José F. Silva
O racismo é uma forte ideologia que divide a classe trabalhadora. Somente as sociedades burguesas lograram produzir tal justificativa para sequestrar, escravizar, inferiorizar, violentar e matar um povo por conta de caracteres raciais.
Num país como o nosso, cuja população é superior a 190 milhões de habitantes, mais da metade da população é negra1. Aos negros, historicamente, foram legadas as piores terras, os piores trabalhos e as piores condições de vida.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 11,4 milhões de brasileiros (cerca de 6% da população) vivem em aglomerados subnormais2 (conjunto de moradias precárias). Vinte regiões metropolitanas concentram 88,6% dos domicílios desses aglomerados, e quase a metade (49,8%) desses domicílios estão concentrados na região sudeste. Considerando o critério de cor, vemos que a grande maioria dessa população é composta por pretos e pardos, totalizando 7,8 milhões habitantes; mais do que o dobro de brancos residentes nesses aglomerados (3,5 milhões).
Do quilombo à favela3, os negros (cuja escravidão fora fundamental para o desenvolvimento do capitalismo mundial4) compõem a maior parte dos trabalhadores brasileiros, e são a maioria do precariado verde e amarelo.
O sociólogo Ruy Braga tem o mérito de ressignificar o conceito de precariado ao defini-lo como um trabalhador que compõe a superpopulação relativa (excluído o lumpemproletariado e o pauperismo). Assim, retoma as análises de Marx feitas no livro 1 d’O Capital sobre a acumulação capitalista e seus aspectos demográficos inerentes. A acumulação capitalista sempre produz uma população trabalhadora supérflua relativa, uma população excedente que é, ao mesmo tempo, produto necessário e alavanca da acumulação capitalista. Na verdade, essa população excedente é condição sine qua non do modo de produção capitalista. Em outras palavras, é material humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital.
Entender o precariado como componente da superpopulação relativa é muito importante, pois “reconduz” o proletariado para o seio da exploração capitalista, de onde só teoricamente ele já não fazia parte. Ou seja, não se trata de uma nova classe, mas sim de um setor da classe trabalhadora que sempre esteve presente nas sociedades capitalistas e, sua expansão, expressa o retrocesso que o capitalismo impõe à humanidade.
Em termos raciais, isso é bem relevante. Para muitos teóricos, a história do trabalho no Brasil só começou com a vinda de imigrantes europeus para cá, o que significava, decisivamente, a entrada do Brasil no capitalismo. Mesmo entre setores da esquerda, o debate racial foi secundarizado e subordinado à supressão do capitalismo pelo socialismo, e quem mais expressou esses equívocos foram os partidos orientados pelo estalinismo.
Talvez a dificuldade em compreender a escravidão como constitutiva da formação do capitalismo mundial e a precarização como algo inerente ao seu desenvolvimento sejam processos teoricamente – e, por que não, ideologicamente?! – filiados. No Brasil, talvez isso passe pelo componente racial.
No Brasil, as piores condições de trabalho e os piores rendimentos são das negras e dos negros. Um recente estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), O Negro no trabalho, dedicado à situação do negro no mercado de trabalho afirma que:
“Divisando presença com trabalhadores não negros, o esforço produtivo dos negros é visivelmente menos valorizado. Um exame das informações regionais relativas às remunerações auferidas por hora e por setor de atividade por ocupados dos dois grupos de cor desenham um quadro de contundente e monótona desigualdade. Um padrão apenas amenizado quando os patamares de ganho são muito baixos, caso da Indústria de Transformação na Região Metropolitana de Fortaleza, onde negros recebiam por hora, em média, R$ 4,68, enquanto não negros, R$ 5,66” (2013, p. 07, negrito nosso).
Em praticamente todos os setores da atividade econômica, essa diferença de rendimentos entre negros e não negros existe, pendendo positivamente para os não negros, conforme tabela abaixo.
Rendimento Médio Real por hora (1) dos Ocupados (2) no Trabalho Principal, por Cor em Setor/Atividade Econômica.
Regiões Metropolitanas (1) – Biênio 2011 – 2012 (em R$ de junho de 2013)
INDÚSTRIA |
CONSTRUÇÃO
|
|||||
Negros |
Não negros |
Negros/Não negros |
Negros |
Não negros |
Negros/Não negros |
|
Belo Horizonte |
7,40 |
9,70 |
76,3 |
7,68 |
10,28 |
74,7 |
Distrito Federal |
8,01 |
10,24 |
78,2 |
8,77 |
12,49 |
70,2 |
Fortaleza |
4,68 |
5,66 |
82,7 |
5,20 |
6,91 |
75,3 |
Porto Alegre |
6,61 |
9,29 |
71,2 |
7,10 |
8,81 |
80,6 |
Recife |
5,70 |
8,49 |
67,1 |
5,10 |
7,26 |
70,2 |
Salvador |
7,10 |
10,50 |
67,6 |
5,61 |
(9) |
(9) |
São Paulo |
7,49 |
12,22 |
61,3 |
7,40 |
9,82 |
75,4 |
INDÚSTRIA |
CONSTRUÇÃO
|
|||||
Negros |
Não negros |
Negros/Não negros |
Negros |
Não negros |
Negros/Não negros |
|
Belo Horizonte |
6,44 |
8,12 |
79,3 |
8,23 |
12,25 |
67,2 |
Distrito Federal |
6,66 |
9,01 |
73,9 |
13,18 |
20,60 |
64,0 |
Fortaleza |
4,57 |
5,76 |
79,3 |
6,17 |
8,61 |
71,7 |
Porto Alegre |
5,50 |
7,27 |
75,7 |
6,80 |
10,53 |
64,6 |
Recife |
4,10 |
5,61 |
73,1 |
5,65 |
8,93 |
63,3 |
Salvador |
4,73 |
7,19 |
65,8 |
6,11 |
10,67 |
57,3 |
São Paulo |
5,79 |
8,59 |
67,4 |
7,27 |
12,12 |
60,0 |
Tabela Adaptada de DIEESE (2013, p. 08).
Como observável, em todas as 7 regiões metropolitanas os negros ganham menos do que os não negros. O setor produtivo, onde a proporção de não negros é maior do que a de negros, e cujos rendimentos médios são elevados, apresentam as maiores desigualdades. É importante destacar também que os negros também se concentram nas ocupações de menor prestígio e valorização. Nas sete regiões metropolitanas analisadas no mesmo estudo, as ocupações de faxineiros, lixeiros, serventes, camareiros e empregados domésticos nos serviços são desempenhadas majoritariamente por negros. Em cidades como Recife e Salvador, a proporção do desempenho dessas ocupações entre negros e não negros é de, aproximadamente, 20/10 e 20/1.
Essas breves considerações são importantes para que compreendamos os sentidos da vitoriosa greve dos garis na cidade do Rio de Janeiro.
As sociedades capitalistas se erguem sobre a exploração do trabalho alheio e não cessam de ocultar a sua natureza exploratória. Se na sua trajetória progressista, a burguesia condenou o imobilismo e o parasitismo das sociedades estamentais e aristocráticas, ela construiu uma sociedade injusta e cuja mobilidade às vezes se encontra na razão de uma aposta premiada da loteria. Curiosamente, o imobilismo é cada vez mais a regra social, de sorte que, cotidianamente – de diversas maneiras – aprendemos o “lugar social” de cada um. Imbuído dessa certeza de saber o “lugar” de cada um, no final de 2009, o jornalista Bóris Casoy fez troça de dois garis paulistas que desejavam a todos brasileiros um feliz 2010. Por conta de um vazamento de áudio ouvimos o apresentador paladino da moral dizer em rede nacional: “Que m…, dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras. Dois lixeiros, o mais baixo da escala do trabalho”.
Mês passado, os garis do ABC paulista, dobraram os patrões, sindicatos pelegos e a grande mídia e extraíram conquistas: após oito dias de greve, seiscentos reais conquistaram 10% de reajuste, abono de R$ 300, pagamento dos dias parados (cerca de R$ 600,00) e estabilidade de 6 meses. Uma vitória que coloca a categoria num patamar superior de organização e confiança em suas próprias forças.
Atualmente, o Rio de Janeiro tem sido o palco de algumas das maiores lutas sociais no país. A aliança entre o PMDB e o PT, na cidade e no Estado, demonstra o compromisso político com o capital, expresso na reestruturação do espaço urbano, na dura repressão aos ativistas e manifestantes, na repressão e inflexibilidade em negociar com os trabalhadores e nas diversas remoções forçadas.
Entretanto, em março deste ano, os garis do Rio de Janeiro se insurgiram com uma força e determinação contagiantes. Sabedores de sua força e contra quem lutavam mais imediatamente contornaram o sindicato (SEEACMRJ) ligado à central sindical pelega CGTB e se enfrentaram com a prefeitura, com a empresa (COMLURB) e com o aparato repressivo do Estado.
O prefeito e a grande mídia trataram de, rapidamente, desqualificar os grevistas, inclusive, ameaçando 300 garis de demissão. Contudo, o grande apoio popular e a organização da categoria foram fundamentais para conquistarem um acordo que reajusta o piso salarial de R$ 803,00 para R$ 1.100,00, o tíquete de refeição para R$ 20,00 e suspende as ameaças de demissão.
Poucas categorias expressam de forma tão forte o racismo institucionalizado deste país capitalista como a dos garis. Afinal, numa sociedade produtora de mercadorias, cabe aos negros, majoritariamente, a coleta daquelas que são diariamente descartadas, assim como a coleta do lixo que o conjunto da sociedade produz e a limpeza dos espaços públicos. A respeito da cor laranja do uniforme dos garis5 é fundamental lembrarmos que essa mesma cor serviu para alcunhar de tigres os nossos antepassados negros escravizados que cruzavam as ruas do Rio de Janeiro com baldes de dejetos humanos para despejarem nas fossas a céu aberto e no mar da cidade. Os dejetos dos senhores, por vezes, escorriam dos baldes trazidos em cima das cabeças dos escravos e corriam pelos corpos negros, formando listras amarelas e laranjas que, combinadas com o negro da pele desses seres humanos, “aludiam” a tigres.
Mas, nenhum mal que é feito a esta classe é um mal em particular, mas sim o mal em geral. Seu sofrimento universal exige uma reparação histórica da mesma magnitude6.
Curiosamente, o conflito de raça e classe fora anunciado, anteriormente, e em rede mundial. No dia 12 de agosto de 2012, na cerimônia de encerramento das Olimpíadas de Londres, deu-se a apresentação artística da próxima cidade-sede das Olimpíadas, o Rio de Janeiro.
O palco estava em pura penumbra. De repente, algumas luzes se cruzam e iluminam uma figura no centro do palco. Era o gari Renato Sorriso. Com seu uniforme laranja e uma vassoura na mão, Renato movia-se lentamente, na cadência de um samba que ainda tocava timidamente. Sua figura negra e seu sorriso característico predominavam no palco. Mas “do nada” surge um homem que, em disparada, vai ao encontro do gari. Era um homem branco, de grande porte e vestido de terno e gravata que surpreendeu o gari cutucando-lhe as costas. Rispidamente, pedia para o gari sair.
Inacreditável: a apresentação do Brasil para o mundo dava-se numa interdição a um negro trabalhador!
O homem-capital pede rispidamente que o gari saia dali. O gari Sorriso, se aproxima dele, e começa a ganhá-lo pelo gingado; ele dança, sinuosamente, para o homem-interventor que começa a se “desarmar”. Logo, ambos, negro e branco, dominado e dominante, trabalhador e capitalista, caem no samba. Eis o mito da democracia racial a serviço da conciliação de classes!
De acordo com os responsáveis pela parte artística dessa apresentação, Daniela Thomas, Cao Hamburger e Abel Gomes, a ideia era desmistificar os clichês acerca do país: “Queremos apresentar um país multicultural e multiétnico. Há séculos que temos misturado e abraçado. E isto vai ser apresentado em oito minutos, o que é um desafio – afirmou Daniela (EXTRA, 2014).
As noções do multiculturalismo e o mito da democracia racial tentam, a todo custo, apagar a violência originária da formação social brasileira e a violência cotidiana imposta pelo capital. A ideia de que os negros seduzem e vergam os dominadores pela corporeidade – contornando as adversidades com sua ginga e/ou sensualidade – esconde, no fundo, processos brutais de invisibilização de suas lutas. Imputa noções de conciliação de classe e raça, onde correram muitas lágrimas e muito sangue.
A greve dos garis do Rio de Janeiro nos legou grandes lições e, talvez, a principal seja essa: só a luta muda a vida! Ao melhor estilo raça e classe, os garis apontaram o caminho e inspiraram a juventude e muitos outros trabalhadores a confiarem em sua força, mostrando que é preciso lutar e que é possível vencer. Nesses momentos, não só a consciência dá saltos, mas a esperança também.
Referências bibliográficas
BRAGA, Ruy. A cor mais visível. Blog Convergência. Disponível em: <<http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2173>>. Acesso em: 13 abr. 2014.
BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, USP, 2012.
CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
DIEESE. O Negro no trabalho.Brasília: MTE, DIEESE, 2013.
EXTRA. Um Brasil ‘multicultural e multiétnico’ no encerramento das Olimpíadas de Londres. Disponível em: <<http://extra.globo.com/esporte/londres-2012/um-brasil-multicultural-multietnico-no-encerramento-das-olimpiadas-de-londres-5754570.html#ixzz2yjNpLBwi>>. Acesso em: 12 abr. 2014.
IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2010: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.São Paulo: Boitempo, 2005.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Notas:
1 A dificuldade de mensurar a população quando se refere a critérios como cor ou raça talvez forneça-nos uma representação subestimada do tamanho da população negra no país. Vale destacar, que a identificação como negro é um processo eivado de contradições. De tal sorte que, comumente, se compreende a negritude apenas pelo tom da cor da pele, desconsiderando uma série de elementos, tais como o pertencimento cultural e a ancestralidade. A definição de cor ou raça parda é expressão de um discurso de miscigenação que, ao invés de combater o racismo, tentou demonstrar que em nosso país, a miscigenação era o resultado do predomínio da democracia entre as raças, e não do racismo.
2 Aglomerado subnormal “é o conjunto constituído por 51 ou mais unidades habitacionais caracterizadas por ausência de título de propriedade e pelo menos uma das características abaixo: – irregularidade das vias de circulação e do tamanho e forma dos lotes e/ou – carência de serviços públicos essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública)”.
3 Ver Do quilombo à favela: a produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro, de Andrelino Campos (2005).
4 Ver Capitalismo e escravidão, de Eric Williams (2012).
5 De forma perspicaz, Braga assinala uma “curiosa contradição: por razões de segurança, os garis vestem-se com a cor mais visível. Ainda assim, raramente eram notados. Diz-se que a cor laranja é associada à euforia. Além disso, no espectro luminoso, ela está entre o amarelo, cor associada à apatia, e o vermelho, a cor sanguínea associada à revolução” (2014).
6 Expressão utilizada por Marx na Crítica da filosofia do Direito de Hegel, para falar do proletariado: “de uma esfera que possua caráter universal porque seu sofrimento são universais e não exige uma reparação particular pois o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral” (2005, p. 156).
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