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TEORIA

Mangabeira Unger: da política de ideias à ideia de política

Betto della Santa

Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.” (sabedoria milenar chinesa apud Valerio Arcary.)

 Ao dia 5 de fevereiro Roberto Mangabeira Unger foi oficialmente empossado ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) do novo Governo Dilma. Algumas palavras sobre o que fez Marcelo Néri, à frente do Ipea e da SAE, responsável pelo “conceito-chave de nova classe média no Brasil”, e mais outras tantas sobre o que deverá fazer o novo ministro, a respeito de diagnósticos de curto prazo e perspectivas de longa duração. Tudo isso involucrado desde a diretriz “mudança na continuidade e continuidade na mudança”: “Vox Populi; Vox Dei”.

A ênfase do discurso recaiu, daí, sobre as ideias de crescimento e inovação, tendo como slogans mais reiterados o programa de «Pátria Educadora» e a teoria da chamada «Sociedade do Conhecimento». Em estilo curto e grosso, o sucinto ato de fala remarcou a importância de seu “legado para as nova gerações”. A cerimônia durou algo entorno de 7 minutos. Néri (FGV), Unger e Aloizio Mercadante (Casa Civil) sequer abriram à boca. Para um governo cuja composição ministerial acena ao capital bancário com Joaquim Levy (e dá ao agronegócio Katia Abreu) o comedimento e a assepsia parecem ser bons negócios. Mas cabe, aqui, uma apresentação sucinta.

Roberto Mangabeira Unger é o mais jovem professor-titular a se efetivar (tenure) na mais importante Universidade de Direito do mundo, a Harvard Law School. Lá lecionou a Barack Obama a quem, algo recentemente, desautorizou publicamente dizendo-o refém do Big Business, “humanizador do inevitável” e simples marionete do capital financeiro nos EUA.[1] No Brasil foi membro fundador do PMDB, aliado a Leonel Brizola, mentor de Ciro Gomes e, antes de compor a Administração Lula, afirmou nunca antes na história do país ter havido governo mais corrupto.

Defendeu da transposição de águas da Amazônia brasileira para o semiárido nordestino a um investimento maciço em megaobras, serviço militar obrigatório para mulheres e novo plano de defesa no país, além de advogar mais interação entre os ministérios e imaginação institucional quando sucedeu Samuel Pinheiro na referida pasta um ano depois. É o autor de dezenas de livros importantes sobre alta teoria e alta política, um influente intelectual público e é levado a sério por pensadores do calibre de Jünger Habermas, Richard Rorty e Perry Anderson, ainda e quando seja algo tal qual uma eminência parda, ainda hoje algo fora de lugar, na sua própria terra natal…

A retaguarda ideológica e a vanguarda do atraso

Em um planeta onde o trabalho se precariza e o bem-estar social se desregulamenta a (semi)periferia do sistema mundial parece apontar o (des)caminho para o capitalismo avançado. Unger, parte da constelação de intelectuais do Terceiro Mundo ativa e reconhecida no Primeiro, não deixa de ser o caso de um crítico profissional do centro reconvertido em “profeta armado” –“ninguém quer viver em um mundo onde … os meigos [estão] indefesos”– dessa (semi)periferia. O mesmo desenvolvimento desigual e combinado do mundo capitalista que rege o tempo-espaço planetário ministra também o ritmo das ideias, podendo colocar na vanguarda à retaguarda. As peripécias do telos –de des-ordem e do não-progresso– do capital-imperialismo à brasileira foi recrutar uma vez mais na política das ideias do estrangeiro uma ideia de política; (trans)nacional.

Se outrora coube aos think-tanks intelectuais do Norte dignosticar males e prescrever tratamentos a corporas político-sociais do Sul –e/ou do Ocidente ao Oriente–, a intelligentzia emergente passou ao escrutínio da crítica crítica do centro avançado e, aqui e agora, seria como vislumbrar Ahmed Salman Rushdie em Nova Deli ou Edward Wadie Said em Jerusalém Oriental, para iniciar a entender o sentido análogo de Roberto Mangabeira Unger, de novo, à frente da SAE. Com Unger em Brasília, filho pródigo à casa torna, e isso não é nem o bem e nem o “mal menor”.

À diferença de Rushdie, que representaria mínima sacudidela no establishment indiano, e do saudoso – e bravo – Said, que estremeceria às estruturas de poder dos Territórios Palestinos, Unger no Distrito Federal é, resumindo brutalmente, mais do mesmo. Mas com uma sensível (e distinguida) variação de número e grau. Em meio à miserável filosofia de quadres da governança –compare, por exemplo, a envergadura intelectiva do apparatchik moscovita às pálidas figuras do PT brasileiro; seria factível algo como editar às obras completas de um Aloízio Mercadante?– Unger é um alvo, respeitável, para a crítica marxista no país que ousa se bater com o seu destino.

Unger é um eloqüente e sofisticado pensador do político (e da política) que fala e escreve com desenvoltura de moral e religião a políticas sociais públicas e/ou relações pessoais íntimas. Um temperamento retórico inusual e um elã estilístico infatigável fazem do orador e escritor Unger um ensaísta rigoroso, por um lado, e do zoon politikon Mangabeira algo inclassificável, por outro. Uma impostação programática ousada + um registro ao menos extravagante se esvai, contudo, tal qual uma solidez que se liquefaz e vaporiza até se desmanchar no ar da não-tão-moderna semiperiferia do capital: o vocabulário de língua franca; em dicção de idioma autóctone.

De onde vem …

Mangabeira Unger é descendente legítimo de um dos mais famigerados clãs da política da Bahia. É neto do Ministro das Relações Exteriores da República Velha –que fez oscilar entre liberalismo e fascismo, na oposição ao regime varguista–, sobrinho-neto de um dos fundadores do PSB e uma religiosa e irmão de uma ex-presa política do regime militar. Unger é fruto de um exílio político durante o Estado Novo, tendo convivido com a cultura e a educação do Norte e do Sul das Américas desde a mais tenra infância até a sua idade adulta. Os 19 meses de trabalho da Assembleia Constituinte que deu lugar à Carta de 1988 coincidiu com a feitura de Social Theory, False Necessity e Plasticity into Power, i.e., os três volumes decisivos da obra magna chamada «Política, um trabalho de teoria construtiva» combinando-se o caráter explicativo ao normativo.

Unger fala português brasileiro com sotaque estadunidense enquanto que se expressa em língua inglesa com fluidez admirável. Quando em português sôa acadêmico, e até esquisito e, onde em inglês, não destôa muito daquilo que ele mesmo considera a tradição do radicalismo da pequena-burguesia, mais especificamente uma linhagem crítica de intelectual público que abriu seu caminho para um discurso oxigenado pela compreensão de audiências algo mais amplas que os campi de elite dos EUA (Ivy League). O aspecto ornitorríntico de sua personalidade político-intelectual arrancou simpatia de Ciro Gomes, admiração de Caetano Veloso e algo de espanto de Gilberto Vasconcelos mas arduamente pode aspirar àquilo que Marx diz  apoderar-se às massas.

Profundo e extenso em espectro e escopo, dá de ombros aos instrumentos de referência e faz sobrolho aos procedimentos-padrão –nas obras de finais dos anos de 1980– e, já algo mais recentemente, organizou suas novas lectures de temas e problemas diversos em forma de livro-compêndio, buscando uma linguagem mais próxima de uma teoria social e política do policy-making e das agendas, propriamente, eleitorais. Algo de sua escrita recente foi traduzida por editoriais brasileiras enquanto uma recompilação do momento anterior foi reunida em seleções bem-cuidadas. Quiçá o cotejo das partes possa resultar, em um debate de ideias, à altura do tôdo? Uma coisa é certa: cruzar sabres com Unger dará melhor resultado crítico à esquerda socialista do que medir forças com membros do partido do governo como, por exemplo, um Tarso Genro…

Se Antonio Gramsci aconselhava a buscar o confronto com os campeões intelectuais das tendências adversárias, argumentando que a luta teórico-conceitual, diferentemente da guerra político-revolucionária, não avança em nada ao destruir os elos mais débeis do encadeamento, Perry Anderson sugere que a batalha de ideias deve se aventurar para fora e para além do mais familiar terreno das teorias sociais e políticas com as quais se tem concordância substantiva. Uma atitude antideterminista deve dirigir o crítico de esquerda a conceber ideias e programas como traduções intelectuais e políticas de uma época histórica sem reduzi-los a epifenômenos do tempo-espaço. Uma postura adogmática exige que se conheça o inimigo para um bom combate, isto é, assumir o desafio crítico do embate de racionalidades históricas envolve interpretação precisa e transformação necessária em um só e mesmo movimento, abandonando «Fur ewig» a sonolenta –e rabugenta– perspectiva, da exegese de textos sagrados, de qualquer cânone que seja.

… Para aonde vai

Não vamos ofertar a essa hora e nesse lugar uma apreciação detalhada dos novos escritos de Unger que vieram à luz entre meados dos anos 1990 e finais dos anos 2000. O que se propõe nessa breve nota de leitura não é mais do que o seguimento atentivo das trilhas e considerações que nos sugere a review crítica oferecida por Perry Anderson (1989/2002) nas páginas da Revista da Nova Esquerda (NLR) a respeito, sobretudo, da trilogia supracitada (com alguma menção parafrástica eventual ao texto que lhe precede, Paixão, ensaio editado no Brasil em 1998) com o acréscimo adicional do registro realizado pela imprensa do país, de sua práxis político-intelectual (E se o teaser teórico suscitar curiosidade intelectual – ou incitar outra laboração –, tanto melhor).

Em finais dos anos 1980 – vis-à-vis o que Anderson considera “um dos mais delongados e conflitivos processos de fazimento de constituições na história moderna” –, Unger se lançou a um ambicioso projeto político-intelectual de duplo caráter: i) apresentar uma teoria explicativa da sociabilidade e ii) expor um programa de reconstrução societária que fosse, simultaneamente, uma alternativa radical ao marxismo, no primeiro plano, e uma alternativa radical à social-democracia, no segundo, uma década antes do primeiríssimo anúncio semelhante por Anthony Giddens do outro lado do Atlântico (que, diga-se de passagem, não mereceu atenção crítica do compatriota Anderson). À época, vale lembrar, Unger postava-se a meio caminho entre uma crítica à esquerda como a lançada por Florestan em ato e Roberto Campos à direita em palavras.[2]

Seu empreendimento histórico-crítico rejeita tanto uma visão de mundo composta de um número limitado de “modos de produção” –concebidos como ordens integradas capazes de se repetir em eras e ambientes diferentes–, a “deep-structure theory” marxista; quanto a negação adialética de totalidades sociais, ou descontinuidades qualitativas, do positivismo sociohistórico. Nessa empreitada pode-se antever um constructo que perpassa momentos de teoria, política e história. Se em teoria Anderson compara-o, explícitamente, a um Jean-Paul Sartre, de O Ser e o Nada, e em política parangona-o, nominalmente, com um Jünger Habermas, de Teoria do Agir Comunicativo, não podemos deixar de pensar que, em história, o espelhamento implícito se dê com o mesmíssimo Anderson –de Passagens e Linhagens– e sua própria trilogia nunca rematada.

O “empoderamento” do indivíduo e a “reconstrução” das instituições não deixa de se por como algo minimamente congênere ao landscape de ideias sociopolíticas de Anthony Giddens. Tendo em vista a alta estima que o autor reputa ao marxismo crítico da Europa continental, e a baixa consideração que sente pela sociologia acadêmica de sua parte insular, pode-se ter uma ideia do “juízo de valor” que se atribui ao labor teórico do referido intelectual estadunidense-brasileiro. E isso, é claro, advindo de um crítico de ideias com um apaixonado interesse pelo Brasil e vasto conhecimento de ca(u)sa dos Estados Unidos. Para o modesto objetivo a que se limita esse escrito já nos damos por atendidos. Mas não sem antes um Post Scriptum, com dois comentários:

 

P.S.: 1) os teóricos sociais que ascendem ao poder tendem a reclamar “autonomia relativa” entre o que “se pode conhecer” e aquilo que “se deve fazer” ou, sob inspiração weberiana, separar ciência e política. Não surpreenderia um algo non-vero ma ben’-trovato “esqueçam que escrevi”.

2) Em 1993, ocorreu invitar Milton Lahuerta (FCL/Unesp/Araraquara) e, em 2010, Vladimir Safatle (FFLCH/USP/São Paulo) ao Roda Viva. O primeiro fez-lhe crítica ao neoliberalismo, ao fim da coletiva com Unger, e o segundo, fustigou à forma-partido, logo de chofre, 17 anos após. O primeiro subscreveu manifesto intelectual à “Esquerda Democrática com Aecio Neves”(!) e o segundo endossou à petição política pela “Frente de Esquerda Socialista” no estado de São Paulo. Entre a extrema-direita scholar e a gauche intelectual há mais coisas que pode suspeitar um PhD. “Ou não.” (Caetano Veloso).

Referências bibliográficas: 

ANDERSON, Perry. Roberto Unger and the politics of empowerment. London : New Left Review I/173, Jan-Feb, 1989. Disponível em: http://bit.ly/179w6Rb. _____________. Afinidades seletivas. São Paulo : Boitempo, p.173-194. Emir Sader (Org.). Trad. Paulo César.

UNGER, Roberto Mangabeira. Por que votar em Dilma?. Folha de S. Paulo, Tendências/Debates, 13/Out./2014. Disponivel: http://bit.ly/1zUIWOO

_____________. Política: os textos centrais. São Paulo : Boitempo, 2001.

_____________. Paixão: um ensaio sobre a personalidade. São Paulo : Boitempo, 1998.

RODA VIVA (TV Cultura) com Mangabeira Unger (I), em 1993, video disponivel em Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=E3dXcSrMDq8.

RODA VIVA (TV Cultura) com Mangabeira Unger (II), em 2010, video disponivel em Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=xthmSc7-xq4.

WIKIPEDIA (ROBERTO MANGABEIRA UNGER / EN). Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Roberto_Mangabeira_Unger.

 


[2] “Até recentemente, o PT tinha fortes restrições aos mercados, exatamente qual o Partido Social-Democrata alemão, até o Manifesto de Godesberg (1959), e o Partido Trabalhista inglês, até o Encontro de Westminster Hall (1995), quando esses retiraram de seus programas todos os resquícios de marxismo que ainda os infectavam. No seu último programa –que se chama ‘Carta de Ribeirão Preto’– o PT percorreu o mesmo caminho […]. Até então o PT não fazia parte dos partidos que aceitavam integralmente a organização política nacional construída na Constituição de 1988.” (In: NETTO, Delfim. Revista CartaCapital, São Paulo, Out./2003.)