Felipe Demier
Após os atos do dia 15 de março, o governo tentará, por meio de seus intelectuais, blogs e afins, inflar a ameaça reacionária de modo a conseguir a adesão da verdadeira esquerda e dos movimentos sociais independentes. A ultraesquerda sectária, por sua vez, tentará minimizar a ofensiva reacionária sob o argumento de que ela é uma pura invenção governista. Para os marxistas, entretanto, a verdade é a verdade. Reconhecer a força da direita não significa defender o governo e o Partido dos Trabalhadores, cuja política é, em última instância, responsável pela desfavorável correlação de forças ao movimento de massas. As intenções políticas, por mais justas que sejam, não podem determinar a análise concreta da atual situação concreta. Encontrar as raízes explicativas tanto do modelo petista de gestão do capitalismo periférico brasileiro, exitoso entre 2003-2013, como de seu atual fracasso e do crescimento exponencial das forças da Oposição de Direita se constitui em tarefas incontornáveis para os que pretendem encarar as agudas lutas sociais que se avizinham.
A primeira delas vem sendo executada por intelectuais marxistas há alguns anos (Chico de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho, Alvaro Bianchi, Ruy Braga, Valério Arcary, André Singer, Virgínia Fontes, José Paulo Netto etc.),[1] e talvez ainda demore mais alguns outros para oferecer novos resultados, confirmar (ou não) hipótese e aventar outras. Já a segunda daquelas tarefas começa a ser alinhavada por alguns intérpretes ligados aos movimentos sociais (Guilherme Boulos, por exemplo)[2] e gradativamente vem ganhando espaço na agenda investigativa da intelectualidade crítica (em autores como os já citados Braga e Bianchi, e outros como Marcelo Badaró Mattos e Daniela Mussi).[3] Tendo como foco os reacionários atos do último dia 15, buscaremos lançar, a nível hipotético, alguns eixos que possam contribuir nesta segunda tarefa, isto é, que possam ajudar na compreensão da derrocada petista e, especificamente, do ingurgitamento das forças reacionárias de oposição ao governo contrarreformista de Dilma Roussef.
As manifestações do dia 15 de março tiveram sua origem organizativa nas redes sociais, por meio de pequenos grupos de direita (ou “nova direita”, segundo propôs Valério Arcary em recente texto neste blog)[4] e extrema-direita, cujos discursos contra o governo tiveram como mote o combate ao “comunismo”, ao “bolivarianismo” e – claro, sempre ela – “à corrupção”, antiga consigna sempre atrativa aos estratos médios de jaez conservador. Muitos de seus organizadores anelavam o impeachment da Presidente ou mesmo um golpe militar. Contudo, nas últimas semanas que antecederam aos atos, em especial nos dias imediatamente anteriores àqueles, a Oposição de Direita, ou melhor, seu núcleo duro tradicional, o Partido da Social Democracia Brasileira e seus aliados midiáticos, encampou as convocatórias, amplificando-as. Desde então, a Oposição de Direita tradicional, dirigida pelos tucanos, obteve uma hegemonia, ainda que não plena, no processo mobilizatório, conseguindo amainar o teor reacionário dos atos, que passaram a ter como divisas centrais o “Fora PT” e o “fim da corrupção” etc. As manifestações do fim de semana passado podem ser descritas, portanto, como manifestações lideradas pela Oposição de Direita. Foram convocadas por ela, organizadas por ela, e dirigidas programaticamente por ela, a ala hard do neoliberalismo brasileiro e polo direito do regime democrático-blindado do país. Sob sua égide, ainda que com relativa autonomia, marcharam diversos grupos reacionários exóticos e toda uma vasta fauna proveniente dos estratos médios conservadores semiletrados[5] que, mesmo durante o fastígio do petismo no poder, tiveram suas consciências formatadas por pseudointelectuais de direita (Arnaldo Jabor, Marco Antonio Villa, Nelson Motta, Diogo Mainardi e consortes), os quais, conquanto ignorados nos ambientes científicos, gozam, na qualidade de “especialistas”, de vultoso espaço nos mass media.[6]
A análise do caráter da crise política atual deve escapar de interpretações dualistas de fundo economicista, as quais tomam os embates políticos entre governo e Oposição de Direita como expressões “superestruturais” de uma contenda entre distintos setores da burguesia brasileira. Essa perspectiva, desde quando aventada por setores ligados ao PT e ao Partido Comunista do Brasil quando do episódio do “mensalão”, em 2005, esbarrava na política econômica adotada pelo próprio governo petista, coordenada por Palocci e Henrique Meirelles. Antes, nas eleições de 2002, alguns escribas do futuro governo haviam apostado na ideia de que a chapa Lula-José Alencar expressaria uma aliança entre os setores populares organizados e uma ala “desenvolvimentista” da nossa burguesia, como que numa realização tardia do velho desejo dos stalinistas e cepalinos brasileiros (não só brasileiros, é verdade, para sermos justos com os nossos). Contudo, a prática superavitária, os altíssimos lucros obtidos pelos banqueiros, o total apoio do Departamento de Estado norte-americano ao governo brasileiro, entre outros aspectos presentes desde o iniciar do primeiro mandato de Lula, tornaram impossível que a perspectiva que procurava explicar a crise política de 2005-2006 como um conflito interburguês (ataque dos setores imperialistas e reacionários – rentistas – da burguesia contra os setores “progressistas” da mesma, então supostamente aliados aos segmentos populares”) encontrasse algum lastro na realidade. Sob os governos Dilma, em especial depois da nomeação de Joaquim Levy para o Ministério da Economia (com sua política de ajustes e austeridade), tal viés interpretativo chega a beirar o ridículo.
A crise política, que se agrava a cada dia, é de natureza eminentemente política. Longe ser um pleonasmo tautológico, tal assertiva simplesmente afirma que não há, a nosso ver, uma disputa política entre frações da burguesia pelas diretrizes do governo, e muito menos pelo poder de Estado. A crise política atual é, para usarmos um léxico althusseriano/poulantziano, uma crise politicamente sobredeterminada. Trata-se, na verdade, de uma disputa entre dois partidos pela representação política do mesmo bloco burguês hegemônico, capitaneado pelo rentismo e suas alianças com os industriais e o agronegócio. Digladiam-se dois monstruosos aparelhos partidários, representantes das mesmas frações do capital internacional e nacional, pelo direito de administrar, para a classe dominante brasileira, o seu Estado. Estes dois partidos disputam quem irá seguir pagando a dívida externa, concentrando renda, freando a reforma agrária, esfacelando os serviços públicos essenciais e retirando direitos sociais universais para garantir a taxa de lucro das grandes corporações financeiras, industriais e do agronegócio. De um lado, um partido tradicional da burguesia brasileira, o PSDB, que caiu no gosto desta precisamente porquanto cumpriu com maestria a função de esmagar politicamente a classe trabalhadora na década de 1990 e realizar o ajuste neoliberal-privatista no país. Por uma mentalidade de armarinho, ou talvez por mero sadismo, não se dispôs a gastar quase nada do volumoso fundo público nacional com os que vivem (ou tentam viver) do seu trabalho, deixando-os a deus-dará – ainda que esse deus seja o deus-mercado. De outro, um partido nascido das lutas operárias que, convertido em partido da ordem e dotado de prestígio entre os movimentos sociais organizados, cumpriu religiosamente os ditames do mesmo mercado, mas que, por estratégia de dominação social num país com índices obscenos de desemprego, diminuiu este, aumentou a formalização do trabalho e o crédito para o mercado consumidor, ampliou significativamente a distribuição de migalhas via bolsa-família e abriu concursos públicos, buscando, com tais medidas, conquistar também um alargamento de sua base social-eleitoral. Do ponto de vista do próprio capital, não há, racionalmente, melhor forma de gestão da ordem capitalista contrarreformista.
Adotando tal estratégia, o PT converteu-se em uma eficiente máquina partidária capaz de gerir o capitalismo brasileiro melhor, e mais seguramente, do que as próprias representações políticas tradicionais da burguesia brasileira, e, por isso, se mostrou, até o presente momento, extremamente bem sucedido no jogo eleitoral – e isso talvez ajude a entender a postura cada vez mais udenista da Oposição de Direita; tal como Eliomar Baleeiro, em 1950, e Lacerda, em 1954 e 1964, as lideranças tucanas e seus candidatos derrotados parecem perceber que o caminho eleitoral é mais propício ao “populismo” da “esquerda”, e passam a flertar – por enquanto só flertar – com soluções jurídicas de teor golpista. A verdade é que, entre 2003-2013, o PT conseguiu, por meio da coadunação de contrarreformas, redução do desemprego, aumento do consumo popular e políticas sociais compensatórias, garantir o sono tranquilo da burguesia brasileira. Os chefes petistas deram um golpe de mestre nos partidos políticos que essa mesma burguesia criara. Agradando economicamente a classe dominante brasileira, o petismo a minou politicamente, fazendo do PSDB, entre 2003 e 2013, uma oposição sem programa e sem sentido. Brincando com as palavras de Marx, pode-se dizer que foi triste o partido que, na oposição, viu o seu programa ser implementado pelo adversário.
Ocorre que, de pelo menos um ano pra cá, os índices econômicos começaram a cair abruptamente, o desemprego aumentou e a inflação começou a corroer fortemente o poder de compra dos trabalhadores (que nunca foi alto, mas era significativo para os padrões nacionais das últimas décadas, sobretudo em função dos créditos consignados) e dos setores médios, estrangulados, assim como os assalariados, pela alta carga tributária do país, profundamente regressiva (na medida em que poupa o patrimônio e taxa em demasia o consumo – bens, serviços).[7] Com o cobertor curto, o governo petista optou por aquecer o peito do capital e descobrir os pés do trabalho. Passou a vigorar nas grandes cidades um profundo “mal estar”, pra lembrarmos aqui da antiga expressão de Virgínio Santa Rosa.[8] O descontentamento social vem crescendo celeremente nos últimos dois anos. O alto custo de vida, o caos nos serviços públicos, e nos transportes em particular, tornou a vida praticamente insuportável para a maior parte da população, que iniciou vertiginosamente uma ruptura com o petismo no poder. Diante disso, até mesmo a capacidade do PT de domesticar os movimentos sociais e aplicar os ajustes tornou-se menor, diminuindo, por conseguinte, sua serventia política ao capital.
Esse novo contexto fez renascer das cinzas a Oposição de Direita, com destaque para sua direção tucana, o que pôde ser percebido pelos resultados da última eleição presidencial. Confiante, a Oposição de Direita pôde reconquistar o amor de parcela significativa da “massa da burguesia” brasileira,[9] a qual, seduzida por orgias financeiras, havia resignadamente aceitado o PT à frente do seu Estado. Novamente enamorada com os tucanos, grande parte da burguesia brasileira pôde, rapidamente, abdicar do sexo sem amor que fazia com o petismo durante aproximadamente dez anos (ainda que os chefes petistas sempre alimentassem o desejo de contrair matrimônio estável), e destilar contra o partido de Lula e Dilma todo o seu ódio contido, um ódio, na verdade, muito mais explicado em função do que o PT já foi um dia do que propriamente pelo que ele é hoje. Vertebrado subjetivamente pelos editoriais jornalísticos, o burguês comum, tomado isoladamente, com sua mentalidade tacanha e mesquinha, não é capaz de uma visão política estratégica para sua classe, e não se reconhece na figura de um administrador de “esquerda” do capitalismo, que outrora empunhava bandeiras vermelhas e defendia greves. O burguês ordinário porta-se, assim, com os chefes petistas, tal qual um nobre o faz com um arrivista plebeu que cativou o coração de sua bela filha: não havendo opção, o galante pode até ser aceito na casa, mas não é da família e, na primeira crise conjugal, há que ser posto pra fora de onde nunca deveria ter entrado. Por mais que tenha prestado enormes serviços à burguesia brasileira, o PT não é um lídimo filho dela e, do mesmo modo que uma empregada doméstica pode até jantar na mesa da sala mas não deve dar pitacos nas temáticas encetadas na refeição, Lula, Dirceu, Genoíno, Dilma e Cia. não deveriam ter ousado mostrar aos políticos da classe dominante como realmente se defende os interesses desta. Empolgado como um novato, o petismo talvez tenha ido longe demais nos seus planos de governar para a nossa oligárquica burguesia, profundamente ingrata.
O último dia 15 foi a prova cabal de que a Oposição de Direita partiu para a ofensiva, cujo objetivo, à primeira vista, parece ser o de desgastar ao máximo o governo até as próximas eleições, para finalmente derrotá-lo sem dó e piedade. Nessa ofensiva, a Oposição de Direita apresenta como alternativa um programa econômico para o país que não é senão uma versão mais radicalizada do próprio programa econômico petista, o qual, por sua vez, é, com leves mudanças, o antigo programa da Oposição de Direita quando era situação. Parafraseando Lacan, poder-se-ia dizer que o programa de todos eles, petistas e tucanos, é o programa do Outro, isto é, do capital. Do ponto de vista dos trabalhadores, faz-se necessária, urgentemente, a construção de um terceiro campo, que combata o governo e a Oposição de Direita. Somente uma frente única de lutas, que agrupe os partidos socialistas, movimentos sociais e ativistas independentes, pode retirar a Oposição de Esquerda da marginalidade social e oferecer uma alternativa à esquerda para a crise política, econômica e social do país. Nesta frente única, o oportunismo parlamentarista, que subordina a dinâmica das lutas aos calendários e cálculos eleitorais, e o esquerdismo sectário, que corrói as alianças por um denuncismo despropositado, são erros simétricos a serem evitados por aqueles que acreditam que é possível vencer, antes que seja tarde.
[1] Ver, entre outras obras, OLIVEIRA, F. “Hegemonia às avessas. Decifra-me ou te devoro” in BRAGA, R. e RIZEK, Cibele (orgs). Hegemonia às avessas. São Paulo: Boitempo, 2010; COUTINHO, C.N. “A hegemonia da pequena política” in OLIVEIRA, F. e BRAGA, R. e RIZEK, Cibele (orgs). Hegemonia às avessas. São Paulo: Boitempo, 2010; BRAGA, Ruy. “Movimentos sociais na Era Lula”. Cult, n 148 (http://bit.ly/1MMMlnv); BIANCHI, A. “Ornitorrincos com PHD”. Blog Convergência, 7 mar. 2014 (http://bit.ly/1F8f5pC); ARCARY, V. Um reformismo quase sem reformas. Uma crítica marxista do governo lula em defesa da revolução brasileira. São Paulo: Sundermann, 2011; SINGER, A. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: Teoria e História. Rio de Janeiro: EPSJV/Fio Cruz, 2010; e NETTO, José Paulo. “Uma face contemporânea da barbárie”. Comunicação apresentada no III Encontro Internacional Civilização ou barbárie. Serpa, outubro/novembro de 2010.
[2] BOULOS, G. “Onda conservadora”. Folha de S. Paulo, 9 out. 2014.
[3] Ver, por exemplo, MATTOS, Marcelo Badaró. “As eleições brasileiras de 2014 e os dilemas da esquerda socialista no segundo turno”. PSTU, 14 out. 2014. (http://www.pstu.org.br/node/21084), o artigo de BIACHI, A. e MUSSI, Daniela. “É o fim de um ciclo político no Brasil”. Blog Convergência, 10 fev. 2014 (http://bit.ly/1rCbogx) o recém-lançado livro de BRAGA, Ruy. A pulsão plebeia. São Paulo: Alameda, 2015.
[4] ARCARY, V. “Três perguntas e três respostas breves sobre um domingo triste”. Blog Convergência, 17 mar. 2015 (http://bit.ly/195noEy).
[5] Analisados aqui neste blog em BIANCHI, A. “A burguesia de mentira e as vaias à Dilma”. Blog Convergência, 13 jun. 2014 (http://bit.ly/1HxSr8j) e BRAGA, R. “O feitiço do camarote”. Blog Convergência, 11 nov. 2013 (http://bit.ly/18KESpM).
[6] Ver MELO, Demian. “A direita ganha as ruas”: o Banana’s Party em perspective histórica”. Blog Convergência, 15 mar. 2015 (http://bit.ly/1CwCTS6).
[7] BERHING, Elaine e BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. 9ª edição. São Paulo: Cortez, 2001, p. 164-166.
[8] SANTA ROSA, Virgínio. O sentido do tenentismo. Rio de Janeiro: Schmidt Editor, 1932 (?)
[9] A expressão foi utilizada utilizado por Marx para se referir ao grosso da burguesia, em oposição à sua representação político-parlamentar (a “massa da burguesia”/ ou “massa extraparlamentar da burguesia”) (MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 99)
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