Ramsés Eduardo Pinheiro
Recentemente publicado pela Editora Sundermann, o livro O Partido Bolchevique[1], escrito pelo historiador trotskista Pierre Broué, cujo falecimento completa 10 anos em 2015, é uma obra de fôlego sobre a trajetória da organização revolucionária que transformou a história da Rússia e influenciou profundamente os acontecimentos políticos do século XX.
O leitor que pretende ler esta obra esperando encontrar alguma glorificação do Partido Bolchevique[2] certamente se decepcionará. Tão pouco encontrará os bolcheviques como “homens com a faca nos dentes” ou “assassinos de crianças” como pontua o próprio autor[3]. Ao contrário, durante os vinte capítulos que constituem o livro, Broué nos apresenta este partido vivo, cujo principal mérito foi ter “conquistado o poder político e colocado o problema prático da realização do socialismo”.
O ponto de partida de Broué para a elaboração desta obra, publicada originalmente em 1963, pode ser localizado no seu prefácio à edição de 1972, escolhida para iniciar a edição brasileira. Neste prefácio, o historiador pontua que “A história do Partido Comunista (Bolchevique) constitui, sem dúvida, um dos fenômenos decisivos para a compreensão do mundo contemporâneo”. Acrescentando em seguida que “o passado deve nos servir para compreender e interpretar o presente”[4].
Ao adotar tal perspectiva, Broué assume um lugar preciso na produção do conhecimento que está longe de se pretender neutro. Este historiador escreveu a história do Partido Bolchevique visando compreender o seu próprio presente, tempo no qual àquele partido havia se convertido em obstáculo à mobilização dos trabalhadores e à revolução socialista. Todavia, na esteira da sólida tradição do materialismo histórico, Broué não pretende apenas interpretar seu tempo, também quer transformá-lo, motivo este que o levou anos antes a combater na resistência francesa contra a ocupação nazista na 2º Guerra e se integrar nas fileiras da IV Internacional.
Ainda no prefácio, Broué apresenta a perspectiva que atravessa todo seu trabalho, mas deixemos que ele mesmo a exponha:
“Considerar o fato, tão óbvio e tão esquecido, de que nada estava realmente “escrito” de antemão. Sem dúvida, tal movimento era historicamente necessário e o nascimento do partido bolchevique não foi um acidente, nem fruto do mero azar, mas sua vitória ou sua derrota em 1917, seu pleno desenvolvimento ou sua posterior degeneração estavam em ambos os casos profundamente enraizados nas realidades da época. Em outras palavras, trabalhamos guiados pela certeza de que, tanto antes como depois de 1917, na União Soviética se enfrentaram uma série de forças sociais, econômicas e políticas, antagônicas e contraditórias, num cenário comum e muitas vezes sob a mesma bandeira, gerando uma série de conflitos cuja resolução não estava determinada de antemão”[5].
Ao se guiar por esta orientação geral, Broué rejeita qualquer concepção determinista de história, filiando-se a uma tradição “antideterminista e antidogmática da história” da qual o próprio Trotsky foi um dos principais representantes com a obra História da Revolução Russa como ressaltou Álvaro Bianchi em texto sobre o tema[6]. Broué não poupa esforços em ressaltar, durante todo seu trabalho, que a degeneração do partido bolchevique não era algo que estava previamente determinado pelas condições e sociais da Rússia do início do século XX.
Embora Broué ressalte em diversas ocasiões o atraso econômico, a guerra civil e o isolamento da Rússia como elementos que explicam a burocratização do partido, ele também pontua que esse processo não era inexorável. O enfoque do historiador recai, sobretudo, sobre as incessantes lutas internas que marcaram a trajetória do partido bolchevique. Reconstitui, assim, as diversas batalhas da oposição que enfrentou o aparato burocrático no interior desta organização e que, em circunstancias históricas diferentes, poderiam ter reconduzido o partido e o Estado Soviético a posição de vanguarda da revolução socialista mundial.
Nesta abordagem reside toda a magnitude do livro de Broué, os 06 primeiros capítulos desta obra reconstituem o percurso destes homens de carne e osso, aqueles jovens que escolheram se tornar militantes do partido bolchevique e dedicar suas vidas à causa da revolução. Destaco o terceiro capítulo, “O bolchevismo: o partido e os homens”, onde Broué se debruça sobre a concepção de partido defendido pelos bolcheviques, o funcionamento desta organização, o perigo e as incertezas da militância cotidiana e também o papel de Lênin na construção do partido, não o ser infalível criado pelo stalinismo, mas “o velho”, como era chamado por seus camaradas, o “professor” e, ao mesmo tempo, “veterano”[7].
Nos cinco capítulos seguintes (7º ao 11º), Broué aborda o processo de burocratização do partido bolchevique e a luta da oposição contra este fenômeno. Sobre as origens da burocratização do partido, o historiador argumenta que “desde a tomada do poder e, principalmente, desde o começo da guerra civil, os antigos revolucionários profissionais deixam de ser militantes cujo campo de ação é o partido e a classe”, transformando-se, como disse Bukharin, em “chefes do exercito, soldados, administradores e governantes operários”[8].
Enfatizando o caráter objetivo deste processo, no qual os militantes do partido foram sugados pelas atividades de administração do Estado, Broué recorre a Trotsky para explicar de forma pedagógica como este processo gerou uma casta privilegiada no interior da União Soviética. Como acentuado por Broué, este processo tem conseqüências diretas sobre o partido bolchevique. A multiplicação de funções administrativas no Estado foi acompanhada por transformações na estrutura do partido, seja através da criação do birô de organização no seu VIII Congresso (1919), cuja principal atribuição era a distribuição dos dirigentes bolcheviques em diferentes postos, ou da criação do cargo de Secretário do Comitê Central, auxiliado por inúmeros outros secretários[9].
O crescimento do número de funcionários do partido que formam este aparato, ou “apparatchiks” na expressão do bolchevique Sosnovsky, passa por uma escalada vertiginosa a partir de então. De forma silenciosa um grupo de apparatchiks se fortalece no interior do partido, constituindo-se aos poucos como seu núcleo dirigente, cuja principal expressão será Stálin que se torna secretario geral em 1922[10].
É nesta perspectiva que Pierre Broué reconstitui as primeiras manifestações contra a burocratização do partido bolchevique, acentuando que ainda era possível uma reorientação do seu caráter, o que foi defendida até as últimas conseqüências pelos velhos bolcheviques. Nesta perspectiva o historiador revisita a formação da oposição de esquerda em 1923, formada por combatentes bolcheviques da velha guarda como Preobrazhensky, Serebriakov, Sosnovsky e Trotsky que denunciaram sem cessar a “hierarquia do secretariado”.
Um dos pontos altos do livro é a narrativa de Broué sobre a última batalha da oposição na URSS, tratava-se de garantir a participação dos seus delegados no XV Congresso do partido que ocorreria no final de 1927. A despeito da repressão do aparato burocrático, os oposicionistas conseguem imprimir 30 mil exemplares de sua plataforma. Sobre este derradeiro combate, Broué pontua que militantes oposicionistas como Trotsky e Zinoviev foram aos bairros operários de Moscou e Leningrado, distribuíram sua plataforma, ocuparam um dos anfiteatros da Escola Técnica Superior de Moscou e discursam a luz de vela por duas horas expondo suas críticas ao aparato. Apesar dos esforços imensuráveis da oposição, o restante da história já é bem conhecido, poucos dias depois os mesmos Trotsky e Zinoviev serão expulsos do Comitê Central e, posteriormente, do próprio partido, o que desencadeia uma profunda repressão contra todo e qualquer dissidente.
A consolidação definitiva do aparato que formava o núcleo dirigente do partido desde o inicio dos anos 1920 se efetiva no início da década seguinte. Broué dedica os 07 capítulos seguintes (12º ao 18º) à análise da trajetória do partido durante o apogeu do processo de burocratização, período no qual o grupo representado por Stálin exerceu um domínio quase absoluto sobre o partido e o Estado. O ponto alto desta análise recai sobre o processo de depuração promovido pelo aparato contra seus inimigos, do qual os processos de Moscou e o assassinato de Trotsky foram apenas os casos mais expressivos de um extermínio físico de milhões de dissidentes.
Os dois últimos capítulos do livro de Broué (19º e 20º) abordam o processo de desestalinização, iniciado com o informe secreto de Krushev no XX Congresso do PCUS em 1956 que expôs os “Crimes de Stálin”. O historiador francês enfatizou que a desestalinização não questionou em nenhum momento o processo de burocratização subjacente às atrocidades cometidas por Stálin, tampouco a repressão às diferentes oposições que combateram a burocratização do partido nos anos 1920, evidenciando os limites intrínsecos a este processo.
Nestes capítulos finais, Broué expõe com toda sua habilidade o que a meu ver constitui seu principal argumento: o renascimento do pensamento socialista e revolucionário que ocorreu em meio ao processo de desestalinização e se expressou através de uma retomada da tradição bolchevique de 1917. Broué argumenta que:
Depois da reação provocada pelo isolamento da URSS e alimentada entre as duas guerras pela repressão exercida pelo aparato burocrático, uma série de novas gerações retomam em 1956 e 1957 os vínculos com a tradição, o pensamento e a prática revolucionários de 1917, ocultadas até então por obra de comentaristas parciais[11].
Este movimento revolucionário é sobejamente analisado por Broué através da insurreição dos operários de Berlin Oriental e da greve dos prisioneiros do Campo de Concentração de Vorkuta na URSS, ambas ocorridas em 1953, bem como da “primavera de outubro” na Hungria e Polônia em 1956. Para Broué, os jovens comunistas poloneses e húngaros que se insurgiram contra o caráter burocrático dos partidos que dominavam seus países e também a URSS, representavam “uma nova geração de comunistas” que redescobria o “pensamento da oposição e o genuíno espírito do bolchevismo”[12].
O historiador ainda estabelece conexões entre o pensamento dos comunistas húngaros e poloneses e as idéias defendidas por Trotsky em relação à burocratização do partido bolchevique, inclusive no tocante ao programa deste movimento: a derrubada da burocracia através da tomada do poder por conselhos operários e a formação de um poder “soviético”. Esta consigna de uma “segunda revolução” foi associada por Broué à “revolução política” defendida por Trotsky para derrotar a burocracia stalinista e reorientar as forças do partido e do Estado na URSS para a revolução socialista internacional, reforçando sua tese do movimento revolucionário de 1956-1957 como renascimento do bolchevismo.
No epílogo à edição de 1963, Broué relembra a seus leitores que a “história está cheia de encruzilhadas contraditórias” e por isso mesmo “na revolução estavam implícitos, os processos de Moscou, mas também o Outubro polonês e húngaro”[13], reiterando, assim, a concepção exposta no prefácio segundo: a história não está aprisionada em uma lógica pré-concebida, mas se faz a partir das lutas travadas por homens que representam interesses antagônicos e cujas ações conferem singularidade à cada período histórico. São estas lutas que Pierre Broué busca enfatizar em todo seu trabalho e, principalmente, no posfàcio à edição de 1971, sugestivamente intitulado “Renascimento do Bolchevismo”.
Transcorridos quase dez anos da 1º edição de sua obra, Broué aduz que este decênio apenas reafirmou a “continuidade histórica entre a oposição no interior da sociedade russa pós-stalinista e a tradição revolucionária de outubro de 1917”[14]. Esta afirmação é reforçada por dois acontecimentos históricos de grande importância para este historiador: a “Primavera de Praga” em 1968 e a luta dos jovens comunistas tchecoslovacos contra o aparato stalinista em seu país; e o surgimento de uma nova oposição comunista na URSS nos anos sessenta que realizou em 25 de agosto de 1968 a primeira manifestação pública contra o governo após 40 anos, quando sete jovens abriram suas faixas na Praça Vermelha protestando contra a ocupação da Tchecoslováquia por tropas soviéticas.
Ao defender neste posfácio o reatamento do “fio da história”, rompido pela ascensão do aparato burocrático na URSS, mas restabelecido através da relação de continuidade entre a tradição bolchevique de 1917 e a oposição comunista que se forma na Rússia após 1968, Broué chama a atenção dos leitores para a possibilidade de uma grande transformação naquele momento por meio da derrubada da burocracia nos Estados Operários e da retomada da luta pela revolução socialista mundial. Em ambos os casos, o renascimento do bolchevismo nestes países e em todos aqueles onde o stalinismo havia asfixiado a luta revolucionária, era imprescindível para o êxito desta empreitada.
Pierre Broué jamais escreveria esta obra da forma que escreveu se não possuísse, como ele próprio afirmou no prefácio à edição de 1972, “uma grande dose de simpatia para com o seu tema, compreensão, e às vezes até mesmo amor para com todos aqueles que tentam fazer ou reescrever a história e mudar o mundo e a vida”[15], Sua paixão por aqueles velhos bolcheviques que dedicaram suas vidas à revolução e quando preciso discursaram por horas a luz de velas diante de centenas de operários para defender esta mesma revolução em face do aparato que a ameaçava, reconduz à história do partido bolchevique seus verdadeiros protagonistas, os homens que “são donos de sua própria história” e, exatamente por isso, podem “construir uma história diferente”[16]. Este é certamente o principal mérito da obra de Broué.
Enfim, uma leitura imprescindível não apenas para os que reivindicam a tradição marxista ou bolchevique, mas para todos àqueles que, como Broué, se interessam em estudar o passado para compreender o mundo contemporâneo e, como diria Marx, transformá-lo.
[1] BROUÉ, Pierre. O Partido Bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014.
[2] O partido bolchevique abordado por Broué se constitui a partir da fração bolchevique que se forma em 1903 durante o II Congresso do POSDR, e que a partir de 1912 passa a atuar como um partido autônomo.
[3] BROUÉ, op. cit., p. 16.
[4] Ibidem, p. 09.
[5] BROUÉ, op. cit., p. 16.
[6]BIANCHI, Álvaro. História da Revolução Russa: Trotsky como historiador. Disponível em: <http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1089>. Acesso em 20 de fevereiro de 2015.
[7] BROUÉ, op. cit., p. 68.
[8] Ibidem, p. 126-127.
[9] Ibidem, p. 128-129.
[10] Ibidem, p. 163.
[11] Ibidem, p. 480.
[12] Ibidem, p. 465.
[13] Ibidem, p. 512.
[14] Ibidem, p. 517.
[15] Ibidem, p. 16-17.
[16] Ibidem, p. 17.
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