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TEORIA

Ativista egípcia fala sobre movimento sindical de seu país

Fatima Ramadan e Aldo Cordeiro Sauda


A conferência abaixo foi concedida pela dirigente sindical egípcia Fatima Ramadan, membra do comitê executivo da Federação de Sindicatos Independentes do Egito (EFITU). Ela foi realizada no dia 8 de fevereiro de 2014, transmitida a partir do Cairo, para uma atividade organizada pela Rede de Solidariedade com Oriente Médio e Norte da África em Nova York.

Desde sua palestra, dois importantes fatos políticos ocorreram no Egito, a renúncia do gabinete do primeiro ministro Hazem Biblawi e uma nova onda nacional de greves. A renúncia de Biblawi, um economista independente, e sua substituição por Ibrahim Mehleb, ex-dirigente do partido de Hosni Mubarak, foi visto com uma manobra do ministro da defesa, o General Abdel Fatah Al-Sisi, para abrir o caminho de sua eleição à presidência do país, que ocorrerá dia 17 de julho. Junto com Biblawi, Kamal Abu Aita, presidente da EFITU, duramente criticado na palestra abaixo por Fatima Ramadan, renunciou ao cargo de ministro do trabalho. O mesmo foi substituído por um antigo dirigente da federação sindical historicamente atrelada ao regime.

A onda grevista, iniciada em 18 de fevereiro na fábrica tecelã de Mahallah e que atingiu boa parte dos serviços públicos do país, apesar de menor em tamanho e escala que as ondas grevistas de 2011, 2012 e 2013, foi de importância crucial à nova etapa da revolução egípcia. Assim como apontados por Fatima, elas tiveram enquanto eixo central a luta pela aplicação da lei do salário mínimo.

Segue abaixo, na integra, a palestra de Fatima Ramadan.

Boa Tarde! Gostaria de agradecer o convite dos camaradas da Rede de Solidariedade com Oriente Médio e Norte da África, de Nova York, pelo convite para falar com vocês via Skype. Mais que isto, queria também agradecer a vocês pela solidariedade com as revoluções árabes. Nesta minha fala, quero expor a situação do movimento operário dentro do contexto da revolução egípcia, especificamente o período após o 30 de Junho de 2013.

O movimento operário não existe em separado da revolução egípcia. Quando a revolução se encontra em uma conjuntura crítica, frente um avanço da contrarrevolução e da capacidade dos reacionários de mobilizar pessoas baseados na histeria, é inevitável que isto se reflita no movimento dos trabalhadores.

Na verdade, o golpe do 30 de Julho, ou, para ser mais correta, o golpe do 3 de Junho, afetou negativamente o movimento dos trabalhadores. Sob o slogan “nenhuma voz será mais alta que a de nossa batalha” e no contexto da chamada “guerra contra o terrorismo” [que é a forma com que o governo egípcio descreve a repressão a Irmandade Muçulmana], as demandas populares e sociais não são mais toleradas.

Mesmo sem a presença de estatísticas solidas, está claro que a quantidade de protestos sociais desde 30 de Junho caiu significativamente. Trabalhadores, cujas demandas não são uma questão de ‘vida ou morte”, estão inclinados a posterga-las, esperando que as coisas melhorem após a reintrodução da estabilidade, como tem sido dito repetidamente. Existem, porém, trabalhadores para quem a paciência é um luxo impossível: principalmente aqueles que estão sofrendo demissões ou não recebem seus salários a meses (em alguns casos a mais de dois anos) como em Samanud, Beheira e outros locais.

Tais trabalhadores tem travado batalhas defensivas. Eles tem reagido a ataques dos patrões. Tentam manter os ganhos das lutas dos últimos anos. Portanto as greves e ocupações que testemunhamos após o 30 de junho tem como objetivo restaurar direitos ou ganhos passados. Isto inclui disputas sobre divisão de lucros, como na Industria Metalúrgica de Helwan, aonde ocorreu uma greve relativamente vitoriosa. Os patrões, que tem tido enormes lucros, estão tentando desfazer os ganhos dos operários. Eles se sentem fortalecidos pelo novo clima político, e por isto, se lançam contra os trabalhadores. Dizem explicitamente aos operários “esta é a nossa era”.

A era pos-30 de Junho vem se apresentando como um período de “acerto de contas” com o movimento operário em geral. Temos, por exemplo, visto casos em que os trabalhadores tem sido punidos por greves realizadas meses atrás! Na refinaria de açúcar de propriedade de Naguib Saweiris, trabalhadores firam demitidos em Agosto por dirigir uma greve que ocorreu em Abril. Este não é um caso único, tal fato tem se repetido em muitos locais de trabalho.

Notamos também uma clara mudança no comportamento do governo após o 30 de Junho. Mesmo se reivindicando o “governo da revolução”, ele jamais se alinha aos trabalhadores em suas disputas, mesmo quando as demandas se resumem a aplicação da lei. Um importante exemplo disto tem sido a postura do Ministério do Trabalho.

Além de se abster de seu dever legal junto aos operários, o governo também tem apresentado políticas hostis aos interesses dos trabalhadores e seu movimento. Um exemplo claro é a nova lei do salário mínimo, apresentado como uma vitória para a revolução e a causa da justiça social. Se olharmos de forma mais atenta, veremos que isto é uma mentira. Primeiramente porquê de acordo com o próprio governo a lei apenas se aplica a funcionários público, porém, dado as restrições e exceções, apenas dois dos seis milhões de funcionários públicos no país serão beneficiados.

Já o setor privado, que emprega mais de dois terços dos 26 milhões de trabalhadores egípcios, não terão obrigação legal alguma frente ao salário mínimo. Os patrões estão exigindo maiores concessões do governo para que não tenham que respeitar a proposta de piso salarial, redução no peso de suas contribuições a seguridade social e que se mude a legislação para que possam demitir trabalhadores com maior facilidade.

Muito nos decepciona saber que o atual ministro do trabalho, Kamal Abu Eita, ex-presidente da Federação Egípcia de Sindicatos Independentes (EFITU), está defendendo uma nova legislação que é claramente pior que a que existe hoje.

Ao mesmo tempo, o governo se abstém na aplicação da Lei de Liberdade Sindical. Ao invés disto, tem mantido a legislação antigrevista elaborada pela junta militar em março de 2011, e restringido ainda mais o direito à livre expressão, por via da nova legislação anti-manifestação.

Tem-se demitido trabalhadores com uma frequência maior que antes. Outras formas de opressão também tem aumentado. Os metalúrgicos de Suez, cuja greve havia se iniciado antes do 30 de Junho, foram atacados por soldados do exército. Petroleiros grevistas na cidade de Alexandria testemunharam seu empregador utilizar empresas particulares de segurança para esmagar a greve, utilizado cães policiais [algo culturalmente sensível em países islâmicos]. A despeito do apelo dos trabalhadores, o governo não interferiu no protesto.

Também testemunhamos uma resistência geral para atender demandas trabalhistas. Consequência disto são que as greves tendem a ser mais longas e duras. Na greve petroleira de Alexandria, que mencionei anteriormente, trabalhadores estão reivindicando apenas que se pague a divisão de lucros, como estabelecido pela legislação, sem conseguir minimamente aplica-la.

Quando a constituição aprovada recentemente. Apesar de toda a propaganda que a cerca, da perspectiva da classe trabalhadora, ela é ainda pior que a constituição de Mursi. A carta magna anterior estipulava representação da classe operária nas duas câmaras do parlamento; ela também incluía um conselho econômico e social, como um fórum geral de negociações entre trabalhadores e patrões. Ambas as estipulações foram eliminadas.

Isto não impediu que Abu Eita deixasse de chamar os trabalhadores a votar pelo “sim”, utilizado todos os mecanismos do aparato estatal para isto. Mais uma vez, o principal argumento era que “nenhuma voz deverá ser mais alta que a da batalha” e que estamos em meio a uma “guerra contra o terrorismo”, em que qualquer dissidência deve ser proibida. Segundo o raciocínio, primeiro restauramos a estabilidade, depois vemos o que pode ser feito.

Sindicatos independentes, um dos principais frutos da revolução egípcia, vem sendo marginalizados. Há tentativas de distorce-los, manipula-los, torna-los em novas versões dos velhos sindicatos governistas e da federação burocratizada. A pluralidade sindical tem perdido qualquer conteúdo real.

Em um protesto operário recente em Port Said, dirigido por um sindicato independente, os empregadores disseram explicitamente aos trabalhadores; “estamos dispostos a negociar com vocês e ouvir suas demandas, desde que vocês rompam com o sindicato independente e parem de se relacionar com ele”. Os patrões estão cientes que o sindicalismo independente, devido a sua forca militante, tem estabelecido raízes junto aos trabalhadores. Por isto, tem se esforçado ao máximo para marginaliza-los.

Como havia mencionado antes, a revolução egípcia em geral se encontra em uma conjuntura critica. Consequentemente, não há dúvidas que os trabalhadores e seu movimento, especificamente o sindicalismo independente, tem enfrentado um momento difícil.

Ser ou não ser é uma questão que a revolução egípcia e o movimento operário em geral tem enfrentado. Os cenários se mantem em aberto.

Existe a possibilidade de derrota, porém, esta possibilidade não durará muito. Isto pode ocorrer através de maiores divisões no movimento sindical ou através da cooptação de sindicalistas pelo regime e os patrões. Outra possibilidade, muito mais positiva, é que os trabalhadores, que hoje acumularam uma experiência valiosa a partir de suas lutas, reconstruam seus sindicatos e federações, para que as mesmas os representem melhor. Há tentativas de organizar atividades, realizar assembleias gerais, aprender das batalhas passadas e suas experiências. Não há garantia de sucesso, mais a batalha continua.

Na EFITU, a corrente militante que convocava os sindicatos a travarem lutas pela base em defesa dos interesses dos trabalhadores e liga-los a luta revolucionaria, tem sempre sido minoritária. Mais nos momentos de acirramento da revolução, esta corrente impunha sua voz sobre o todo da entidade. Este cenário hoje mudou. A mesma realidade se repete em outras estruturas organizacionais do movimento operário. Está claro que há problemas estruturais significativos em todas as tentativas de construir um sindicalismo independente e militante no Egito de hoje. Nossa experiência nas ultimas batalhas, porém, oferecem uma oportunidade para afinar nossas experiências e fortalecer as tendências genuinamente comprometidas com as lutas e os interesses da classe trabalhadora.

Apesar destas dificuldades, existe possibilidade real de avançarmos. Ela exigira trabalho duro e esforço continuo. Ela também exigirá solidariedade e troca de experiências.

Estamos em um momento em que federações independentes como a EFITU, aonde milito, estão assumindo posições negativas e reacionárias na sua relação com seus membros. Tentativas de criticar o governo ou expressar solidariedade com os trabalhadores estão sendo silenciadas dentro do próprio secretariado executivo do EFITU.

Uma razão para sermos otimistas é que o sentimento na base é muito diferente. Há um aumento na onda de greves que tem enquanto reivindicação a questão do salário mínimo. O movimento tem sido particularmente forte entre funcionários públicos que estão abandonando suas ilusões na propaganda governamental. Há sinais que o setor privado seguira a mesma linha. O movimento continuará. Mas as pressões violentas também.

Por fim, o destino do movimento operário está intimamente ligado ao conjunto da luta revolucionário. Quanto maior e mais forte o movimento, maior a quantidade de trabalhadores dispostos a expressar suas demandas e se engajar em lutas e reivindicações mais radicais. Ao mesmo tempo, quanto mais forte e saudável é o movimento dos trabalhadores, mais a luta crescerá e será capaz de se aprofundar.

Acredito que seremos capazes de resistir a esta difícil conjuntura. Enfrentamos hoje acusações de traição por continuarmos nossa luta por democracia e justiça social. Mas aqueles que hoje, sob influência da propaganda pro-Sisi, chamam por estabilidade e para que a “roda da produção” continue a girar, vão mais cedo ou mais tarde descobrir a quantidade de manipulações aos quais estão expostos. Descobrirão que o atual regime é baseado na repressão das massas, e expressa o interesse dos ricos e poderosos da sociedade.

A luta continua! Muito Obrigado!