacional, Janaína Oliveira e Shuellen Peixoto (2015: 17-21) mostram que este estilo, ainda dominado por homens, cada vez mais se torna expressão de uma voz que funde, na essência tradicional de suas letras de protesto, a voz do feminismo e do combate à opressão contra os LGBTs.

Nesta entrevista, ficamos sabendo, por exemplo, como a rapper Luana Hansen põe sua música em unidade com sua luta pela emancipação feminina e LGBT, levantando pautas importantes – mas raramente enunciadas na nossa música – como a defesa da descriminalização do aborto na poderosa e ousada Ventre Livre, que já no título claramente faz referência à questão negra aliada à questão femininista. Os depoimentos das outras rappers entrevistadas, Preta Rara (cuja Audácia tem uma pegada rap clássica contagiante), Yzalú (vale ouvir Cabeça de Nego) e Lurdez da Luz (destaque para Levante), apontam em direções análogas. É uma entrevista que enche nosso coração de alegria, nossa vista de esperança, e oxigena as ideias acerca da real situação da música popular brasileira que, se a fôssemos julgar pelo que a TV mostra, deveríamos julgar degradada e angustiante.

Não podemos ter uma atitude populista e demagógica para com a música popular, celebrando-a simplesmente, sem identificar nela também as marcas e reflexos da opressão, expressões da alienação, da carência de educação de qualidade, de tempo livre, dentre tantas outras coisas que serão superadas, enriquecendo ainda mais a música popular, com a construção de uma sociedade socialista, sem exploração e apta a nos levar a uma derrota definitiva a todas as formas de opressão. A visada demagógica pode servir para esconder a necessidade de elevação do nível cultural das massas como parte do processo revolucionário. Tal elevação significa que tal como é preciso expropriar as fábricas, bancos e terras, não para explorar trabalho, mas para libertá-lo, também é necessário que os trabalhadores se apropriem do rico legado da cultura burguesa, não para repeti-la servilmente. Antes, para criar pela primeira vez uma cultura universal sem limites de classe.

De modo contrário, também é errônea a visada elitista, simplesmente condenadora, que vê na cultura popular apenas pobreza simplória, degradação cultural e expressão tosca. Trata-se, neste caso, de negar voz aos oprimidos e explorados, tratando a cultura como prerrogativa da burguesia e de seus servos mais ou menos conscientes. Em suma, é preciso olhar a cultura popular, em que o rap já se inclui, de frente, perceber o que esta forma de arte tem de mais valioso e que deve ser valorizado e desenvolvido. Da mesma forma, identificar o que nela grassa de violento, retrógrado e bárbaro, para que destes elementos possamos depurá-la.

É isto o que as mulheres do rap brasileiro vêm fazendo, por notável exemplo. Ao mesmo tempo em que a grande mídia e o grande capital investido na cultura transformam o rap em veículo de culto à mercadoria e ao dinheiro, em linguagem de reificação machista do corpo da mulher, em expressão muda para os protestos de raça e de classe, de gênero e de sexualidade, por outro lado vemos o rap avançar, incorporando pautas feministas e LGBTs, sendo cada vez mais absorvido e transmutado em expressão musical brasileira e seguindo vivo na história[7].

Esta história se lê refletida neste embate que se verifica no seio da própria expressão musical do rap: de um lado, a reação a serviço da burguesia, girando as rodas do capital; de outro, a revolução, ainda que latente, expressa na voz dos oprimidos, força propulsora para a construção de uma nova etapa histórica. Tal é a mesma história que já fora definida há muito tempo por Marx e Engels como luta de classes. A luta de classes, portanto, também está presente no rap, o qual acentua sobretudo o viés de raça oprimida ao situar-se na trincheira da classe explorada.

Também no rap cabe escolher um dos lados. A cultura, ao contrário do que prega a ideologia burguesa, não é um terreno livre de conflitos sociais. Não podemos deixar que a ideologia burguesa, cooptando artistas através das liberalíssimas imposições da ditadura do mercado, volte o cano que dispara as letras do rap contra nós. As principais vítimas destes disparos são sempre os negros, as mulheres negras e os LGBTs filhos da classe trabalhadora.

Notas

[1] “A venda é a prática da alienação. Assim como o homem – enquanto permanece sujeito às cadeias religiosas – só sabe expressar sua essência convertendo-a num ser fantástico, num ser estranho a ele, assim também só poderá conduzir-se praticamente sob o império da necessidade egoísta, só poderá produzir praticamente objetos, colocando seus produtos e sua atividade sob o império de um ser estranho e conferindo-lhes o significado de uma essência estranha, do dinheiro.”. (MARX, s.d.)

[2] “O escritor, historiador, etnólogo e um dos maiores especialista em tradições africana, Amadou Hampaté Bâ, no seu texto ―”A tradição viva”, nos informará detalhadamente quem seriam os ―”griots”, e em uma das partes do texto dedicado a estes, chamados de ― “Os animadores públicos ou ‘griots’ (‘dieli’ em bambara)”, começa assim: Se as ciências ocultas e esotéricas são privilégios dos ‘mestres da faca’ e dos chantres dos deuses, a música, a poesia lírica e os contos que animam as recreações populares, e normalmente também a história, são privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o pais ou estão ligados a uma família. Em seguida, classifica-os em 3 categorias:  primeiro, ― “os griots músicos, [o qual nos interessa, particularmente, neste trabalho], que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Normalmente são cantatores maravilhosos, preservadores, transmissores da música antiga e, além disso compositores”. Segundo, ― “os griots ’embaixadores‘ e cortesões, responsáveis pela mediação entre as grandes famílias em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única família.” Terceiro, ― “os griots genealogistas, historiadores ou poetas(ou os três ao mesmo tempo), em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a uma família” (TORRES, 2009: 71)

[3] “A vida familiar era decisiva para os escravos na criação de um espaço de afirmação dos elementos mais básicos de sua humanidade. Havia inúmeras outras formas. Rituais de todos os tipos eram importantes para os escravos em todo lugar. A celebração de nascimentos, casamentos, funerais, aniversários, festas religiosas e seculares como o Ano Novo eram tão importantes para as populações escravas como para os homens e mulheres livres. Os escravos insistiam em organizar e participar nestas e noutras celebrações coletivas em que usavam suas melhores, roupas, preparavam refeições elaboradas e tocavam música festiva, dançavam, bebiam e se alegravam como quaisquer seres humanos em celebrações.” (BERGAD, 2007:177 – tradução nossa)

[4] A técnica do chamado-e-resposta própria das tradições musicais africanas que vieram para as Américas se diferencia do canto antifônico da música europeia por uma série de fatores complexos explicados minuciosamente por Waterman (1990) em linguagem razoavelmente acessível ao leigo em musicologia. Uma das diferenças mais claras é que o canto africano, tendo como base a “o sentido de metrônomo” (a noção de uma batida regular, mas ausente na execução instrumental, com que o músico trabalha na tradição africana, e da qual derivam, direta ou indiretamente, as principais peculiaridades das tradições distintas da música africana), sobrepõe o canto do chamado com o canto coral de resposta, uma vez que a base do canto é o ritmo, não a melodia (WATERMAN, 1990: 89-90).

[5] Obviamente que as questões coirmãs da reprodutibilidade técnica e da cultura de massas são vistas por Benjamin, pensador radicalmente dialético, de uma maneira mais rica, mais total, mais contraditória. O fenômeno não é meramente identificado como um subproduto da degeneração cultural capitalista, como tende a ser visto por Adorno e Horkheimer. Benjamin argumenta que “Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o ‘semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único” (BENJAMIN, 1994: 170), ao mesmo tempo em que reconhece os novos problemas que reprodução técnica coloca à cultura: “(…)Mas, enquanto o autêntico preserva toda a sua autoridade com relação à reprodução manual, em geral considerada uma falsificação, o mesmo não ocorre no que diz respeito à reprodução técnica, e isso por duas razões. Em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodução técnica tem mais autonomia que a reprodução manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original, acessíveis à objetiva (…) mas não acessíveis ao olhar humano. (…) Em segundo lugar, a reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio do amador1; O coro, executado ao ar livre, pode ser ouvido num quarto. (…) elas [as cópias] desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora” (idem: 167-8). “(…) com a reprodutibilidade técnica, a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. (…) Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política” (idem: 171-2, grifos do autor).Neste sentido, o que afirmamos é que à cultura de resistência ou revolucionária cabe superar os aspectos negativos da contradição cultural debatida por Benjamin como traço da era da reprodução.Este processo, sem dúvida, deve ser constante. Uma tradição musical não será para sempre expressão de contestação e resistência simplesmente porque seus traços de origem rementem à revolução.

[6] Trata-se de uma tradição musical fundada em uma matriz cultural pré-capitalista que foi transportada para dentro do capitalismo e a ele forçada a adaptar-se. Neste sentido, a separação alienante entre ética e estética não lhe é tão avassaladora (ao menos nas suas melhores partes), nem o critério de julgamento puramente individualizante e formal: “(…) entre músicos africanos um julgamento estético (isto soa bem) é necessariamente também um julgamento ético (isso é bom). A questão é o “equilíbrio”: “a qualidade das relações rítmicas” descreve a qualidade da vida social. “Neste sentido, o estilo é uma outra palavra para a percepção das relações”. Sem equilíbrio e “coolness” [termo em inglês que, especificamente no linguajar de músicos negros, designa certa qualidade de uma música ou passagem musical que comporta a totalidade dos valores essenciais pelos quais se a deve julgar ética-esteticamente], o músico africando perde seu domínio estético, e a música abdica de sua autoridade social, torando-se tão somente vibrante [não equilibrada], intensa, limitada, pretensiosa, abertamente pessoal, enfadonha, irrelevante e em última instância alienante” (FRITH, 1996: 124 – tradução nossa)

[7] Sobre o caráter contraditório da cultura popular como expressão de conformismo e de resistência, ao mesmo tempo, é de grande valor a obra de Marilena Chauí (1986). Por exemplo, citando o trabalho de  Ruth B. L. Terra, Memórias de Lutas: Literatura de Folhetos do Nordeste, 1893-1930, analisa no cordel, dentre outros, dois temas. Na categoria das ‘queixas gerais’, o poeta contradiz o que o jornal – instrumento dos poderosos – diz que acontece, queixando-se contra a pobreza e problemas correlatos, bem como a opressão e exploração pelos ricos e poderosos, retratados de modo satírico. No caso do miserável, a pobreza aparece como ordem natual das coisas ou vontade de Deus. No caso dos trabalhadores rurais e seringueiros, como resultado da exploração. Em tom conservador também critica a vaidade feminina, o avanço tecnológico que não elimina a miséria, defendem a família contra o trabalho feminino assalariado, idealizando o passado. [CHAUÍ, 1986: 155-7]. O outro tema é o das ‘salvações’, que tratam do povo em armas, do banditismo e do cangaço em oposição à hierarquia do poder instituído, das oligarquias locais ao governo federal. O sertão e o nordeste não aparecem isolados, mas integrados à política do país. Contrapondo-se à disputa pelo poder político, própria dos poderosos, a ética aqui é a da sedição, o direito à rebelião coletiva. O passado, por meio de sua expressão literária como gesta e romance, instaura a ética da honra e da luta contra a opressão [idem: 157-8]. Há ainda inúmeros outros exemplos nesta obra, sob a luz de um conceito bem amplo de cultura, como por exemplo o uso da bandeira nacional como escudo contra a repressão pelos operários durante da ditadura.

 

Referências Bibliográficas

BEGARD, Laird. The Comparative Histories of Slavery in Brazil, Cuba and the United States. New York: Cambridge University Press, 2007.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, v. 1). São Paulo: Duas Cidades, 1994, 7a edição.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência. Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FRITH, Simon. “Music and Identity”, in: HALL, Stuart; DU GAY, Paul (eds).  Questions of Cultural Identity. London: Sage, 1996.

MARX, Karl. A questão Judaica (parte II).. s.d. Disponível em <https://www.marxists.org/portugues/marx/1843/questaojudaica.htm>

OLIVEIRA, Janaina; PEIXOTO, Shuellen. “As mulheres tomam conta do mundo do Rap”, R (revista R), nº5, junho de 2015, 17-21.

TORRES, Francisco Leandro. “Vozes e visões, Cantos (Griots) e Cabelos: Afribrasil”, in: LIMA, Tânia; NASCIMENTO, Izabel; OLIVEIRA, Andrey (orgs.). Griots. Culturas Africanas. Linguagem, memória, imaginário. Natal: Lucgraf, 2009.

WATERMAN, Richard Alan. “African Influence on the Music of Americas”, in: DUNDES, Alan (ed.). Mother wit from the laughing barrel: readings in the interpretation of Afro-American folklore. Jackson: University Press of Mississippi, 1990.