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TEORIA

Hegemonia e crise: noções básicas para entender a situação brasileira

Alvaro Bianchi e Ruy Braga

A presente situação política no Brasil pode ser caracterizada como uma crise da forma restrita que a hegemonia das classes dominantes adquiriu no Brasil. Em diversos artigos, caracterizamos a forma presente da hegemonia como uma “revolução passiva à brasileira”, ou seja, um processo de atualização gradual do capitalismo por meio de reformas promovidas diretamente pelo Estado, o qual parecia se destacar de suas bases sociais para melhor realizar sua função. Sem a participação ativa das classes subalternas essa revolução passiva representava uma hegemonia de uma fração da classe dos capitalistas sobre todas as demais frações, por intermédio do Estado.

A variante lulista dessa revolução passiva incorporou a esse bloco hegemônico os setores da burocracia sindical que haviam se convertido em gestores dos fundos de pensão. O arranjo se mostrou muito mais abrangente e ao mesmo tempo resistente do que aquele que havia sido construído sob a direção de Fernando Henrique Cardoso. Os vínculos dessa burocracia social com os movimentos sociais davam uma capacidade de mobilização maior ao governo, uma oportunidade para promover reformas, como a da previdência, que ia além das possibilidades presentes nos anos 1990. A contrapartida estava na realização de políticas sociais compensatórias que permitiam, por um lado, atender certas aspirações das classes subalternas e, por outro, ampliar a base social do Estado por meio da incorporação passiva destas ao arranjo político.

Essa forma da revolução passiva, essa hegemonia restrita, entrou em colapso a partir de meados de 2013. Este pequeno artigo tem a intenção de expor um conceito de crise de hegemonia que nos permitiria entender melhor a presente situação.

Consenso ativo e passivo

Não são poucos os comentaristas que tem destacado a dificuldade que o atual governo tem de construir um consenso e estabelecer alianças efetivas e estáveis. Apesar de ter montado uma megacoalizão e garantido formalmente a maioria dos parlamentares para sua base de apoio, as iniciativas do Executivo tem encontrado forte resistência no Congresso. A eleição de um deputado da base do governo para a presidência da Câmara de Deputados, enfrentando e derrotando outro candidato do partido da presidenta é um sintoma dessa resistência. Mas é preciso distinguir o que ocorre na esfera da representação parlamentar e os desejos, opiniões ou mesmo ações que caracterizam aqueles que deveriam ser representados. Aqui a ênfase não estará na análise do processo de construção de uma maioria parlamentar e sim nos processos sociais subjacentes.

A construção do consenso, seja ativo ou passivo, deve ser entendida como um processo que se desenvolve através de fluxos e influxos, avanços e retrocessos marcados por transformações nas relações de forças entre as classes e entre estas e suas formas institucionalizadas.

Sem poder assimilar toda a sociedade a seu projeto, a capacidade das classes dominantes articularem o consenso e a legitimidade da ordem pode ser abalada, abrindo, então uma situação de contraste entre representados e representantes. Nos momentos em que isso ocorre, os grupos sociais se afastam de suas organizações tradicionais, ou seja, essas organizações e seus líderes não são mais reconhecidos como expressão própria de sua classe ou fração, comprometendo de forma decisiva a capacidade dirigente desses grupos. Seguindo as indicações de Gramsci, esses processos serão denominados de “crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto”.[1]

A situação presente no Brasil é, justamente, aquela na qual os representados não se identificam mais com aqueles que dizem representá-los. Junho de 2013 deveria ter acendido o sinal de alerta. Mas em vez de operar no nível dos representados, o governo optou por voltar-se para os representantes e construir uma arco de alianças parlamentar que lhe garantisse a maioria parlamentar. Até agora isso só fez aumentar a crise e a separação entre representantes e representados.

Classes e partidos

A crise de hegemonia é uma crise do Estado e das formas de organização política, ideológica e cultural da classe dirigente. Seus aspectos mais visíveis são a dificuldade de formar uma maioria parlamentar duradoura; a perda da capacidade dirigente dos partidos tradicionais; e a consequente crise dos partidos e multiplicação destes. Em suma, trata-se de tentativas desordenadas de superação da crise.

A divisão dos partidos tradicionais – PT, PSDB, PMDB e PSD – e as crises internas que os atravessam são, assim, manifestações dessa crise. O mesmo ocorre em escala microscópica nos pequenos partidos da oposição de esquerda. A dificuldade de compor uma maioria partidária estável e os choques permanentes entre as diferentes claques, reproduzem nos partidos os mesmos problemas encontrados no governo e no Parlamento. Nos choques entre as diferentes frações e partidos, a corrupção encontra terreno fértil para se desenvolver. Cada fração considera a si mesma a única com condições de superar a crise do partido, assim como cada partido considera-se o único capaz de superar a crise da nação. Os fins passam a justificar os meios.

A crise não se limita, entretanto, aos partidos e ao governo. Ela é uma crise do Estado em seu conjunto, ou seja, processa-se, também, no nível da sociedade civil, onde as classes dirigentes tradicionais passam a manifestar sua crescente incapacidade de dirigir toda a nação. A burocracia, a alta finança, as igrejas, os grandes monopólios de comunicação e todos aqueles organismos relativamente independentes da opinião pública têm suas posições reforçadas no interior do Estado.[2] A repercussão da crise no conjunto do Estado pode provocar, dessa forma, o “deslocamento da base histórica do Estado” e a supremacia do capital financeiro.[3]

A característica fundamental da crise de hegemonia não é, então, o “vazio de poder”, que a rigor poderia ser ocupado por qualquer um, até mesmo por um aventureiro ou um grupo deles. A política, assim como a natureza também tem “horror ao vácuo”. A crise de hegemonia se caracteriza não pela inexistência de poder, o vazio, e sim por uma multiplicidade deles. Poderes plurais e policêntricos que têm como portadores diferentes grupos sociais que lutam incessantemente pela afirmação de sua alternativa. É claro que essa situação não pode se prolongar indefinidamente. Sem nenhuma capacidade dirigente, as classes dominantes ou frações dela podem ser deslocadas do poder, deixando de ser dominantes.

Relações de forças

Quais são as razões que levam ao surgimento de uma crise dessas proporções? O que faz com que a capacidade dirigente de uma classe seja abalada de maneira tão profunda?

Se o Estado é entendido como condensação material das relações de forças entre as classes e frações, condensação essa historicamente definida e, portanto, particular e específica em cada situação, então, a crise só pode ser compreendida como o resultado do abalo das relações de forças que se materializavam nesse Estado.[4]

A eclosão da crise é, assim, definida pelas lutas que opõem as classes umas às outras, lutas nas quais os diferentes projetos alternativos vão se desenhando e aglutinando defensores. É afirmada pela ruptura da passividade de certos grupos sociais e pela sua entrada ativa no cenário político, desequilibrando arranjos de poder que tendiam a excluir esses grupos. Na situação presente a crise foi agravada pela ativação simultânea de uma parte ainda minoritária das classes subalternas, com especial participação do precariado urbano, e das camadas médias que entraram em cena com um programa político de reestabelecimento de seus privilégios sociais.

Não há nenhuma surpresa aí. Afinal, nos últimos 12 anos, tendo em vista um modesto, porém, real processo de desconcentração de renda entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho, a base da pirâmide ocupacional progrediu em um ritmo mais acelerado do que os setores médios. Ou seja, houve uma diminuição da distância entre as classes sociais cuja expressão mais visível pode ser encontrada na “invasão” dos espaços outrora exclusivos das camadas médias tradicionais por uma massa plebeia, como aeroportos e shoppings centers. Não devemos subestimar o impacto que um mercado de trabalho aquecido tem sobre a disposição social dos trabalhadores subalternos, notoriamente, as empregadas domésticas, em resistir a situações aviltantes de trabalho. O “desassossego na cozinha” é um fenômeno que inquieta os setores médios tradicionais, afetando o dia-a-dia dos privilégios de classe que marcam de maneira tão acentuada a realidade brasileira.

Além disso, na última década, a inflação dos serviços foi 35% superior à inflação da cesta básica. Obviamente, os setores médios foram mais atingidos, pois têm acesso a mais opções e oportunidades de desfrutar de atividades de lazer, etc. Finalmente, vale destacar que a própria perspectiva de reprodução futura das camadas médias vê-se transtornada tanto pelo aprofundamento do processo da crise econômica quanto pelo aumento da concorrência por empregos que pagam mais do que cinco salários mínimos. Afinal, com as políticas afirmativas no sistema universitário federal somadas ao aumento de matrículas no sistema privada de ensino superior proporcionado pelo FIES, os filhos da classe média tradicional tendem a encontrar mais competição no mercado de trabalho do que no passado. A situação torna-se ainda mais crítica com o aprofundamento da crise econômica. Não nos esqueçamos que em 2014, 97,5% dos empregos criados no mercado formal de trabalho pagam até 1,5 salário mínimo. Os jovens de classe média vão concorrer por 2,5% das vagas de emprego melhor remunerado com uma massa cada dia maior de jovens plebeus que entram mais qualificados no mercado.

Em suma, as camadas médias têm lá suas razões para afastar-se do governo de Dilma Rousseff. No entanto, o dado mais carente de explicação é a presença, segundo o Datafolha e pesquisas independentes, de aproximadamente 50 mil pessoas que vivem em famílias que ganham até três salários mínimos na manifestação do dia 15 de março. Trata-se da fração de classe que garantiu a vitória de Dilma no segundo turno em 2014 e que preenche a maior parte das ocupações precárias e sub-remuneradas disponíveis no mercado de trabalho paulistano. Este setor da classe trabalhadora foi mais atingido pelo ataque do governo federal ao seguro-desemprego (PL 664 e 665), além dos cortes no FIES. Ou seja, em apenas três meses, o governo aplicou medidas que atingem diretamente os interesses de classe de amplos setores de jovens trabalhadores que identificam na qualificação superior a única possibilidade de romper com o círculo vicioso da precarização do trabalho.

O parlamento, local de mediação dos conflitos no Estado liberal mostrou-se incapaz de absorver estes novos atores. Nem o jovem precariado, nem as camadas médias se veem representadas no parlamento. Uma parcela importante dessa insatisfação se expressou nas últimas eleições por meio da abstenção e dos votos branco ou nulo. Outra parcela manifesta-se abertamente em favor de uma intervenção militar.

A ascensão desses novos atores não define, entretanto, todo o conteúdo da crise. É preciso ter em mente a forma sob a qual essa ascensão ocorre. O Partido dos Trabalhadores foi sempre incapaz de transcender o nível do classismo prático e, portanto, de apresentar um projeto que permitisse reordenar toda a sociedade a sua imagem. Quando chegou ao poder aferrou-se aquilo que já existia, procurando apenas aperfeiçoar o projeto existente.

As classes subalternas ainda não possuem uma direção capaz de colocar-se à frente de seu movimento e imprimir a ele um conteúdo claramente transformador. A crise não atingiu apenas a burguesia e o parlamento. Ela é, também, uma crise de direção das classes subalternas, que não conseguem impor seu projeto hegemônico muito embora consigam desarticular a hegemonia das classes dominantes. É, para usar uma terminologia cunhada por Trotsky, mas também presente em Gramsci, uma crise de direção que atinge de maneira combinada, mas desigual, tanto a burguesia como o proletariado.

Crise orgânica

Encontrar a solução orgânica para essa crise não é simples. Ela exige a unificação de um grande número de partidos sob a bandeira de um único partido, “que melhor representa e resume as necessidades de toda a classe”.[5] As tentativas são inúmeras. A atual crise será um processo de longo prazo no qual se desenvolverão permanentemente experiências visando sua superação. Partidos irão se alinhar e realinhar, blocos serão formados e dissolvidos. Líderes serão criados e depostos. A velocidade desses processos pode surpreender, o ritmo é rápido e fulminante se comparado com os tempos normais. A crise acelera essa dimensão, recriando a noção de tempo, redefinindo o tempo histórico.

A cada tentativa de resolução dessa crise ela cobra um novo desenho. O fracasso dessas tentativas não conduz, entretanto ao ponto de origem. Ganhos e perdas são contabilizados por cada grupo ou fração. Caso contrário a catástrofe seria iminente. E sabe-se muito bem que ela necessariamente não é.

As possibilidades de articular um projeto alternativo ou de alinhar defensores atrás desses projetos, criando tentativas de resolução da crise, são, entretanto, assimétricas. As classes dominantes tradicionais, ao contrário das classes subalternas, contam com grande número de intelectuais, numeroso pessoal especializado capaz de formular projetos e organizar sua defesa. Podem mudar de pessoal dirigente, de programa e mesmo de partido, de modo a oferecer, rapidamente, uma saída para a crise. Não raro, constroem a unidade que até então parecia impossível ser alcançada, perfilando-se sob a direção do partido que melhor encarna as necessidades de todas as classes dominantes naquele momento. E as necessidades, nessas ocasiões, não são outras que a superação da própria crise.

Mesmo tendo condições mais favoráveis para decidir rapidamente o conflito a seu favor, as classes dominantes tradicionais nem sempre o conseguem. Isso ocorre quando já amadureceram contradições na estrutura que as classes sociais que atuam para conservar e defender essa estrutura não conseguem resolver, ao mesmo tempo em que as classes que lutam pela sua transformação profunda não conseguem tornar-se dirigentes.[6]

Colocado de tal maneira o problema, tem-se que a crise política não é definida automaticamente pela crise econômica. A crise econômica, tomada em seu sentido amplo como crise de acumulação resultante da queda tendencial da taxa de lucro, pode ser pressuposto de um profundo abalo político. Mas ela não conduz, por si própria, à crise de hegemonia. Para a eclosão desta crise é preciso a coincidência dos tempos de uma crise de acumulação com o acirramento do choques entre as classes, e, no interior delas, entre suas frações. Haveria, assim, uma coincidência no tempo de uma crise econômica e outra política, ou o que Gramsci chama de uma crise orgânica, uma crise que afeta o conjunto das relações sociais e é a condensação das contradições inerentes à estrutura social.[7]

Esta não é ainda a realidade da atual crise brasileira. No entanto, é importante destacar que as demissões estão apenas no começo, as falências e o fechamento de empresas ainda não é a regra, o governo federal está totalmente rendido e convencido da necessidade de realizar um duríssimo ajuste fiscal antipopular, e os setores de oposição de direita tradicionais não recuam e têm apostado no aprofundamento da crise política do “Petrolão”. Em resumo, os ritmos da crise econômica e da crise política parecem convergir para um ponto de difícil retorno. O país entrou em sintonia com a crise do sul da Europa? Difícil prever. Mas, não seria nada surpreendente que, assim como ocorreu recentemente na Grécia, na Itália e na Espanha, o desafio ao sistema político tradicional – e ao bipartidarismo PT-PSDB que há mais de vinte anos tem marcado a cena política brasileira – evoluísse na direção do fortalecimento de novos atores localizados nos extremos do espectro político. A radicalização é a tendência atual. Quem viver verá.

Notas:

[1] Antonio Gramsci.Qauderni del carcere. Torino: Einaudi, 1977, p. 1603.

[2] Idem, p. 1603.

[3] Idem, p. 876.

[4] Poulantzas, Nicos. “Les transformations actuelles de l’État, la crise politique et la crise de l’État”. In: Poulantzs, Nicos (org.). La crise de l’État. Paris, PUF, 1976, p. 22.

[5] Idem, p. 1604.

[6] “O aspecto da crise moderna que é lamentado como ‘onda de materialismo’ está vinculado àquele que se chama ‘crise de autoridade’. Se a classe dominante perdeu o consenso, isto é, não é mais ‘dirigente’ mas unicamente dominante, detentora da pura força coercitiva, isto significa justamente que as grandes massas se separam das ideologias tradicionais, não creem mais em tudo o que acreditavam antes, etc. A crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos mórbidos mais variados.” (Idem, p. 311.)

[7] Poulantzas, Nicos. Op. cit., p. 10.