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TEORIA

Diário de Atenas – A Madrugada da Traição – 10 e 11 de Julho

Quando Tsipras se sentou com os chefes dos partidos tradicionais da burguesia, acenando um entendimento de “salvação nacional”, já era possível prever que a semana caminhava em direção à metamorfose. O “não” triunfante das urnas, convocado e apoiado pelo governo, tornaria-se um grande “sim” parlamentar conduzido pelo mesmo governo. A madrugada de ontem, em termos explícitos, foi uma de traição.

Ao apresentar suas propostas de austeridade ao congresso, ainda pela manhã, ficou claro o tamanho do golpe de Tsipras. Cortes às aposentadorias, aumento nos impostos para as zonas mais periféricas do país e, por fim, mais privatizações, agora, dos portos e da rede elétrica. Difícil pensar um programa que se chocaria com tanta força à plataforma de Tseloniki, com a qual ele se elegeu primeiro-ministro.

Ao longo da semana, já me preparava, psicologicamente, para a facada nas costas; mas há como estar preparado para isso? Já havia debatido o tema com os camaradas do DEA, o pequeno grupo trotskista do Syriza que votou contra as propostas de Tsipras no parlamento. Seu dirigente, Sotires, previa que o acordo passaria com apoio majoritário da população, por medo do retorno ao Drachma. Ele estava certo. Ainda há muita fé no Deus-Euro por aqui.

Praça desanimada

Foi com base na certeza da derrota, do desânimo resignado dos que caminham para o abate, que se deu o ato de ontem na Syntagma. Havia, verdade, uma grande coluna do Pane, a colateral sindical do KKE, que protestava por ali. Mas tarde, após alguns confrontos com a polícia, juntou-se a nos a militância do Antarsya, a ala esquerda do Syriza e alguns anarquistas.

Não senti, na praça, nenhuma sensação de revolta, como originalmente imaginava. Era como se uma fadiga geral havia se apossado de todos nós, que parecíamos estar na Syntagma mais por obrigação que convicção. A final, com o apoio dos partidos burgueses, mesmo se mais de metade do Syriza votasse contra a proposta, ela sairia vitoriosa.

Lá pelas 22h a praça já se esvaziava, antes mesmo do inicio da sessão parlamentar. Zoe Constantopoulou, a respeitável deputada do Syriza que preside o parlamento (e que é admirada até mesmo pelos camaradas do Antarsya que conheci por aqui) havia deixado claro, para a fúria dos próprios legisladores e da imprensa, que a votação apenas se iniciaria depois da meia-noite. Segundo ela, o regimento parlamentar não seria quebrado por exigência dos prazos da Troika.

Ao longo de todo esse processo, a grande questão era saber o tamanho da quebra que Tsipras teria em sua base parlamentar. Como a proposta a ser votada girava em torno de uma autorização especifica ao executivo, e não a elaboração de uma lei, ela não era uma “votação de confiança”. Em outras palavras, mesmo se o governo não acumulasse 151 dos 162 de sua base, ele não teria de mudar sua composição partidária (segundo o modelo parlamentar grego, caso um governo perca uma “votação de confiança” e não consiga recompor-se com outros partidos, chama-se, necessariamente, a novas eleições).

A esquerda do Syriza

A ala esquerda do partido de Tsipras, que pode tornar-se uma ameaça à estabilidade de sua maioria parlamentar, é composta por algo em torno de 50 dos 149 parlamentares do Syriza. Conhecida como “Plataforma Esquerda”, ela é formada pela aliança de dois grupos, a “Corrente de Esquerda” e a “Rede Vermelha”. A Rede Vermelha, que reivindica ser algo em torno de 30% da Plataforma Esquerda, é organizada pelos trotskistas do DEA, que dirigem o espaço junto a militantes independente. Já a Corrente de Esquerda é mais plural. Dentro dela há diferentes perspectivas políticas sobre a relação com a maioria.

Uma ala, mas à direita, defende uma política de compromissos com Tsipras, já os mais à esquerda acham que a tendência deveria estar do lado de fora do governo. Panagiotis Lafazanis, ministro da indústria, energia e meio ambiente, além de principal figura publica da esquerda do partido, integra o campo mais ao centro do grupo. Junto a Zoe e o vice-ministro do Emprego, os três não votaram a favor do plano de austeridade.

No total, entre os membros da “plataforma esquerda”, sete deputados se retiraram da votação e oito se abstiveram. Aparentemente, coube às principais figuras publicas da tendência se rebelarem contra o governo, enquanto a base dos mesmos votou com Tsipras. Já os dois deputados da Rede Vermelha votaram diretamente contra a proposta.

Instrumento central de intervenção do DEA no Syriza, segundo Sotires, a Rede Vermelha organiza o trabalho partidário do grupo internacionalista. Logo que passaram a assumir uma postura clara de oposição a Tsipras no interior de seu partido, segundo me foi relatado, o DEA começou a atrair inúmeros quadros e militantes. “Muitos poucos deles tinham algum conhecimento do que é o trotskismo”, afirmou-me Sotires, “portanto, como somos ainda um grupo muito pequeno, incapaz de assumir uma tarefa de tais proporções no campo da formação ideológica, achamos melhor ir organizando lentamente nossos apoiadores nesta colateral”.

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Gianna Gaitani, parlamentar do DEA

Nas eleições passadas, o DEA elegeu dois deputados. Para infelicidade do grupo, o modelo parlamentar grego dá ao cabeça de chave do partido (neste caso, Tsipras) o direito de substituir um dos deputados eleitos do seu partido. Não por acaso, Tsipras usou seu poder para tomar para si um dos assentos do DEA, enfraquecendo ainda mais sua pequena representação parlamentar. O Rede Vermelha, porém, consegui atrair uma parlamentar radical do Syriza, Elena Psarea. Junto a ela, Gianna Gaitani, orgânica do DEA, foram as únicas a votaram contra as medidas pró-Troika.

Unidade nacional?

Ao voltar para casa, pretendia acompanhar pela internet a votação parlamentar. Tive, porem, pouca sorte. Após ouvir um estrondo, típico da explosão de um transmissor de energia, a moradia estudantil da Universidade Politécnica de Atenas, aonde estou abrigado, ficou no escuro. Acabei resignando-me aos lençóis, com a pretensão de informar-me apenas no dia seguinte sobre o resultado da votação congressual.

Afinal, todos já sabíamos que a medida passaria no parlamento, o acordo com a direita significou que as cartas do jogo já estavam dadas. E assim o foi, 250 votos para a austeridade, 32 para o “OXI” (a maioria, vindo do KKE e dos neo-nazistas do Aurora Dourada) além de 18 abstenções e ausências.

O fato de 17 deputados não terem votado na proposta de Tsipras significa, na prática, que ele corre o risco de perder a maioria parlamentar. Tudo, porém, parece acertado para que este “grandioso estadista” convide os partidos burgueses a compor um governo de “salvação nacional”, que aplicaria à risca as exigências da troika. Segundo os boatos que ouvi ontem na Syntagma, porém, Tsipras ameaçou renunciar se a ala esquerda votasse contra a aprovação do plano após a atual rodada de negociações. Chantagista, o primeiro-ministro, em nome do estado capitalista alemão, está tentando aterrorizar a esquerda de seu próprio partido.

Enquanto circula, por um lado, o boato da renúncia, na imprensa local e internacional já se fala na composição de um novo ministério. A ala esquerda seria chutada para fora do governo, sendo substituída por políticos mais “pragmáticos”. Certamente Lafazanis está com os dias contados no ministério. Como dirigente responsável pela indústria estatal, caberia diretamente a ele privatizar a rede elétrica do país, algo que já anunciou que não aceitará cumprir.

A questão, porém, é que o “OXI” da esquerda grega pode acabar sendo complementado por um “NEIN” da direita alemã. Mesmo que sob pressão de Obama, que procura uma saída negociada para a crise, Merkel pode acabar rejeitando o acordo com os gregos. Seu partido, o CDU, está sabidamente dividido sobre o tema, posto que a maioria dos alemães, após uma enorme campanha da imprensa, está mais do que disposto a empurrar a Grécia para fora do Euro.

Historicamente o único partido conservador do país, o CDU de Merkel tem enfrentado o surgimento de um tremendo desafio à sua direita, o AfD, Alternativa para a Alemanha. Com base na rejeição à presença do sul da Europa no Euro, o partido vem comendo as bases do governo. Caso Merkel capitule a Obama, é muito possível que seu partido perca o monopólio parlamentar sobre o conservadorismo alemão, algo que o CDU, por conta de elevadas cláusulas de barreira, detém há mais de 60 anos.

Mesmo com a traição de Tsipras, porém, não está dado que a Grécia testemunhe mais uma rodada de austeridade. Enquanto escrevo, os ministros das finanças dos diferentes países do Euro estão reunidos avaliando se aceitam, ou não, a capitulação do governo grego. O futuro da austeridade e da reorganização da esquerda na Europa que tal ruptura pode produzir ainda está em aberto.

É compreensível o desanimo frente à tremenda derrota, em escala mundial, imposta esta madrugada por Tsipras ao movimento anti-austeridade. Porém isto implica, necessariamente, em uma visão de curtíssimo prazo. Tudo leva a crer que o processo grego está apenas se iniciando, e que muitas novas experiências a serem realizadas pelos trabalhadores da Grécia (entre os quais está a superação das ilusões no Euro) ainda precisam ser acumuladas. Além do mais, desde o inicio, quando Tsipras flexibilizou o programa de seu partido por fora dos organismos de direção partidária que a natureza de seu projeto pessoal estava clara. O atual primeiro-ministro, desde sua projeção de massas no cenário político daqui, representa não somente uma poderosa alavanca na luta de classes, mas também uma barreira a ser derrubada. É dentro desta contradição dialética que o processo grego deve ser visto.

Esta semana, pretendo ainda falar com a direção do movimento anti-fascista, além do SEK, o grupo trotskista que integra o Antarsya. Até uma resolução deste dilema, que demorará mais alguns dias, continuaremos por aqui, mantendo vocês informados.

Até semana que vem!

Aldo Cordeiro Sauda