Valerio Arcary
“Uma questão é a definição de classe e outra é a definição do fenômeno político. Primeiro vem a definição social. Se é um setor burocrático jamais poderá deixar de sê-lo(…) Nenhum setor social renuncia aos seus privilégios. Nenhum. Individualmente, sim. Mas como setor privilegiado, jamais (…) A direção do PT não vai para a revolução, porque reflete um grupo social específico, estranho à classe trabalhadora. Por isso (a análise) tem que começar pelo aspecto social, deixando de lado se é centrista ou não. O que reflete Lula socialmente? (É também) muito importante a discussão política, porque a política é toda uma esfera muito importante para nossa tática, mas não para nossa organização histórica estrutural. Para a caracterização histórica o fundamental é o social.” – Nahuel Moreno
Partidos podem ser analisados considerando muitas variáveis: (a) a composição social dos membros e da direção; (b) sua teoria e programa; (c) as formas de financiamento; (d) as relações internacionais; (e) as campanhas nas quais está engajado; (f) sua evolução de acordo com as pressões sociais a que estão submetidos, entre outros fatores.
Refletir sobre este processo convida a uma investigação sobre o que aconteceu com a esquerda quando se colocou o projeto do PT. Ela se dividiu, em primeiro lugar, como é amplamente conhecido, entre aqueles que apoiaram o PT e aqueles que o combateram (sobretudo, o PCB, PCdoB e MR-8).
Mas entre aqueles que apoiaram o projeto do PT, em especial, os trotskistas, que foram, apesar de divididos, os mais influentes na esquerda do PT trinta anos atrás, existiram, também, dois campos. Resumindo e, portanto, simplificando: aqueles que se engajaram apoiando, apesar de críticas, a direção que se articulou em torno a Lula, Jacó Bittar, Olívio Dutra. E aqueles que estiveram a favor do projeto do PT, mas não depositaram confiança na direção. A questão era complexa porque todos os trotskistas eram conhecidos como parte da esquerda do PT. Mas nem todas as organizações de esquerda que se integraram no PT eram oposição interna à direção hegemônica, articulada em torno de Lula.[1]
Este tema era muito polêmico, inflamável, porque na política frequentyemente as coisas não são como parecem. O PT, por exemplo, apoiava todas as mobilizações contra a ditadura militar até 1984, e era percebido pelos trabalhadores como um partido radical. Não fosse isso o bastante, a retórica dos líderes sindicais era incendiária. Porque o PT foi oposição ao governo Sarney, embora depois da eleição da Constituinte em 1986, tivesse se deslocado para o apoio ao regime. Em entrevista à Folha de S. Paulo em 29 de dezembro de 1985 Lula, por exemplo, declarava:
“Tenho dúvidas que o poder econômico e as classes dominantes permitirão que o PT chegue ao poder pelas eleições. Por isso prevendo uma reação armada para impedir o PT de assumir o governo, admito o uso de armas pela população para garantir o respeito pelo resultado das urnas; pela prática o PT é um partido marxista, embora preferisse que fosse um partido petista; não admito o uso da expressão ditadura do proletariado porque quando o proletariado atingir o poder estaremos tendo a democracia sendo levada às últimas consequências; não admito que a direita queira se manter pelo uso das armas, aí sou a favor da resistência armada.” [2]
Isso mesmo, a defesa da luta armada, ainda que somente em condições de defesa de um resultado eleitoral, a famosa fórmula kautskista. Mas, ainda assim, a defesa da luta armada. Não deve nos estranhar, portanto, que mesmo entre aqueles que se reivindicavam da tradição marxista revolucionária existissem enormes dúvidas, e até confusão sobre a natureza do PT. Explicar o novo é sempre um desafio maior que analisar o que já era. A Convergência Socialista,[3] esteve comprometida na polêmica com os dirigentes sindicais contra a proposta levantada em 1978/1979 por Fernando Henrique Cardoso e Almino Afonso, entre outros, que defendiam contra a fundação de um PT sem patrões, a fórmula de construção de um “partido popular”.
Durante o ano de 1979 a Convergência Socialista, organização pioneira na defesa do projeto do PT e que esteve à frente da unificação que resultou na fundação do PSTU em 1994, trabalhou com a caracterização da corrente sindicalista à frente do movimento pró-PT como uma corrente classista e, politicamente, centrista.[4] Nesse momento a CS hierarquizou como critério a análise das posições políticas de Lula e Olívio Dutra, entre outros, para chegar à conclusão que seria uma corrente classista.[5]
Somente após 1980, após a contribuição insubstituível de Nahuel Moreno – a passagem em epígrafe é uma ilustração das discussões – a CS corrigiu suas análises, e passou a definir os dirigentes sindicais, em primeiro lugar, a partir de uma caracterização social, como um deslocamento político à esquerda de uma fração da burocracia sindical. A burocracia sindical pode ser compreendida como uma casta privilegiada que usufrui de um modo de vida semelhante ou até superior ao das classes médias, pelo aparelhamento dos sindicatos. [6]
Outras posições foram defendidas pelos trotskistas que atuavam no PT. Os militantes da corrente que publicava o jornal O Trabalho, a OSI (Organização Socialista Internacionalista), evoluíram de uma posição hostil ao PT até 1979, para uma defesa de que o PT seria um Partido Operário Independente.[7]
Aqueles que divulgavam o jornal Em Tempo, a DS (Democracia Socialista) argumentavam que o PT era um partido revolucionário em construção e, depois nos anos noventa, um partido em disputa.[8] A história parece ter resolvido esta polêmica de maneira irrefutável. Conclusões que partiam da análise do discurso dos dirigentes do PT, sobretudo para consumo interno depois das eleições de 1988, no lugar de considerar a sua real inserção social, alimentaram ilusões perigosas. [9] O que prevaleceu na dinâmica histórica da transformação política do PT foi o peso esmagador da natureza social da sua direção.
Evidentemente, os que se colocaram a favor do PT, mas não da direção, preservaram melhor sua independência política-programática. Por duas razões. Primeiro, porque, como sempre, quem não sabe contra quem luta não pode vencer. Segundo, porque não alimentaram ilusões. Nem a ilusão de que a direção do PT tivesse compromisso com a defesa da independência política de classe. Menos ainda a ilusão de que uma estratégia revolucionária anticapitalista pudesse vir a ser abraçada pela direção lulista ou parte dela. Como ensina a sabedoria popular, a cabeça acompanha o chão que os pés escolhem percorrer.
[1] A operação historiográfica que diminue o papel das organizações, e agiganta o papel dos líderes sindicais e da Igreja na fundação do PT não é inocente. O surgimento do PT em 1980 era uma expressão da reorganização da esquerda e dos movimentos operários, estudantil e popular. Favoreceu um reagrupamento de organizações marxistas, todas com algo próximo a pelo menos mil ativistas, embora na maioria jovens estudantes, para um projeto político legal comum: CS (Convergência socialista), OSI (Organização Socialista Internacionalista), DS (Democracia Socialista), MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado), PRC (Partido Revolucionário Comunista), e núcleos que se preservaram da Ação Popular, da Ala Vermelha, do PCBR, entre outras menores. Acabaram se posicionando com o tempo no campo majoritário sob liderança de José Dirceu e Lula, com raras exceções.
[2] Toda a entrevista está disponível no acervo da Folha de S. Paulo em: http://bit.ly/1skIkgR. Consulta em 31/07/2014.
[3] Sobre a Convergência Socialista é possível encontrar um breve resumo da sua história no final dos anos setenta no artigo disponível em: http://www.pstu.org.br/node/20412 Consulta em 31 de Julho de 2014
[4] O centrismo é uma das mais perenes manifestações das tremendas pressões em que está imersa a representação independente dos trabalhadores. Trata-se de uma corrente política, curiosamente, pouco estudada no Brasil. Despreza-se, todavia, o fato de que o marxismo anterior à revolução russa, não se dividiu somente em duas, mas, essencialmente, em três grandes tendências: o centrismo é a terceira. Menos orgânica que as outras duas, o centrismo demonstrou, todavia, ter a mesma longevidade de seus adversários. Poderia ser afirmado que o estatuto de tendência histórica e orgânica do movimento operário seria impróprio para definir a corrente centrista. O centrismo não é senão uma das variantes do reformismo, ou, se preferimos, da adaptação às pressões socialmente hostis que se abatem sobre o movimento operário. Afinal, ele não manteve articulação internacional ou continuidade organizativa. Por outro lado, em inúmeros processos, o centrismo não foi além de uma ala esquerda do partido reformista com influência de massas.
[5] O artigo de Martin Hernandez Convergencia Socialista: Doce años de militancia en el PT. Correo Internacional, n. 63, 1993 resume de forma brilhante a evolução política das posições da CS.
[6] Um bom trabalho de reconstituição histórica destas polêmicas é Antonio Ozaí da Silva. As origens e ideologia do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Espaço Acadêmico, a. I, n. 3, 2001. de Antonio Ozaí da Silva, é. Disponível em: http://bit.ly/1njZ6qb. Consulta em 31/07/2014.
[7] As posições da corrente O Trabalho podem ser encontradas no site: http://otrabalho.org.br/quem-somos/ Consulta em 31/07/2014. Um estudo sobre a mudança das posições da OSI quando da fundação do PT pode ser encontrado na dissertação d Edmar Almeida de Macedo. Esquerda e política no brasil (1978-1980): a Organização Socialista Internacionalista e o surgimento do Partido dos Trabalhadores. Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná (Monografia de História), 2008. Disponível em: : http://bit.ly/UW8ABb
[8] A posição da DS: “Nos anos 80 dissemos que construir o Partido Revolucionário era construir o PT, que havia uma combinação positiva entre as tarefas de construção do PT e da DS. E esta estratégia comprovou-se válida. Nos anos 90 dissemos que o PT era um partido em disputa.” (Coordenação Nacional da Democracia Socialista. A Democracia Socialista e o PT. 2005. Disponível em: http://bit.ly/1zMYouk. Consulta em 31/07/2014.
[9] Sobre o tema, um texto interessante é João Machado. O que foi o “Programa Democrático e Popular” do PT? Disponível em: http://bit.ly/1khfT2n. Consulta em 31/07/2014.
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