Difícil imaginar um acordo que conseguiria ser mais deplorável. Quem afirma isto são os próprios alemães. A revista Der Spiegel, porta-voz da elite liberal de Berlin, o descreveu como um “catalogo de crueldades” e uma “humilhação deliberada”. As imprensas francesa e britânica foram igualmente duras. Em seus diários, referencias ao “acordo de Versalhes” e a “paz de Cartago” circulavam livremente. Até o governo da inócua Luxemburgo, um país cuja fama não é exatamente a de um provocador internacional, flertou com a ideia de Merkel como representante do Terceiro Reich. Foi apenas de um canto da Europa que não se ouviu denúncias pesadas contra as imposições da troika; dos porta-vozes do Syriza.
De joelhos, Alex Tsipras entregou à Alemanha tudo que se havia para entregar. Ele se comprometeu até mesmo em reverter as poucas medidas de justiça social adotadas por seu governo ao longo destes últimos 5 meses. Mais ataques trabalhistas, mais cortes as pensões e muitas mais privatizações virão pela frente. A traição iniciada no parlamento de Atenas atingiu seu ápice na mesa de negociações em Berlin. Agora, cabe ao primeiro-ministro cumprir internamente o resto do acordo, isto é, realizar expurgos contra os adversários da austeridade que integram seu partido e governo.
Houve, novamente, uma pequena manifestação por aqui contra o acordo ontem a noite. Segundo indicam todas as pesquisas de opinião, assim como o sentimento majoritário das ruas, a ruptura com o Euro é ainda é bastante minoritária. 60% querem continuar na moeda única. São apenas 16% os que querem o retorno ao Drachma. Até que haja, de fato, uma desconstrução desta ilusão nos potenciais da União Europeia, propagada centralmente pela direção majoritária do Syriza, será difícil vislumbrar, em Atenas, uma ruptura com a moeda única.
Guerra à Esquerda
Já se iniciou por aqui a sessão de caça às bruxas às vozes dissonantes no Syriza. Segundo Statis Kouvelakis, uma das principais referencias intelectuais da ala esquerda, o processo se encontra em estagio avançado. Em um post no facebook, redigido esta madrugada, o acadêmico marxista afirmou
Uma avalanche de declarações das figuras mais direitistas do governo e do Syriza (ministro da Economia Stathakis, Ministro da Receita Interna Mardas, Membro do Parlamento Europeu Papadimoulis) vem abertamente chamando uma reforma no governo e a expulsão de Zoe Kostantopoulou (presidente do parlamento grego), Lafazanis (Ministro da Industria, Meio Ambiente e Energia) e o resto da ala esquerda do Syriza.
Mardas, um ex-expert do PASOK, muito próximo do ex-primeiro ministro “modernizador” Costas Simitis, fez comentários irônicos sobre como Zoe e Lafazanis estão “perdidos no espaço” e os atacou por se inspirarem em Che Ghevara e Rosa Luxemburgo (obviamente, algo tido por ele como insulto supremo).
No editorial de hoje, Avghi, o jornal diário do Syriza controlado pela ala direita do partido, foi além, reivindicando eleições imediatas e a “recomposição da maioria governista”.
Enquanto isto, Stavros Theodorakis, dirigente do Potami, o maior dos cavalos de Troia da União Europeia e do grande capital, vem se comportando como futuro-ministro, enquanto os lideres do Nova Democracia e do PASOK agem como partes futuras de uma nova maioria parlamentar “pró-acordo”.
Os 251 votos no parlamento a favor da proposta de acordo podem ser vistos como aceleradores de um enorme realinhamento político. Não nos esquecemos que o governo perdeu sua maioria parlamentar no ultimo voto, com 17 parlamentares do Syriza, em diferentes formas, não votando na medida. Quinze outros deputados fizeram uma declaração expressando solidariedade política com os que rejeitaram o acordo alertando que não votariam a favor de um futuro memorando com a Troika.
Segundo o sistema parlamentar grego, cabe à chefia do partido, e não ao parlamentar, o assento legislativo. Isto significa, em termos práticos, que caso Tsipras o queira, pode não só expulsar os rebeldes de seu partido, como também substitui-los no parlamento por funcionários mais leais. Os próximos dias, portanto, serão decisivos para o futuro da reorganização da esquerda por aqui.
A velocidade da ofensiva parlamentar do governo, que se iniciará hoje, é compatível a intensidade de sua capitulação. Os alemães exigem não só a rendição total, mas que ela seja feita o mais rápido possível. Determinou-se que o parlamento grego, ainda hoje, aprove o acordo firmado por seu primeiro ministro, e até quarta vote boa parte da legislação que o acompanha. Zoe, a presidente da casa, pode ser a primeira a ter seu assento cassado pela direção do partido. Na ultima votação, a deputada se negou a impor o rito sumario nas propostas de negociação de Tsipras, enfurecendo o governo. Caso, em nome do rito parlamentar, recuse a acelerar a rendição nacional, poderá gerar ainda mais problemas ao governo.
Obviamente, tudo indica que o Syriza caminha para uma ruptura. As dimensões deste processo, pelo menos agora, enquanto escrevo, são de difícil mensuração. Como tal grupo irá se portar politicamente, como se relacionarão com o resto da esquerda anti-capitalista e como se desempenharão nas próximas eleições parlamentares, que, ao que tudo indica, deverão ocorrer novamente este ano, são questões em aberta. Tudo depende, em ultima instância, na reação das massas e a vanguarda aos termos dos acordos da Troika.
Os termos da rendição
As capitulações de Tsipras, como se sabe, foram brutais, se não tragicômicas. A parte mais vexatória das negociações foi a exigência inicial do ministro das finanças alemão, Wolfgang Schäuble, para que os gregos entregassem imediatamente 50 bilhões de Euros em privatizações a um fundo sediado em Luxemburgo. Segundo as ordens de Berlim, tal fundo, o “Instituição para o Crescimento”, serviria de garantia para impedir possíveis trapaças de Atenas ao longo do processo.
A parte mais curiosa da proposta é que o misterioso fundo no qual estariam depositados estes recursos é de propriedade do KfW, uma espécie de BNDES alemão. O presidente do conselho da instituição (que inclui o ex-primeiro ministro do Nova Democracia, Samaras) era o próprio autor da proposta, Schäuble. Beira o ridículo, portanto, o fato de Tsipras estar comemorando que a grande vitória do Syriza nas negociações foi garantir que o fundo de 50 bi ficará depositado em Atenas, e não em um país estrangeiro… O primeiro-ministro grego quer os louros por não ter entregado, literalmente, o que sobrou das riquezas de seu país à direita alemã!
Outra humilhação é que a Troika, após os acordos de fevereiro, havia deixado de monitorar a economia grega a partir de seus interventores em Atenas. Agora, ela retornará à gerencia in loco das finanças gregas. Vale mencionar que esta foi a principal “conquista” de Tsipras no acordo do inicio do ano. Obviamente, os ataques não param por aí. Segundo sistematização do “catalogo de crueldades”, feito pelo o jornal The Guardian, será necessário que o parlamento grego aprove as seguintes leis:
- Revisão do sistema de impostos para padronizar seus índices e aumentar a receita. [a ideia aqui é eliminar qualquer sistema de imposto progressivo, fazendo com que as ilhas mais isoladas da Grécia tenham que pagar os mesmos impostos que Atenas]
- Aumentar a idade de aposentadoria para 67 anos até 2022 e eliminar os benefícios concedidos a aposentados mais pobres [dispensa comentários]
- Garantir que a Elstat [o equivalente ao IBGE grego] esteja livre de influencias politicas – para garantir que a Grécia não maquie seus dados econômicos. [exige-se aqui a entrega de soberania total da Grécia aos credores, que querem ter acesso privilegiado aos dados da sociedade]
- elaborar mecanismos jurídicos que garantam cortes imediatos de gastos se a Grécia não aplicar as exigências de cortes financeiros exigidos pela Troika. [é neste bolo que entra a proposta do fundo de 50 bi]
Alem do mais, outras duas peças legislativas precisam ser aprovadas até 22 de Julho
- Reestruturação do código civil [para garantir mais vantagens aos investimentos do capital frente a possíveis restrições estatais]
- Transposição das diretrizes da União Européia para pedidos de falências de bancos na forma de lei nacional. [protegendo-se, assim, o mercado financeiro]
Há também, é claro, retirada de direitos trabalhistas. Novamente, segundo o Guardian, o documento da União Europeia faz a seguintes exigências
No tema do mercado de trabalho, realizar uma rigorosa revisão e modernização dos acordos coletivos, do direito à mobilizações dos trabalhadores, e, segundo as diretrizes da União Europeia e suas melhores práticas, das demissões coletivas, segundo o calendário acordado com as instituições [leia-se aqui, a Troika].
A linguagem das “melhores práticas” pode ser interpretada como resquício de crueldade do mais intrusivo acordo europeu já firmado desde o inicio da crise econômica mundial de 2008. O ataque é de proporções magnas. Resta ver o tamanho da reação da esquerda.
A Greve Geral
Enquanto escrevia este curto texto, recebi, repetidamente, convocações das companheiras do Antarsya para um ato, que ocorrerá hoje as 19h na praça Syntagma. Ele será o primeiro termômetro da reação operária, popular e estudantil aos novos ataques, desta vez, realizados pelo Syriza.
Junto a isto, o comitê executivo do ADEDY, a central sindical unitária do funcionalismo público, convocou uma reunião ampliada esta tarde. Nela, será votada a proposta feita pela esquerda anti-capitalista por uma greve geral de 24 horas contra o novo memorando, proposto pelo Antarsya com apoio dos sindicalistas do Syriza.
A direção da central é composta, no seu executivo, por 2 membros do Antarsya, 2 do KKE, 4 do Syriza (muitos dos quais tem simpatia com a ala esquerda do partido), 4 do PASOK, 2 ex-PASOK e 3 do Nova Democracia. A correlação de forças, por tanto, é equilibrada. Por isto chamou-se a reunião mais ampla.
É importante ressaltar, como mencionei no inicio deste texto, que a ideia de mais sacrifícios pelo Euro ainda é majoritária na população. Além disto, a proposta de Tsipras, de convocar o referendo para negociar com os alemães em “melhores condições” também possuía muito apoio popular, inclusive no ativismo de esquerda.
A grande questão é que a tática das “melhores condições” se provou um verdadeiro desastre. Os gregos votaram pelo “não”, e ganharam com isto um “sim” ainda pior que o proposto. Nas redes socais a hashtag “isto é um golpe”, que denuncia o acordo proposto, tem sido a mais compartilhada da Grécia. Resta torcer que ela se traduza em ações práticas nos próximos dias.
Até lá, manterei vocês informados!
Aldo Cordeiro Sauda
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