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TEORIA

Paranauê, Paraná

Betto della Santa (*) |

Paraná: Do tupi-guarani: Pará + Nã (semelhante ao Mar), braçada de rio-Mar.

Cantar com alegria, Paraná.” (Um toque de ladainha popular para Jogo de Capoeira Angola.)

Confusão. Medo. Desorganização. Um clima de tensão generalizada atravessa a manhã do dia 12 de fevereiro entre os e as parlamentares pró-tratoraço.[1] Uma reunião urgente do alto escalão do governismo paranaense é então convocada, via aplicativo de celular, listas de contato e redes sociais (sim, eles também têm). Com a sede do Legislativo cercada por manifestantes e grevistas, a poucos metros de Judiciário e Executivo, deputados estaduais a favor da política de  austeridade agrupam-se em um QG, algo improvisado, do governo do estado.

Mas existe algo de novo sob o sol. Os de cima já não podem como antes podiam.

Pode o medo mudar de lado?

“O único jeito de vocês chegarem lá e eu garantir a segurança –  e até a vida de vocês – é assim.” A directiva partiu do Secretário de Segurança Pública do estado do Paraná, Fernando Francischini, dirigindo-se a um grupo de pouco mais de 30 parlamentares, sitiados no que a imprensa local chama de “sede alternativa do governo de estado”.

O “Chapéu-Pensador” é um prédio projetado e utilizado pelo ex-governador Jaime Lerner, construção de madeira e vidro cercada por mata nativa – no Parque da Companhia Paranaense de Energia Elétrica, Bairro do Bigorrilho –, no qual se enfurnou a entourage governista durante onze dias a fio de aguda crise social e política no Paraná. A sede fica a, aproximadamente, 6km de distância do Palácio Iguaçu, Centro Cívico. Um camburão-blindado, com escolta de Polícia Militaar (PM) e Batalhão de Operações Especiais (Bope), lá os aguardava.

Entre constrangidos e consternados uma minguada base de apoio ao assim-chamado “pacote de maldades” de Carlos Alberto Richa, bem como seus assessores mais próximos, estava reunida durante toda a manhã, para uma análise de conjuntura urgente, convocada por WhatsApp. 12 de fevereiro foi o auge de mais alta temperatura política dos acontecimentos das lutas de classe a, de fato, abalar as estruturas de poder do estado sulista. A ocupação do Legislativo por uma maré de gente atuante e solidária à greve geral – do funcionalismo público – foi tão multitudinária, e combativa, que a Polícia Militar se negou a cumprir ordem do Judiciário para a reintengração de posse. Com ex-indíces de aprovação altíssimos + eleição em primeiro turno, o PSDB estadual não esperava tamanha resistência. E parece que não podia dispor de um pior plantel político tático-estratégico.

Após discorrerem sobre a férrea necessidade de aprovar em regime de emergência os projetos de lei – com as políticas de austeridade que assombram o mundo do capital em todas as latitudes –, debaterem a debandada da base de apoio e as dificuldades óbvias de realizar uma votação parlamentar dentro de um Legislativo abertamente conflagrado, a solução foi sugerir o transporte com um carro de choque, aparentado ao caveirão carioca. O uso de vans, sem insulfilme fumê, fora descartado; posto que os grevistas divulgaram amplamente as fotos dos parlamentares pró-tratoraço. O pavor da multidão falou mais alto do que a cautela política. Todas declarações disponíveis sobre o assunto foram dadas sob cláusula de confidência. O pacto de silêncio, travado no interior do veículo, envolveu uma bastante sintomática exigência: não chamar o veículo por ‘camburão’. Mas a imagem foi – de fato – maior do que qualquer palavra.

“Achei meio deprimente entrar naquele ônibus; parece coisa de regime de exceção”, disse Luiz Carlos Martins, que foi com o carro do Chefe da Casa Civil Eduardo Sciarra, seu correligionário. Cobra Repórter conta que foi em seu carro particular, seguindo o ônibus. “Entendo que estavam pensando na nossa segurança. Mas me senti mal de entrar nesse ônibus”, afirmou Cobra Repórter. O blindado do Bope seguiu absolutamente superlotado, no trajeto, até o Centro Cívico da cidade. Numa experiência pouco usual para o habitus parlamentar e os poucos ossos do ofício deputados estaduais apertaram-se de pé, no interior do camburão, como trabalhadores, rumo à jornada de trabalho. A maior tensão teve início perto da sede, onde e quando se esparava algum conflito. A escolta da PM cortou grades do entorno para evitar a entrada principal. Tão-só dez metros do falso portão – aberto à força –  um cordão de isolamento da tropa de choque, e, coragem alguma.

Conta-se que alguns temiam pela própria vida, abjuravam da decisão de subir no carro e, sobretudo, perguntavam-se como seria a volta. Borraram-se de medo. Gritos histéricos e lancinantes misturavam-se a ordens diretas para que se removesse o manifestante, em deitaço de protesto, diante do veículo. O Secretario de Segurança foi – pessoalmente – aplicar-lhe uma chave de braço, ao que foi muito aplaudido e aclamado pelos parlamentares, já sem decoro de nenhum tipo. Deputados apavorados começaram a sair de dentro do veículo de cabeças baixas e com passo acelerado. A comparação agora se dá com as pessoas presas que, ao sair do camburão policial em direção às delegacias, não pensam duas vezes em proteger os rostos das câmeras e dos microfones da imprensa. A cena da descida do carro e da entrada na Assembléia Legislativa do Paraná (ALP) dificilmente deixará a memória coletiva de manifestantes. Não é todo dia que um tratoraço se transforma em camburaço. Ou, que um deputado sente pavor. 

…e do lado de cá

O dia 12 de fevereiro tinha tudo para repetir o episódio de 1988 – em agosto desse ano o então governador, Álvaro Dias, enfrentou trabalhadores em educação com bombas e cavalos em Curitiba –  dada a forma e o conteúdo do ingresso dos parlamentares no Legislativo do Paraná. A votação em fast-track dos dois projetos – 06/2015 e 60/2015 – estava anunciada para as 14h. Só não se sabia, ao certo, o seu local. Alguns informes difusos anunciavam que o Canal de Música da TV Educativa estaria cercado de policiais, assim como as ruas da zona, telegrafando que a votação poderia acontecer ali. A deliberação do Comando Geral de Greve foi bloquear todas as entradas da ALP – e, também, as do Tribunal de Justiça – para impedir que, novamente, os deputados usassem o espaço físico do refeitório do prédio. A indignação só fez crescer, e crescer. Transbordou.

Em um dos portões do estacionamento oficial do Tribunal de Justiça os manifestantes – com o consentimento dos vigias (e da própria PM) – revistavam o porta-malas de cada um dos veículos de magistrados que pudessem trazer algum deputado, escondido, para a votação.O que pouco a pouco se quedava claro era que as distrações desviavam o foco da atenção para o modo como os deputados entrariam na Assembleia. Em uma das esquinas o alambrado foi rompido por policiais e, sem muitos percalços, os deputados forçaram a entrada, sob escolta policial. A PM e o Bope fizeram um cerco, em torno das entrada e da entrada nova, clandestina, da ALP. No lugar escolhido havia poucos ativistas. Mas, em pouco tempo, a moral plebeia se reagruparia no local. Podia-se entrever a presença dos deputados. Vultos efêmeros se moviam nos arredores. A indumentária os denunciava. Então sprays de pimenta, e algumas bombas, foram atirados de dentro do camburão.

Em meio ao caos, a precipitação da chuva aumentou, houve confrontos eventuais, bombas de gás e incipiente corre-corre. Mas chuva, blindados, Bope e PM não foram o suficiente para que a multiudão perdesse terreno. A juventude e os servidores multiplicaram-se, agigantados. Houve desmaios, ferimentos e exaltação de ânimos. Em direção ao pátio de entrada e à rampa de acesso manifestantes avançaram palmo a palmo. Braços ao alto – nenhuma disposição em recuar – e a PM tentando refazer sua formação; atabalhoada, confusa. A PM, que ao longo da semana demonstrou respeito o bastante pela mobilização (PMs, pela lei, não podem aderir à greve), não davam quaisquer mostras de buscar a agressão deliberada. Ao fim e ao cabo, recuaram. Sprays, bombas e cacetetes não fizeram defeccionar uma massa convicta da justeza de sua reivindicação.

Quando o pátio e a rampa da ALP foram tomados veio novo informe: a suspensão temporária do pacotaço, até a segunda-feira depois do Carnaval, dia 23. O portal da APP-Sindicato na rede expôs o documento – firmado pelo Diretor-Geral da Casa Civil – no qual se atesta que os projetos foram retirados de votação e enviados para revisão. O caminhão sindical de som, em frente ao Palácio Iguaçu, deu a palavra a deputados oposicionistas e deputados governistas que romperam com o Quartel General de Richa. Superando em muito direções sindicais e políticas, majoritariamente do PT e da CUT, servidores estaduais, com os trabalhadores em educação e estudantes secundaristas à frente, deram uma resposta política e social impensável antes das jornadas de junho. O programa macroeconômico ao qual se enfrentam não é diferente daquele aplicado pelo Palácio do Planalto e/ou a Troika e o Banco Central Europeu. Os insurgentes da Praça Sintagma ateniense – e o tic-tac da madrilenha Puerta Del Sol – ganham eco e repercussão no país. Somos todos Paraná.

Alegria. Rebeldia. Vigília. Curitiba, capital do frio brasileiro, nunca foi tão quente. Os ônibus fretados que deixam a cidade rumando às cidades do Norte pioneiro, do Centro-Oeste e do Litoral do estado, viajam com trabalhadores e jovens exultantes e orgulhosos. Um rubicão foi cruzado. Sessões clandestinas do Parlamento, governadores em “autoexílio”, camburões com deputados e PMs recuando não são fenômenos cotidianos das lutas sociais e políticas nesse país. O ano novo começou antes do Carnaval.

Os de baixo já não admitem como antes admitiam.

O medo pode mudar de lado.

(*) Com informações de Gazeta do Povo, Mídia Ninja-PR, APP-Sindicato, CSP-Conlutas, ANEL, Blog do Esmael, camaradas de Curitiba e depoimentos do movimento de greve/ocupação/piquetes de servidores estaduais do estado do Paraná.

[1] O conjunto de projetos de lei com políticas de austeridade – calote salarial a 1/3 de férias, o assalto armado à previdência social de 200mil servidores, a destruição final da educação escolar, brutal (e invulgar) restrição orçamentária em Ciência e Tecnologia, ataque frontal à autonomia universitária, não-pagamentos e não-contratações – foi encaminhado ao Parlamento em regime de urgência (Comissão Geral) para aligeirar a sua respectiva aprovação sem debate prévio e comissões específicas. O “pacote de maldades” enfrentou-se, então, a uma greve geral do funcionalismo público do estado do Paraná, com trabalhadores em educação à vanguarda do movimento social como um todo.