(Faltam dois dias para o referendo da austeridade)
As manifestações que testemunhei ontem me impactaram bastante. A ideia original era ver apenas o ato do Antarsya, um combativo partido da esquerda independente grega que se concentrava diante da Biblioteca Nacional. Por sorte, assim que cheguei, deparei-me com outra passeata ainda maior, a do KKE, o partido comunista grego.
É difícil acreditar que um partido com uma linha política tão louca com o KKE consegue ser tão dinâmico. Enquanto a Grécia se polariza em dois campos, o sim dirigido pela igreja ortodoxa e o alto empresariado, e o não pelo Syriza e o movimento anti-austeridade, a linha do KKE é a abstenção. A proposta maluca do partido comunista é aparentemente levar suas próprias cédulas eleitorais, que dirão ao mesmo tempo “Não” à União Europeia e “Não” ao governo Tsipras.
Tinha, na minha cabeça, a imagem do KKE como um partido envelhecido e institucionalizado na burocracia sindical e no parlamento, similar ao PC do B brasileiro. Ledo engano. Dinâmico e rigorosamente organizado, a marcha do PC grego possuía uma enorme coluna de jovens, que eram, inclusive, maioria no ato, contado com grande peso feminino.
Pra quem gosta de manifestações de rua, a marcha do KKE é certamente fonte de inspiração. Seus 15 mil ativistas e apoiadores estavam rigorosamente divididos em sub-grupos de 200 a 300 manifestantes, separados entre si por algo em torno de 10 metros. Este modelo organizacional permitia ao ato manter um passo continuo e relativamente rápido, que não embolou em momento algum. Entre eles haviam apenas bandeiras partidárias, com raras exceções para a bandeira grega. As flamulas vermelhas possuíam dois modelos, uma, mais longa e de vara fina, e outra, curta, cujo tecido na prática encobria um porrete.
Cada uma das subcolunas da marcha tinha uma faixa a sua frente, com um orador carregando um megafone gigantesco pendurado nas suas costas. Eram deles que se entoavam o coro do ato. Além de uma primeira linha impecável, todos pareciam andar em fileiras perpendiculares à calçada com exatidão geométrica. Merece também destaque as famosas comissões de segurança do KKE, que, caminhando de braços dados, levavam com eles as bandeiras-arma.
Não quero dar o ar, aqui, de que o ato do KKE era militaresco. Pelo contrario, havia entre eles certa descontração típica de um ato de maioria jovem. Apesar da política stalinista e ultra-sectária, o KKE é uma força real na esquerda. A distancia, pode parecer muito menos sérios do que realmente o são.
Da biblioteca à embaixada
Enquanto via passar o KKE em direção à Syntagma com meus camaradas brasileiros Henrique Carneiro e Silvia Miskulin (com quem planejei vir a Atenas logo depois da vitória de Tsipras) a concentração atrás de nos crescia. Apesar de claramente majoritário, a manifestação diante da biblioteca não se resumia ao Antarsya. Junto a ele estavam anarquistas e outros grupos de extrema-esquerda. Cheguei a conversar, inclusive, com ativistas de um pequeno grupo trotskista independente, chamado O.K.D.E, de quem comprei um periódico.
Fiz o mesmo com o jornal do Partido Socialista dos Trabalhadores Gregos, principal corrente trotskista do Antarsya. Posto que não falo grego, pude apenas notar que, em termos estéticos, a publicação do PST, no formato de tabloide colorido de 20 paginas, possui uma diagramação bem simpática e dinâmica. A política defendida pelo grupo é de oposição de esquerda ao Syriza e ao mesmo tempo defesa intransigente do “não” no referendo.
Comparado ao ato do KKE, nossa marcha era bem menor, com cerca de 5 mil ativistas, e menos disciplinada. Ao mesmo tempo, organizacionalmente, davam de dez a zero em qualquer manifestação que já vi no Brasil ou no mundo árabe.
Assim como no ato do PC, não havia nem batuques, nem instrumentos musicais na marcha. Os gritos de ordem, secos, eram repetidos com precisão impressionante pelo ativismo. Quando o volume entoado aumentava, era fácil se arrepiar.
O objetivo do ato, pelo que pude entender, era denunciar o imperialismo e suas embaixadas, que tem aterrorizado a população local para que votem pelo “sim”. Nosso ponto alto, inevitavelmente, foi diante da representação da União Europeia. Sediado em um prédio de estilo comercial, a marcha ganhou ares subversivos quando um jovem conseguiu pular para dentro do edifício e estender uma faixa anti-austeridade por lá. Eis que a polícia, por quem fomos cercados ao longo de todo ato, entrou em ação.
A reação do publico ao confronto, de tudo que vi por aqui, foi o que mais me impressionou. As bombas de gás das forças repressivas certamente provocaram lágrimas, mas nenhum tipo de desespero. Foi como se a massa, de forma consciente e organizada, tivesse dado três passos para trás quando algumas bombas foram jogadas contra ela, se recusando a cair na dispersão ou provocação. Logo em seguida, as diferentes comissões de segurança dos grupos presentes, armadas de porretes e capacetes de moto, se alinharam militarmente diante das forças policiais. Diria que caso um confronto eclodisse de fato, a comissão daria bastante trabalho a seus inimigos.
Mesmo que cercado pela polícia, o público assistia pacientemente à escalada do conflito, entoando cantos de apoio ao rapaz que havia invadido a representação diplomática. Logo menos, uma escada enorme encostou-se no prédio para resgatar nosso herói, que, ileso, safou-se da repressão policial.
Depois de continuarmos caminhando mais um pouco, o ato terminou diante de uma praça localizada a uma estação do Syntagma. Todos, certamente, estavam ansiosos para ver as últimas notícias sobre as pesquisas de opinião pública, que tem indicado empate técnico entre ambos os lados.
Parto, daqui a algumas horas, para o grande ato do “não”, na Syntagma. Resta, até lá, torcermos pelo avanço da esquerda. Assim que voltar do ato, enviarei-lhes, por aqui, novos relatos.
Até!
Aldo Cordeiro Sauda
Comentários