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Para além da democracia blindada? contrarreformas, consenso e coerção no Brasil atual

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

A motivação para este artigo, assim como para algumas reflexões contidas nele se originaram a partir de interessantes questões e críticas feitas, em conversas, debates e grupos de estudo, à minha produção recente (em especial, ao opúsculo DEMIER, Felipe. Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017) por companheiros e intelectuais como Daniela Conte, Elaine Behring, Katia Marro, Demian Melo, Lia Rocha, Guilherme Leite, Rejane Hoeveler, Marcelo Badaró, José Campos e Plínio de Arruda Sampaio Jr.

Por Felipe Demier, Colunista do Esquerda Online

Felipe Demier

O transformismo do Partido dos Trabalhadores, finalizado com sua chegada ao poder federal em 2003, completou o processo de blindagem da democracia liberal brasileira. Ao passar de um partido que tentava – de forma não muito tenaz, não é escusado lembrar – obstaculizar o avanço neoliberal nos anos 1990 a um partido executor, ele mesmo, das contrarreformas neoliberais – em teores mais baixos, é verdade – a partir da década seguinte, o PT instaurou, finalmente, o hiato entre as aspirações populares por direitos e as instâncias decisórias do poder político. Destarte, as reivindicações por reformas sociais, isto é, pela implementação dos direitos assegurados pela Carta Constitucional de 1988, já não encontrariam mais canais e meios de se fazer significativamente representar, nem mesmo de modo amainado, nos poderes da República. A democracia liberal brasileira sintonizava-se, enfim, com as democracias liberais europeias que, de regimes políticos reformistas, alicerçados em pactos sociais (capitalismo regulado com ampliação de direitos) erigidos no pós-Segunda Guerra, metamorfosearam-se, por meio da ofensiva neoliberal iniciada em fins da década de 1970, em regimes políticos contrarreformistas, baseados em concertações sociais (capitalismo desregulado com redução de direitos). O fosso entre as praças e o Parlamento, entre o povo e a Presidência, estava, por fim, construído.

Ocorre que, diferentemente das burguesias europeias, a classe dominante brasileira mostrou que, em momentos de crise econômica, não pode suportar no poder sequer a “ala esquerda” do partido da ordem, isto é, não pode suportar no poder os moderados do seu próprio partido. Gradativamente, ao longo de 2015 e 2016, o Partido dos Trabalhadores, aos olhos do conjunto das frações da burguesia brasileira, passou a ser visto – não obstante todos os seus vis esforços em provar o contrário – como um partido incapaz de implementar as contrarreformas e o ajuste fiscal no grau, no ritmo e na intensidade exigidos pela crise econômica nos quadros de um capitalismo periférico e dependente. Possivelmente, tal visão da burguesia deveu-se tanto à existência de uma base petista sindical e popular, elemento inconveniente para que o partido executasse as impopulares contrarreformas e o radical ajuste, quanto às mobilizações de junho de 2013, as quais evidenciaram que, mesmo que ainda mantivesse o controle sobre os setores mais organizados do mundo do trabalho formal, o PT não dispunha da capacidade de dirigir/controlar os jovens e massivos setores precarizados da classe trabalhadora que eventualmente poderiam vir a se levantar contra os inadiáveis planos de “austeridade”.

De origem escravocrata, geneticamente antipopular e timorata ao extremo, a burguesia brasileira exibiu todo o seu incômodo autocrático aos preceitos liberais-democráticos, cassando o sufrágio universal de 2014 com a naturalidade de quem toma um remédio digestivo após uma refeição indigesta. Acreditando que daria um fim, ainda que inconveniente, ao cenário de inconvenientes sem fim, a classe dominante, com o concurso dos seus representantes políticos de sangue, assim como de seus viperinos jornalistas e juízes, assestou o golpe do impeachment e, uma vez livre dos seus representantes bastardos, “de esquerda”, pôs em marcha seu sequioso plano contrarreformista. Depois que o sufrágio universal foi devidamente cassado, os gastos com Saúde e Educação foram congelados; os salários, rebaixados; a jornada de trabalho, expandida; as manifestações, reprimidas; e o fundo público se converteu, sem peias, em um patrimônio exclusivo dos rentistas e seus asseclas.[1] Assim, sob o governo Temer, o regime democrático-blindado brasileiro atinge seu fastígio e, desfazendo-se de seus rebuços, os quais vertebravam sua legitimidade enquanto forma de dominação política de classe, exibe sua verdadeira natureza, seu caráter tout court. Ao ser elevada ao paroxismo, a democracia blindada se apresenta tal como é. Ao se suprassumir, ela se realiza, e, ao se realizar, revela a sua verdade, isto é, revela-se falsa e expõe seu conteúdo falsamente democrático. Quanto mais se afirma, desde o golpe, a existência do “Estado Democrático de Direito” no Brasil, mais nos encaminhamos para um estado onde milhões estarão, na prática, sem democracia verdadeira e direito concreto algum. Obrigada, pelo seu próprio desenvolvimento, a se despir, a democracia brasileira contemporânea exibe sua forma tirânica.

Como afirmamos em nossos escritos anteriores,[2] é justamente neste conjunto de ataques lancinantes aos direitos nas mais variadas esferas que reside o que pode ser apontada como a fraqueza potencial da democracia blindada brasileira. Como toda e qualquer democracia liberal – uma forma de dominação hegemônica que combina de modo equilibrado elementos coercitivos e consensuais –, o atual regime democrático brasileiro repousa sua legitimidade, sua eficácia enquanto instrumento classista de dominação política, na ficção da igualdade, expressa realmente na igualdade formal, jurídica, que garante a todo cidadão (a categoria ficcional por excelência da democracia burguesa) uma vasta gama de direitos. Não obstante as profundas diferenças econômicas e sociais entre eles, todos os cidadãos podem, pela lei, se reunir, opinar, se expressar, se manifestar, preservar seu lar e correspondência invioláveis, fazer uso de hospitais públicos e frequentar escolas gratuitamente, além, claro, de lançar mão de seu sufrágio para escolher seus governantes. Há, portanto, um significativo lastro social, mais ou menos forte a depender das circunstâncias históricas e nacionais, nos regimes democrático-liberais. O consenso, como muitos estudiosos já afirmaram, não repousa apenas na ideologia, mas também numa materialidade concreta, a qual, aqui, poderíamos denominar como um conjunto de direitos, sejam eles civis, políticos e, sobretudo, sociais. Ora, mas não é justamente esse conjunto de direitos que agora está sendo abruptamente subtraído de milhões de cidadãos pelo governo golpista de Temer e seus aliados nos demais poderes da República? Nesse sentido, as bases reais, concretas, materiais da ideologia democrática não estariam sendo corroídas pela própria democracia blindada em seu incontrolável afã contrarreformador? Como poderão agora se sustentar as ilusões democráticas de uma democracia que elimina os fundamentos reais de suas próprias ilusões? A democracia blindada estaria, portando, destinada a perecer em breve?

Antes de tentarmos responder a tais questões, convém destacar o fato de que, com o governo Temer, a democracia blindada brasileira mostrou que, diferentemente das formas pretéritas de democracia ao redor do globo, seu funcionamento já não é tão dependente assim da chamada “legitimidade popular”, pelo menos se tomada esta no sentido do apoio prestado pela dita “opinião pública” aos governos de turno. Não só a desaprovação ao presidente Temer por aproximadamente 97% da população brasileira não produz nenhum efeito prático no andamento da agenda governamental, na medida em que não ocasiona nenhuma ruptura das bases parlamentares com o Executivo – o que, por si só, evidencia o tal fosso entre a vontade popular e as representações políticas, característica por excelência da democracia blindada –, como a própria impopularidade do presidente em um sistema presidencialista é vista pelos finórios ideólogos do regime não como um problema, e sim como uma virtude, já que, segundo eles, somente um presidente que não busque respaldo popular pode abdicar de posturas “populistas” e adotar medidas impopulares, “aplicando o remédio amargo que o país precisa”.

No entanto, o eixo central das questões elencadas acima permanece posto: ao dilapidar os fundamentos materiais da ideologia democrática (os direitos), o regime democrático-blindado, sendo impelido a aumentar seu grau de coerção, perderia capacidade hegemônica e se transformaria em – ou seria solapado e daria lugar a – uma forma de dominação não-hegemônica, ditatorial? A resposta, por suposto, é um tanto óbvia: depende da correlação de forças, em uma palavra, depende da luta de classes. Vejamos, de modo breve, algumas questões acerca disto.

As democracias blindadas têm nos meios de comunicação de massa, nos grandes conglomerados empresariais-midiáticos, uma de suas principais fontes de produção do consenso. Conforme apontamos alhures,[3] por meio de seu discurso ideológico, que se pronuncia normativamente sobre os vários âmbitos da vida social, as corporações midiáticas ajudam a executar cotidianamente a blindagem das atuais democracias. Diferentemente de formatações anteriores da democracia liberal, a grande imprensa parece, nas democracias blindadas, executar uma função interna, basilar do regime, e não mais apenas uma função complementar, “externa”, limitada a apoiar/referendar os mecanismos de dominação vigentes. Agora, ela é um dos sujeitos que engendra estes próprios mecanismos, ela é uma das próprias instituições de um regime democrático dotado de um sentido visceralmente contrarreformista.

O caso brasileiro talvez seja exemplar quanto a isto. Atuando como o principal partido do capital, pautando a agenda econômica, política e cultural do país, a grande imprensa (produto de concessões e financiamentos públicos, diga-se de passagem) se torna, em um contexto de contrarreformas e ataques aos direitos em geral, responsável pelo fornecimento de uma parte cada vez maior dos ingredientes consensuais do regime democrático contemporâneo. Nesse sentido, quanto mais os direitos são atacados e, portanto, quando mais o substrato real do consenso é esvaziado, maiores e mais necessárias são as dosagens ideológicas fornecidas pelos mass media, como pode ser verificado nos dias atuais.

Excluindo de seus canais praticamente qualquer presença contrária às contrarreformas, a grande imprensa brasileira as apresenta como uma necessidade imperiosa e inadiável ao conjunto da nação, promovendo “debates” sobre quais os caminhos possíveis para que elas sejam efetivadas o mais breve possível. Tal aspecto ficou evidente quando do balançar do governo Temer, em função das denúncias contra o mesmo de corrupção e das mobilizações sindicais e populares que clamavam por sua saída no primeiro semestre deste ano (2017). O que se verificou no caso foi que mesmo as corporações midiáticas que se posicionaram contra o governo (em especial, as Organizações Globo) o fizeram não por serem contrárias aos planos contrarreformistas de Temer, e sim por considerar que o presidente não tinha mais condições políticas de implementá-los. A interdição ao pensamento crítico, dissonante, mesmo que de teor moderado, se manteve, como se mantém até agora na grande imprensa. Qualquer notícia, entrevista ou “debate” acerca do ajuste fiscal e/ou da retirada de direitos se inicia com a afirmação, feita com ares de obviedade, de que elas são necessárias, censurando, assim, de modo apriorístico, todo o tipo de rejeição ao dogma contrarreformista, talvez hoje mais sagrado, nos meios conservadores, do que a virgindade de Maria.

Apresentamos essas considerações sobre a dimensão midiática da democracia blindada brasileira para assinalar a ideia de que, a nosso ver, tal regime possui uma capacidade de produção de consenso e, por conseguinte, uma capacidade hegemônica, maior do que se poderia supor em se tratando da já mencionada dilapidação, operada pelo próprio regime, das bases materiais sobre as quais, tradicionalmente, se assentam a construção do consenso (ou seja, a esfera dos direitos). Nesse sentido, a democracia brasileira de hoje – tal como, em geral, as demais democracias blindadas hodiernas – detém, em função, justamente, dos seus genes midiáticos – sendo a grande imprensa, frisamos, uma estrutura constitutiva do próprio regime – condições de apoiar-se, mais do que qualquer outra democracia de outrora, na simples dimensão retórica da ideologia ou, se quisermos, na dimensão mais ideológica da própria ideologia, na falsa consciência per si. Assim, ainda que nada ofereça em troca, ainda que não possua nenhum momento de verdade, a ideologia contrarreformista midiática consegue conquistar subjetivamente, em uma larga e assustadora escala, trabalhadores e trabalhadoras cuja dimensão concreta da vida será negativamente, e apenas negativamente, afetada pelas contrarreformas. A ideologia contrarreformista na atual democracia blindada brasileira, a ideologia só e somente de palavras, por assim dizer, parece, na atual correlação de forças do país – e esta é sempre um elemento central na análise –, poder continuar a funcionar, exitosamente, apenas como pura ideologia, como uma ideologia puramente ideológica. A eficácia dessa etérea ideologia contrarreformista faz como que o trabalhador comum de hoje, desorganizado, se assemelhe a um personagem de desenho animado que continua a, impavidamente, caminhar mesmo quando ultrapassa a beira do penhasco, mesmo quando já não há chão embaixo dele, e que só entra em queda livre quando “toma consciência” de que já não há nada, objetivamente, sob seus pés.

Essa surpreendente capacidade de construção do consenso não significa, evidentemente, que a democracia blindada não tenha, desde as Jornadas de Junho de 2013 e, qualitativamente, desde o golpe de 2016, intensificado o uso de seus expedientes coercitivos contra os setores revéis. Assim como o corte de direitos sociais, o ataque aos direitos civis e políticos em geral é, como apontamos, um traço do atual fastígio do regime democrático-blindado, que faz do mesmo uma democracia cada vez menos democrática, mais restritiva e, portanto, mais violenta.

A lei antiterrorismo sancionada covardemente por Dilma à beira do golpe, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringiu o direito de greve dos servidores públicos em fins de 2016, a dissolução à força das manifestações contra Temer ao longo do primeiro semestre do presente ano de 2017, a brutal repressão à greve geral no Rio de Janeiro, a 28 de abril, e aos manifestantes em Brasília e em outras capitais, a 24 de maio, o uso de armas letais e a decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) neste mesmo dia, a ofensiva do Ministério Público (MP) contra professores progressistas, a intensificação da espionagem policial sobre o ativismo estudantil, sindical e popular, o avanço do conservadorismo cultural e comportamental patrocinado pelas forças da ordem, o crescimento dos ataques perpetrados por hostes fascistas paraestatais (com a aquiescência estatal de delegados e juízes) contra grupos de esquerda e setores oprimidos são alguns dos aspectos que ilustram um processo crescente de cerceamento das liberdades democráticas e de autoendurecimento da democracia blindada no país. Não seria escusado destacar que, no atual momento, expedientes ordinários e “supratemporais” lançados mão pelo aparelho repressivo estatal no que tange ao trato das populações periféricas e moradoras de favelas, com destaque para os jovens negros, são utilizados à porfia, gozando, cada vez mais, de respaldo popular, com destaque para os estratos médios com seus clamores impudentes por uma intervenção das Forças Armadas no habitat das “classes perigosas” – para resgatarmos aqui uma expressão jornalística da Primeira República. Nesse contexto, também um eventual (e provável) impedimento da candidatura Lula nas próximas eleições presidenciais, por se tratar simplesmente da proibição, pela Justiça, de que o primeiro colocado nas pesquisas de intenção de voto (e líder do partido deposto pelo golpe) possa concorrer no pleito, contribui para exacerbar os traços autocráticos e as tendências bonapartistas presentes na democracia blindada brasileira.

No entanto, a nosso ver, esse aumento do teor repressivo do regime democrático-blindado não é, na atual correlação de forças, no atual cenário da luta de classes, suficiente para que o relativo equilíbrio entre consenso e coerção seja quebrado em favor desta última, dissolvendo a hegemonia democrática-blindada e conduzindo à emergência de um regime ditatorial. Tal fato, como pode ser depreendido do exposto há pouco, se deve à incrível capacidade de produção do consenso por parte do regime atual, a qual reside em grande parte na sua supracitada dimensão midiática, responsável pela difusão daquilo que Ana Elizabete Mota chamou, há alguns anos, de uma “cultura da crise”.[4] Essa concepção neoliberal, privatista, das relações entre sujeito, sociedade e Estado, instilada diariamente pelos aparelhos privados de hegemonia (não só midiáticos) e que, introjetada pelas massas, molda nestas uma subjetividade individualista e predatória – e que talvez seja mesmo “a nova razão do mundo”[5] –  tem, a nosso ver, na ideologia contrarreformista uma de suas principais ferramentas. A capacidade consensual do regime, com destaque para a capilaridade da ideologia contrarreformista entre as massas, é um dos elementos que, dialeticamente, determina a e é determinado pela correlação de forças, pelas condições da luta de classes – Não é necessário gastar rios de tinta para demonstrar que o terreno favorável ao cultivo dessa ideologia reacionária foi preparado e fertilizado, entre outros fatores, pelo transformismo petista e as consequentes adaptação sindical, desorganização política e fragmentação subjetiva da classe trabalhadora.

A relação entre consenso e coerção não é, vale realçar, uma equação de soma zero, na qual o aumento de um dos fatores significa necessariamente a diminuição do outro. Nesse sentido, na atual correlação de forças no país, marcada por uma onda conservadora que ainda só encontra resistências locais, episódicas e vanguardistas (com a exceção da greve geral do dia 28 de abril), os planos de “austeridade” e as contrarreformas, assim como um maior cerceamento das liberdades democráticas e um recrudescimento da repressão contra os minoritários setores organizados da classe trabalhadora, seus dirigentes e intelectuais, são passíveis de serem efetivados de um modo que ainda contem com o consenso popular, mesmo que um consenso cada vez mais passivo por parte dos trabalhadores (e cada vez mais ativo por parte dos estratos médios conservadores).

Desse modo, a exacerbação do teor autocrático, violento, do regime democrático-blindado pode se processar “sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações –, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados”.[6] Em uma palavra: a coerção seletiva contra o movimento organizado dos trabalhadores, impulsionada pelo avanço das contrarreformas, assim como uma redução das liberdades civis e políticas (inclusive eleitorais), pode se dar ainda nos marcos da democracia blindada. Dizemo-lo, pois, nos opondo a uma leitura economicista de propensão determinista, consideramos que não há uma relação de causalidade inexorável entre a crescente degradação da vida social (motivada pela crise, desemprego, austeridade e retirada de direitos) e o avanço organizativo e político das massas – o que colocaria a possibilidade, ou mesmo a necessidade, de implementação de uma ditadura por parte da burguesia. Aqueles que consideram que há algum nível pré-determinado das condições de vida abaixo do qual as massas automaticamente se lançarão na luta deveriam voltar seus olhos pra África subsaariana. Nos tempos atuais, quando o consenso burguês que (ao lado de uma coerção crescente à escala global) sustenta um capitalismo decrépito é produto de uma sofisticada e milionária engenharia ídeo-cultural, convém lembrar de Dostoievski em suas Memórias da casa dos mortos, quando disse que “o homem é um ser que a tudo se habitua”.[7]

Destarte, é o desenvolvimento da experiência coletiva de lutas da classe trabalhadora, a superação de sua fragmentação subjetiva, de sua debilidade organizativa e política que podem gerar respostas à altura dos ataques perpetrados pelos governos, alterar a correlação de forças na sociedade, modificar o patamar da luta de classes no país, romper o consenso democrático-blindado e, com isso, trazer a possibilidade tanto de uma ditadura aberta da burguesia, quanto a de superação do incontinente e crescente sofrimento imposto às massas por um capitalismo cada vez mais envilecido e vampiresco. É inegável, portanto, e não há porque escondê-lo, que um salto na luta de classes no país pode vir a criar a necessidade de um golpe no regime atual, trazendo consigo talvez tanques, coturnos e bivaques ou bonapartes de toga, mas é inegável também que somente tal salto pode oferecer um futuro à maioria da população brasileira e suas próximas gerações. Diante da possibilidade real de uma regressão social sem precedentes, resistir é preciso, para que viver com dignidade seja possível. Não há, e nem pode haver, chances de uma revolução sem riscos de uma contrarrevolução, e esta, ainda que hoje não pareça necessária aos de cima, parece ser amiúde alimentada por eles, que não hesitarão em optar, se preciso, por um fim com terror a um terror sem fim.

Nesse dramático cenário, não há outra opção à esquerda socialista senão resistir e reagir. Retornar o trabalho de base, intensificar a propaganda, a agitação e a formação, assim como construir frentes únicas de intervenção política, são fundamentais para que a classe trabalhadora tenha condições efetivas de lutar pela manutenção e ampliação dos direitos num cenário em que o capitalismo periférico em crise parece não poder mais preservar, e muito menos ampliar, tais direitos, o que torna – nos arriscamos a dizer – a luta nas ruas por direitos no Brasil, a luta por reformas radicais no país, uma luta objetivamente anticapitalista. Nesse sentido, a opção de conciliar a reivindicação por direitos com a defesa dos preceitos republicanos da democracia liberal e com o funcionamento do mercado, mesmo que keynesianamente regulado, é não só uma opção contrarrevolucionária, como também objetivamente contrarreformista no tempo presente.

Cada vez mais imunizada face às pressões reformistas, com seus poros cada vez mais fechados aos representantes legítimos das reivindicações por direitos, a democracia blindada brasileira deve ser mostrada à classe trabalhadora como a sua inimiga irreconciliável. Os setores da esquerda socialista que tomarem os mandatos parlamentares não como pontos de apoio paras as lutas sociais e para a constante e acerba denúncia do regime vigente, e sim como espaços de interminável “acúmulo de forças” e de irrealizáveis constituições de maiorias parlamentares destinadas a aprovar emendas e projetos de lei estarão ou totalmente iludidos sobre a natureza da atual democracia periférica ou, como bons prestidigitadores reformistas do século XXI, estarão iludindo os trabalhadores com o único fito de preservar seus cargos e sustentar sua burocracia de asseclas militantes.

Nos tempos atuais, de crise, o parlamentarismo reformista de esquerda mostra-se tão infrutífero para a classe trabalhadora como o esquerdismo estéril dos que acham que vivemos uma situação pré-revolucionária. Pelas condições colocadas pela conjuntura, o caminho para uma consequente luta socialista de massas no Brasil parece ser a cada dia mais difícil, árido, apertado e precedido por uma porta estreita, mas também parece ser cada vez mais um só. Todos os demais, da verborragia esquerdista que flerta com a antipolítica à reedição tardia do projeto petista democrático-popular, por mais atraentes, espaçosos e precedidos por portas largas que sejam, parecem só conduzir à perdição. E nós não podemos mais nos perder.[8]

 

[1] Quanto à discussão sobre o fundo público e acumulação capitalista em tempos neoliberais, ver BEHRING, Elaine R. “Crise do capital, fundo público e valor” in BOSCHETTI, Ivanete et al. (orgs.) Capitalismo em crise: política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010 e SALVADOR, Evilásio. Fundo público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. Ademais, indicamos também o conjunto da produção realizada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento e da Seguridade Social (GOPSS), ligado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e coordenado pela própria Behring.

 

[2] Ver, principalmente, DEMIER, Felipe. Op. cit. (capítulo VI).

[3] Idem, capítulos I e II.

[4] MOTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e seguridade social. Um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995.

[5] DARDOT, P; LAVAL, C. A Nova Razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[6] GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.  v. 3, p. 95.

[7] DOSTOIEVSKI, Fiódor. Memórias das casas dos mortos. Rio de Janeiro: Edições de ouro, s.d.

[8] “Entrai pela porta estreita. Larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos os que entram por ele; quão estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida, e poucos são os que o encontram!” (Mateus 7:13-14).