Anti-choque de democracia: um debate com o Choque de Democracia de Marcos Nobre

Euclides de Agrela

A leitura do Choque de Democracia – Razões da Revolta de Marcos Nobre, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (IFCH-Unicamp), publicado na forma de e-book pela Cia das Letras, instigou-me a escrever o presente ensaio polêmico.

Diferente de Marcos Nobre, concluí este ensaio já com certo distanciamento do calor dos acontecimentos, vindo a publicá-lo somente quatro meses depois das jornadas de junho.

Meu interesse foi debater, de um ponto de vista marxista, com as questões fundamentais que dão corpo ao texto de Nobre, portanto, com seus pontos fortes: o enquadramento da democracia capitalista brasileira sob a forma do pemedebismo; a superação de um suposto nacional-desenvolvimentismo por um pretenso social-desenvolvimentismo; e o Choque de Democracia como estratégia-programa. Tratou-se de uma empreitada nada simples de solucionar. Mas resolvi colocar-me diante do desafio.

Uma última advertência. O texto que segue possui o Choque de Democracia como ponto de partida para a polêmica, mas não se limita a um debate restrito a Marcos Nobre. Em geral, proponho um debate a todos aqueles que defendem a estratégia-programa da chamada democracia real, participativa ou direta nos marcos do Estado capitalista, muitos dos quais sem a sofisticação, a inventividade e a erudição do autor de Choque de Democracia.

1984-1992-2013

Limitadas até a primeira quinzena a atos de vanguarda pela redução das passagens e pelo passe livre em São Paulo, depois da brutal repressão policial à manifestação que, no dia 13, reuniu pouco mais de cinco mil pessoas no centro da cidade, as jornadas de junho de 2013 tomaram proporções de massas e ganharam caráter nacional. No dia 17 de junho foram às ruas em todo o país 250 mil pessoas. Do dia 17 ao dia 20, passeatas de massas seguiram ocorrendo nacionalmente. Somente no dia 20 estima-se que as manifestações atingiram 1,5 milhão de pessoas, indo além das capitais, chegando às cidades das regiões metropolitanas e, inclusive, atingindo cidades médias do interior em vários estados. É uma unanimidade até mesmo para observadores menos informados que esta foi a maior ascensão de massas dos últimos 21 anos, comparáveis apenas ao Fora Collor, de 1992, e as Diretas Já, de 1984. Trata-se também da primeira onda de manifestações massivas enfrentada pelo PT, desde que chegou à presidência da República em 2003.

Marcos Nobre, ao comparar 2013 com 1984 e 1992 afirma:

(…) ao contrário de 1984 e de 1992, nenhum tipo de narrativa unificada se colocou de saída como modelo para a formação de um movimento. Não é de um movimento que se trata, mas de vários”.

É verdade que a luta pelo fim da ditadura e pela conquista da democracia política em 1984 tinha um eixo ordenador na palavra de ordem de “Diretas Já” e que a ideia de pôr abaixo o governo federal em 1992 teve no “Fora Collor” o polo aglutinador das manifestações de massas. Também é verdade que as reivindicações imediatas das jornadas de junho de 2013 – redução das passagens, passe livre nos ônibus, mais verbas para a saúde e educação – não tiveram um eixo ordenador contra o governo federal, como as Diretas Já e o Fora Collor.

Em junho de 2013, as massas foram às ruas em todo o país motivadas imediatamente contra a brutal repressão policial às manifestações do movimento pela redução das passagens de ônibus e pelo passe livre em São Paulo, bem como contra os absurdos gastos públicos com os estádios de futebol e a infraestrutura da Copa do Mundo e as péssimas condições da saúde e educação públicas. Não custa lembrar que nos últimos três anos a inflação tem batido o teto da meta estipulado pelo Banco Central em 6,5 % ao ano, sendo que a inflação dos alimentos e serviços, como tarifas de ônibus, superou e muito este mesmo teto da média dos preços. Com base no anterior, as reivindicações das massas partiram de demandas de bem estar social, particularmente no que diz respeito ao transporte, saúde e educação públicos, estatais, gratuitos e de qualidade.

Também não é preciso esquecê-lo que ganharam as ruas denúncias contra projetos de lei reacionários em pauta no Congresso Nacional, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, que retirava poder de investigação do Ministério Público, particularmente sobre os poderes Executivo e Legislativo, e o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 234, apelidado de Cura Gay, e reivindicações mais abstratas de combate à corrupção e reforma política.

A base social das jornadas de junho: nova classe média?

A base social das jornadas de junho por seu caráter massivo, obviamente, é bastante heterogenia. No entanto, há que destacar como majoritária a participação de uma jovem geração de trabalhadores assalariados, muitos deles ainda estudantes, precarizados ou mesmo desempregados. A base social fundamental das jornadas de julho não se tratava da classe média ou da pequena-burguesia, por mais que esta tivesse também ido às ruas como parte deste movimento de massas de todo o povo.

Marcos Nobre diz o que a base social das jornadas de junho não é. No entanto, o faz ligeiramente e não polemiza com os critérios absurdos dos governos de Lula e Dilma para definir a classe média:

(…) não é classe média, no sentido tradicional do termo. As manifestações só podem ser interpretadas como de classe média se forem ignoradas as irrupções nas periferias das grandes cidades, se não se prestar atenção para a real dimensão das revoltas, se a atenção ficar concentrada apenas em regiões ricas de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Fortaleza, Belo Horizonte ou Curitiba. É impressionante a quantidade de irrupções nas periferias que se dirigem contra os baixos salários, contra a péssima qualidade dos empregos, em um país que se encontra em situação próxima do pleno emprego”.

A rigor, a classe média trata-se, por um lado, dos pequenos proprietários urbanos e rurais, ou seja, da pequena-burguesia proprietária, dona de uma fabriqueta, loja, restaurante, açougue, mercadinho, etc. Por outro lado, também fazem parte da classe média profissionais altamente qualificados que possuem uma faixa salarial, nível e modo de vida muito acima do proletariado e muito mais próximos da burguesia. São executivos, administradores, médicos, engenheiros, advogados, etc. Não custa lembrar que, atualmente, mesmo estes setores assalariados da classe média vivem um processo de proletarização, de achatamento de salários e nível de vida que os aproxima cada vez mais do proletariado.

O problema é que o conceito de classe média vem sendo rebaixado, pelos governos de Lula e Dilma, como instrumento de propaganda de uma suposta ascensão social das massas trabalhadoras ocorrida durante os últimos dez anos.

Para desmistificar esta ideologia, para além do debate conceitual, basta uma comparação aritmética simples. A faixa de renda familiar que corresponderia à chamada nova classe média ou classe “C” é de R$1.734 a R$7.475, segundo dados de 2011 da Fundação Getúlio Vagas (FGV). A classe “D” teria renda familiar de R$1.085 a R$1.734. A classe “E”, de R$00 a de R$1.085. Já a classe “B”, de R$7.475 a R$9.745. E, finalmente, a classe “A” teria renda familiar acima de R$9.745.

Já segundo o IBGE, que também divide as categorias das classes sociais de acordo com a renda familiar mensal, a classe “C” é composta de famílias com renda entre R$1.200 e R$5.174. Na classe “D” encontram-se as famílias que recebem entre R$751 e R$1.200 por mês. A classe “E” é composta pelas famílias com renda de até R$751. Já a classe “B” inclui pessoas com renda familiar entre R$5.174 e R$6.745. Qualquer família que ganhe mais do que isso por mês é considerada classe “A” pelo IBGE.

Questionamos este critério para definir as classes a partir da renda familiar ou renda per capita por dois motivos. O primeiro questionamento é que, este critério, ao colocar um sinal de igual entre salário e renda, é eminentemente quantitativo. É preciso, portanto, distinguir qualitativamente salário de renda. Salário é o pagamento recebido pelo trabalhador em troca da venda da sua força de trabalho. Já renda pode significar uma miríade de coisas: produto anual ou mensal de propriedades rurais ou urbanas, de bens móveis ou imóveis, de benefícios, capitais em giro, inscrições, pensões etc.

O segundo questionamento, que decorre do primeiro é que, se considerarmos a definição das classes sociais à luz do método marxista, a definição de uma classe se dá a partir do lugar ocupado por ela nas relações de produção, ou seja, se ela é proprietária dos meios de produção e distribuição de riquezas ou se ela é apenas dona da sua força de trabalho, a qual troca por um salário. Ainda assim, os critérios da FGV e do IBGE são razoáveis para uma concepção meramente quantitativa, não marxista, da definição das classes sociais.

No entanto, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) do governo federal divulgou dados ainda mais incríveis sobre a definição da classe média. Segundo a SAE classe média é quem vive em famílias com renda per capita de R$ 291 a R$1.019. Segundo este critério, 53% da população do Brasil é integrante da chamada classe média. Isso representa uma inserção de 35 milhões de pessoas à faixa nos últimos dez anos. Desta maneira, até quem recebe o Bolsa Família, poderia ser enquadrado como classe média baixa.

Enquanto isso, o salário mínimo necessário calculado pelo Dieese em junho de 2013 chegou a R$2.860. Já o salário mínimo nominal encontra-se em R$678. O censo do IBGE de 2010 revelou que 32,7% da população brasileira vivem com um salário mínimo. Nas regiões norte e nordeste do país a situação é ainda pior. No Norte, 41,6% da população recebem até um salário mínimo e no Nordeste, esse percentual é de 51,2%. Por outro lado, a média nacional para quem recebe até dois salários mínimos (R$1.356) é de 71,9%. Na outra ponta, o percentual de trabalhadores que recebem mais de 10 salários mínimos (R$6.780) é de 3,1%. A parcela com rendimento acima de 20 salários mínimos (R$13.560) é de 0,9% da população ocupada.

Assim, uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças, onde um adulto recebesse dois salários mínimos e outro um salário, o que levaria a renda familiar a três salários mínimos ou R$2.034 colocaria esta família como parte da nova classe média. Consideramos que salário não é renda e que uma parte significativa das famílias da classe trabalhadora brasileira nas quais a soma dos respectivos salários de seus membros atinge o mínimo do Dieese não poderia ser incluída na classe média, como propõe a FGV e o IBGE. Muito menos concordamos em incluir quem ganha um salário mínimo na classe média, como propõe a SAE.

O fato de que a maioria dos manifestantes – 63% segundo pesquisa DataFolha de 21 de junho de 2013 – ter entre 21 e 35 anos, e 78% destes jovens ter ensino superior, não os coloca direta e imediatamente como parte da pequena burguesia proprietária ou da classe média assalariada. Esses jovens, como muito bem afirmaram Ruy Braga e Giovanni Alves, são parte de um novo precariado, ou seja, de uma nova geração do proletariado urbano, com formação superior ou técnica, mas que se encontra empregada, em sua maioria, em trabalhos precários ou diretamente desempregada.

O que se conquistou de imediato?

As jornadas de junho, ainda que não tivessem um programa político claro e um eixo ordenador contra o governo federal, direcionaram rápida e objetivamente suas denúncias e reivindicações difusas contra instituições do Estado capitalista e de sua democracia representativa: governos municipais, estaduais e federal; Congresso Nacional, assembleias legislativas e câmaras de vereadores; polícia militar. Prédios de prefeituras, câmaras de vereadores, governos estaduais, assembleias legislativas e, até mesmo, o Congresso Nacional foram alvos de manifestações e ocupações.

Mesmo de maneira indireta e inconsciente, as reivindicações imediatas das jornadas de junho se enfrentaram com as políticas governamentais de prefeitos, governadores e, porque não dizer, até mesmo da presidente Dilma, obrigada rapidamente a responder às ruas com a proposta de um pacto com cinco propostas que envolviam as questões de transporte, saúde, educação, responsabilidade fiscal e reforma política.

O tremendo desgaste da presidente Dilma, de vários governos estaduais, como o de Sérgio Cabral no Rio de Janeiro e Geraldo Alckmin em São Paulo, e prefeituras como as de Eduardo Paes no Rio e Fernando Haddad em São Paulo, traduziu-se quase que imediatamente nas pesquisas de opinião pública e em movimentos como o Fora Cabral e Fora Paes no Rio e o Fora Alckmin em São Paulo.

Marcos Nobre se impressiona com a velocidade de algumas conquistas imediatas, mas minimiza o impacto das jornadas de junho sobre os governos, sobretudo o federal:

(…) impressiona a velocidade com que as revoltas de junho de 2013 atingiram seu objetivo inicial de revogar o aumento das tarifas do transporte público. Impressiona que tenham rapidamente obrigado a presidente Dilma Rousseff a fazer um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV. Impressiona que tenham obrigado a presidente a organizar às pressas um encontro com os 27 governadores e 26 prefeitos de capitais para anunciar “cinco pactos” entre todos os níveis de governo, relativos a transporte, educação, saúde, responsabilidade fiscal, reforma política e mesmo corrupção. Impressiona, sobretudo, que tenham obrigado a presidente a dar o passo de propor um plebiscito para a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo exclusivo de realizar uma reforma política”.

Não custa lembrar que a tática inicial dos governos estaduais e municipais diante das manifestações das massas, bem como do governo Dilma, que colocou à disposição dos governos estaduais a Força Nacional de Segurança durante a Copa das Confederações, foi reprimir duramente o movimento para que este morresse no seu ninho. Isto teve o mesmo efeito que tentar apagar fogo com gasolina. Na medida em que se reprimia, mais gente saía às ruas, as mobilizações espontâneas prosseguiram ao mesmo tempo em que algumas reivindicações imediatas eram atendidas, até refluírem a manifestações de vanguarda no final de junho.

Isto porque Dilma, Alckmin, Haddad, Cabral, Paes etc. estão atados dos pés à cabeça pelos contratos das privatizações, terceirizações e parcerias público-privadas que comprometem até a medula os orçamentos estatais, dificultam até mesmo a redução dos preços das passagens de ônibus e impossibilitam a realização de melhorias reais nos serviços públicos de saúde e educação. A margem de manobra para concessões às massas é evidentemente muito limitada, por um simples motivo: nem os governos do PT nem os governos normais da burguesia vão tirar dos bancos, empreiteiras e empresas concessionárias da União, estados e municípios para financiar melhores serviços públicos para o povo.

No entanto, não podemos negar as importantíssimas conquistas imediatas que vieram na esteira das jornadas de junho: as tarifas dos transportes públicos caíram em 10 capitais e em cerca de 50 cidades médias e regiões metropolitanas. O passe livre estudantil foi concedido nas regiões metropolitanas de Porto Alegre e Goiânia. Caiu a PEC 37 e o PDL 234, apelidado de Cura Gay, foi engavetado. O governo Dilma apressou-se em aprovar a destinação dos royalties do petróleo para a saúde e a educação. Aprovou-se o fim do voto secreto no Congresso Nacional em processos de cassação de mandatos.

A vitória, ainda que parcial e limitada, das jornadas de junho é incontestável.

As jornadas de junho não caíram como um raio num dia de céu azul

As jornadas de junho não foram precedidas apenas por manifestações estudantis e populares, mas por greves de uma das frações mais exploradas do proletariado brasileiro: os operários da construção civil das grandes obras de infraestrutura. É preciso não esquecer que, nos últimos dois anos, assistimos uma sucessão de greves de trabalhadores que vieram na esteira da impressionante insurreição dos operários da construção civil da hidrelétrica de Jirau ocorrida em março de 2011. Os operários de Jirau fizerem novas greves em 2012 e 2013, sendo seguidos pelos operários das hidrelétricas de Santo Antônio e Belo Monte.

Greves operárias não menos importantes ocorreram no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, no Complexo Industrial Petroquímico de Suape em Pernambuco, na construção da Usina Termoelétrica do Pecém Ceará. Mesmo as obras da Copa do Mundo foram afetadas por greves operárias. Pelo menos oito dos 12 estádios que estão sendo construídos ou reconstruídos enfrentaram greves antes das jornadas de junho: Arena Amazonas, Arena Dunas (RN), Arena Fonte Nova (BA), Arena Pernambuco, Arena Castelão (CE), Estádio Nacional (DF), Maracanã (RJ) e Mineirão (MG).

Além dos operários da construção civil, bombeiros, policiais e professores protagonizaram uma série de greves nos estados e municípios em 2011 e 2012. Ainda em 2011 o movimento estudantil realizou uma onda nacional de ocupações de reitorias, com destaque para a ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo (USP).

As jornadas de junho representaram, portanto, o salto de qualidade de mobilizações operárias, populares e estudantis específicas, muitas vezes isoladas, numa explosão espontânea e desorganizada das amplas massas que varreu as ruas num verdadeiro tsunami humano.

Após as jornadas de junho, as lutas e greves da classe trabalhadora tiveram continuidade num novo marco, não mais como prefiguração de uma explosão espontânea das massas em nível nacional, mas como continuidade de uma importante mudança na correlação de forças entre as classes.

Os anos de calmaria acabaram para Dilma e o PT

Ato contínuo às jornadas de junho, tivemos dois dias nacionais com paralisações, o 11 de julho e o 30 de agosto, o que lhes deu característica de greves nacionais, ainda que parciais, nas diferentes regiões do país e categorias da classe trabalhadora. Muitos analistas da grande imprensa e, até mesmo alguns intelectuais de esquerda, apressaram-se em comparar o dia 11 de julho e 30 de agosto com as jornadas de junho, afirmando que nestes dois dias não houve grandes manifestações de rua como as de junho. Do anterior, que não deixa de ser verdade, tiram a perspicaz conclusão de que o 11 de julho e o 30 de agosto foram um redundante fracasso.

Guardadas as devidas proporções numéricas e as diferenças histórico-políticas, comparar os dias 11 de julho e 30 de agosto com as jornadas de junho seria como comparar as passeatas das Diretas Já de 1984 com a Greve Geral de 1989, ou seja, movimentos de massas completamente distintos em sua natureza, base social, forma organizativa e objetivos. Enquanto a primeira era uma manifestação das massas diluídas como cidadãos, a segunda foi uma típica ação de classe organizada pelos sindicatos que paralisou os locais de trabalho, a produção, a circulação de mercadorias e pessoas e a realização de serviços. Ambas tiveram conotação política, mas as Diretas Já foram uma ação do povo para todo o povo contra a ditadura e por liberdades democráticas, portanto, sem delimitação de classe, enquanto a Greve Geral foi uma ação da classe trabalhadora para si e para todo o povo contra o governo Sarney e o capital.

Quando se fala de um Dia Nacional de Luta e Paralisações ou de uma Greve Geral o que está em jogo não é a realização de manifestações de rua, mas a paralisação dos locais de trabalho, da produção, da circulação de mercadorias e pessoas e da realização de serviços. O sucesso ou insucesso de um DNL ou de uma Greve Geral se mede pelo número de paralisações e greves e não pelo número de gente nas ruas.

Tanto no dia 11 de julho quanto no 30 de agosto tivemos paralisações parciais em todo o país de operários da construção civil, metalúrgicos, rodoviários, comerciários, funcionários públicos, professores etc. Foram as maiores paralisações nacionais intercategorias desde que o PT chegou à presidência da República em 2003. Mesmo as direções sindicais governistas, como a CUT e tradicionalmente pelegas, como a Força sindical, foram obrigadas a mobilizar seus sindicatos, caso contrário, correriam o risco de ser atropeladas por rebeliões de base.

Em setembro e outubro assistimos o estouro de uma série de greves no marco das campanhas salariais do segundo semestre: trabalhadores dos correios e bancários em todo o país; metalúrgicos do ABC paulista e da Embraer de São José dos Campos; professores estaduais e municipais do Rio de Janeiro; petroleiros em nível nacional por reajuste de salários e contra o leilão do campo de petróleo do pré-sal de Libra. Manifestações de massas, ainda que numa escala menor, também seguem ocorrendo: no dia do professor, cerca de 50 mil pessoas ocuparam as ruas do Rio de Janeiro contra a repressão, em defesa da greve dos professores e da educação pública. O movimento estudantil voltou a ocupar as reitorias da USP e da Unicamp.

Por tudo isso, as jornadas de junho representaram o salto de qualidade de um processo de lutas específicas e muitas vezes isoladas dos trabalhadores e do povo pobre que vinham se acumulando nos últimos anos e, ao mesmo tempo, o início de uma nova correlação de forças que coloca o movimento de massas na ofensiva contra a os governos subservientes ao capital o que inclui, obviamente, o governo Dilma.

A pemedebização do regime político e o PT

Marcos Nobre identifica como o grande câncer da democracia representativa brasileira o PMDB e a contaminação de todo o regime político pelo que ele chama de pemedebismo.

Depois de narrar as origens da atual democracia representativa brasileira, sob a direção do PMDB desde a campanha das diretas em 1984, passando pelo governo Sarney (1985-1990) e pela Constituinte em 1987, Marcos Nobre avalia que a hegemonia político-institucional do PMDB, como representante das limitações e distorções da democracia representativa instituída após a queda da ditadura militar, sobreviveu aos governos de Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma.

A formação do chamado Centrão encabeçado pelo PMDB na Constituinte de 1987 teria sido a primeira manifestação do pemedebismo. Para o autor de Choque de Democracia:

Nasceu aí a primeira figura da blindagem do sistema político contra a sociedade. A esse processo de blindagem dou o nome de pemedebismo, em lembrança do partido que capitaneou a transição para a democracia”.

Uma segunda etapa do pemedebismo teria sido o bloco suprapartidário que, diante do impeachment de Collor, orquestrou e sustentou a posse do seu vice, Itamar Franco, e a posterior eleição de FHC. Segundo Marco Nobre:

A resposta do sistema político ao processo de impeachment de Collor não foi uma reforma radical. Pelo contrário. Fincou-se como verdade indiscutível que Collor tinha caído porque não dispunha de apoio político suficiente no Congresso, porque lhe teria faltado ‘governabilidade’. Nasceu aí a exigência inquestionável de esmagadoras maiorias suprapartidárias que pudessem bloquear movimentos como o do impeachment, segundo o modelo do Centrão da Constituinte”.

E, mais adiante, arremata:

A partir da década de 1990, em nome da estabilização, o sistema político encontrou uma nova unidade forçada, o pemedebismo, em que não há real polarização de posições políticas, mas acomodação amorfa. Junho de 2013 representa a recusa dessa nova unidade, ainda que não necessariamente o seu final”.

Para o autor de Choque de Democracia, o PT já vinha de um longo processo de adaptação ao que ele chama de pemedebismo:

(…) o PT reorientou sua estratégia e passou a dar prioridade absoluta à conquista do poder federal, à eleição de Lula, em lugar de apostar na mobilização social de massa. Protestos antipemedebistas se reduziram a mero elemento de tática eleitoral e não mais a tentativas de exigir uma reforma profunda do sistema político”.

Esta adaptação do PT ao pemedebismo se aprofundou quando Lula chegou à presidência da República, para dar um salto com o escândalo do mensalão em 2005, o que obrigou Lula, primeiro, e depois Dilma a estreitarem os laços governamentais com o PMDB, como fiel da balança da base governista do PT, a ponto de bancarem José Sarney, primeiro e Renan Calheiros, depois como presidentes do Senado e colocarem na vice de Dilma, o também pemedebista Michel Temer.

Vaticina Marcos Nobre sobre a relação entre o mensalão e o reforço da pemedebização dos governos do PT:

Vendo-se acossado pelo fantasma do impeachment, o governo Lula aderiu à ideia pemedebista de construção de supermaiorias parlamentares. Depois do mensalão, no restante do período Lula, completou-se o desenvolvimento das ferramentas de blindagem pemedebistas, cujo uso continuou de maneira ainda mais ostensiva sob a presidência de Dilma Rousseff, a partir de 2011”.

(…) Foi apenas com a entrada definitiva do PMDB no governo, depois do mensalão, que a aliança com o empresariado nacional foi progressivamente se firmando. Com o tempo, não apenas as grandes empreiteiras, as grandes empresas industriais, mineradoras e de serviço aderiram ao pacto lulista, mas – fato inédito – também os setores ruralistas que até ali continuavam a hostilizar o PT e o governo Lula. Se é fato que o boom de commodities teve grande influência nessa adesão, foi pelo menos de igual importância para isso a sua representação no governo mediante a aliança com o PMDB”.

(…) em 2013, o PT já tinha havia muito se tornado establishment, tinha realizado o pacto com o pemedebismo que trava o aprofundamento da democracia no país”.

Não vamos cansar mais o leitor com citações. O que tão somente queremos enfatizar é que Marcos Nobre dá o nome de pemedebismo à forma específica assumida pela democracia capitalista brasileira nos últimos 25 anos. Trata-se de uma análise bastante sofisticada e inventiva. O próprio PT não é poupado pelo autor, na medida em que aceitou fazer parte da blindagem pemedebista do regime político ou, em linguagem marxista, participar do jogo da democracia representativa com as fichas pagas pelo capital.

Mais que isso, é preciso afirmar em alto e bom som que o PT tanto não quer como não pode livrar-se do pemedebismo e realizar uma profunda reforma democrática do regime político brasileiro.

Agora, a grande questão que nos interessa debater com Marcos Nobre não é sua análise da blindagem pemedebista do regime político brasileiro, mas outra blindagem que passa ao largo de sue ensaio: a blindagem petista dos movimentos sociais organizados.

A blindagem petista dos movimentos sociais organizados

Uma juventude que cresceu vendo uma política de acordos de bastidores, em que figuras políticas adversárias se acertam sempre em um grande e único condomínio de poder, não tem modelos em que basear uma posição própria, a não ser o da rejeição em bloco da política. Quem nasceu da década de 1990 em diante, por exemplo, não assistiu a qualquer polarização política real, mas somente a polarizações postiças, de objetivos estritamente eleitorais. O pemedebismo minou a formação política de toda uma geração”.

Assim raciocina Marcos Nobre para explicar o espontaneísmo das massas nas jornadas de junho e o papel protagonista da jovem geração do proletariado urbano nestas manifestações. No entanto, o autor de Choque de Democracia limita sua análise à blindagem das instituições da democracia capitalista pelo chamado pemedebismo e se esquece de outra blindagem tão ou mais importante: a do PT e seus aliados no interior dos movimentos sociais organizados. Para sermos justos, Nobre faz apenas referências ligeiras ao problema, quando afirma que os manifestantes das jornadas de junho:

Não se organiza(m) de maneira clara, sob a forma de posições políticas nítidas, muito menos sob a forma de polarizações estruturadas (…)”.

Não é de espantar que divisões políticas como aquela entre direita e esquerda apareçam como irreais ou sem sentido. Não foi justamente o apagamento de divisões como essas, o que se viu no governo do país desde a vitória de Lula, em 2002?”.

Pedimos licença a Marcos Nobre para prosseguir de onde ele parou. A vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2002, fez com que a direção tradicional dos movimentos sociais brasileiros – sindicatos, movimento popular, movimento estudantil – surgida da queda da ditadura chegasse ao poder. O autor de Choque de Democracia limita-se a afirmar:

Claro que cooptação aberta de organizações e sindicatos também aconteceu. Mas dizer que tudo não passou de mera cooptação de movimentos sociais e sindicatos obscurece o fato de que a aliança lulista conseguiu convencer a parcela organizada de esquerda da sociedade brasileira de que o ritmo e a velocidade das transformações que estava imprimindo eram os limites máximos dentro das correlações de força vigentes”.

Não se trata de mero reducionismo dar devida importância à cooptação dos movimentos sociais e sindicatos pelos governos do PT. Lula e Dilma “estatizaram” as principais organizações dos movimentos sociais que, desde o fim da ditadura militar, haviam se construído como depositárias das reivindicações democráticas, econômicas e parciais do proletariado e dos movimentos estudantil, popular e sem-terra contra todos os governos de turno, de José Sarney a Fernando Henrique Cardoso.

Esta “estatização” das principais organizações de frente única do movimento de massas não se deu através de uma contrarreforma legal e institucional, ou seja, por meio de um controle direto e da subordinação destas organizações majoritárias do movimento de massas ao aparato do Estado, como ocorreu nos governos bonapartistas clássicos e sui generis durante o século XX, a exemplo de Getúlio Vargas no Brasil.

O sindicalismo oficial no Brasil dos governos de Lula e Dilma é formado pelos grandes aparatos reformistas construídos nos últimos trinta anos e que almejavam chegar ao poder, exatamente nas condições em que chegaram: como os braços sindicais de um governo de conciliação de classes. No entanto, seria um grave erro limitar a análise a este elemento.

Há também uma importante base material para esta recente “estatização” das principais organizações de frente única do movimento de massas. Houve uma cooptação generalizada de todas as centrais sindicais legais, com exceção da CSP-Conlutas, através do Imposto Sindical e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); do MST, através de verbas e cargos do INCRA; e da UNE (dirigida pelo PCdoB), através da liberação de verbas para os projetos desta entidade estudantil. Seria cômico se não fosse trágico: os governos de Lula e Dilma tiraram dos impostos descontados em folha de pagamento dos próprios trabalhadores, com o imposto sindical, as verbas para cooptar as organizações tradicionais do movimento de massas. As frações burguesas mais reacionárias, ao denunciarem o repasse de verbas estatais para estas organizações, ignoram estupidamente a eficácia e o baixo custo destes mecanismos de cooptação para garantir a paz social capitalista.

Esta blindagem do PT e seus aliados no interior dos movimentos sociais representou nos últimos dez anos uma poderosa camisa de força que os atou dos pés a cabeça. Isto é o que vai explicar, em primeira e em última instância, porque diabos as jornadas de junho passaram completamente por fora dos movimentos sociais organizados. Tanto a exuberante espontaneidade das jornadas de junho quanto o borrão entre as fronteiras do que se convencionou chamar de direita e esquerda, bem como a infiltração de grupos fascistas nas manifestações são fruto desta blindagem petista dos movimentos sociais organizados.

Não podemos nos esquecer da tremenda expressão ganha pela tática Black Bloc de grupos anarquistas que, em pleno século XXI, faz renascer uma espécie de ludismo tardio, que não tem como objeto de sua fúria as máquinas-ferramentas do século XIX, mas os símbolos financeiros do capital no século XXI.

Por outro lado, organizações de esquerda alternativas ao PT, como o PSOL e o PSTU, no campo político e a Conlutas e a Anel, no campo dos movimentos sociais, estiveram desde o início das manifestações pela redução das passagens de ônibus em São Paulo, antes das jornadas de junho, mas, devido à própria hegemonia e blindagem petista que sobreviveu nos últimos dez anos, ainda não conseguiram aparecer como uma alternativa de massas.

No entanto, mais cedo do que tarde o espontâneo deve ceder lugar à organização de posições políticas alternativas ao PT e seus braços institucionais que blindaram os movimentos sociais organizados com o apoio majoritário aos governos de Lula e Dilma. As jornadas de junho desataram o nó da camisa de força petista sobre os movimentos sociais organizados e abriram a possibilidade de por fim a sua blindagem nos próximos anos.

Choque de Democracia?

Para Marcos Nobre:

(…) as revoltas de junho de 2013 representam um grande avanço: mostram que a pauta não é mais a da transição para a democracia, em que estava em jogo a estabilização econômica e política, mas a do aprofundamento da democracia”.

E mais adiante:

Estamos diante de um Choque de Democracia. As reivindicações e passeatas se multiplicam, levantando problemas de bairro e de rua, problemas locais, regionais, nacionais, mundiais, tudo ao mesmo tempo. É um clima parecido com o da Constituinte. As demandas vêm de todos os lugares, colocam-se em diferentes alcances e não têm unidade nem organização unitária”.

Ao contrário de Marcos Nobre, ao nosso juízo as reivindicações imediatas conquistadas nas jornadas de junho não podem ser confundidas como um fim em si mesmo, cuja tradução estratégica seria o aperfeiçoamento do chamado Estado Democrático de Direito nos marcos do capitalismo. É preciso trata-las como são: como reivindicações políticas e econômicas imediatas surgidas ao calor de grandes manifestações espontâneas de massas que se chocaram, ainda que indireta e inconscientemente, contra os governos municipais, estaduais e o próprio governo federal, bem como questionaram objetivamente o regime democrático-burguês e o próprio sistema capitalista.

Qual seria então a definição de democracia de Marcos Nobre? Sigamos seu raciocínio:

A democracia no país é ainda pouco democrática de fato. Porque democracia não é apenas funcionamento de instituições políticas formais, não é apenas um sistema político regido formalmente por regras democráticas. Democracia é uma forma de vida que penetra fundo no cotidiano, que se cristaliza em uma cultura política pluralista”.

Fica clara aqui a defesa da democracia como um valor universal, ou seja, como um princípio que fundamenta uma estratégia-programa. Esta estratégia-programa, na medida em que não questiona a propriedade privada dos meios de produção guardada a sete chaves pelo Estado capitalista, limita a luta política ao terreno do direito, ou seja, ao horizonte da reforma nos marcos do capitalismo. A oposição entre democracia representativa e democracia real, participativa ou mesmo direta, sem que se ponha em xeque o Estado capitalista e a propriedade privada dos meios de produção não passa de uma utopia digna do século XIX.

Medidas como o chamado Orçamento Participativo que, quando muito, permitiu a definição de míseros 10% do orçamento do município pela população; plebiscitos e referendos que, no máximo, possibilitam que a população se pronuncie sobre questões políticas, econômicas ou sociais antes ou depois da definição detalhada destas pelo Senado e a Câmara de Deputados servem apenas para dourar a pílula da democracia representativa e preservar o Estado capitalista. Mesmo a experiência recente da Venezuela, com seus conselhos comunais e comunas, demonstra o quanto pretensos organismos da chamada democracia participativa chavista podem se converter em tentáculos do poder Executivo, manipulados por um regime político com fortes traços bonapartistas.

Não somos idealistas, mas marxistas. Por isso, a tomada do poder pelo proletariado será também uma utopia romântica, uma abstração incompreensível para as massas dos trabalhadores assalariados e do povo pobre da cidade e do campo, uma tarefa impossível de ser cumprida direta e imediatamente, se não corresponder a um estágio da luta de classes que permita o surgimento de organismos de luta das massas convertidos em instrumentos de luta pelo poder, ou seja, numa nova institucionalidade surgida do seio da própria sociedade civil, entendida como sociedade burguesa, que possibilitasse o triunfo da revolução proletária e o estabelecimento de um Estado de novo tipo para realizar a transição socialista. O fato disto não se colocar como uma tarefa imediata não minimiza sua importância como marco estratégico de luta pelo poder político.

Posto este marco estratégico, sem semear ilusões na reforma do Estado capitalista e de seu regime democrático representativo, enquanto a situação da luta de classes não permitir aos trabalhadores assalariados e ao povo pobre da cidade e do campo construírem seus organismos de luta de massas convertidos em organismos de poder, não se pode deixar de intervir no debate concreto e propor soluções concretas diante do questionamento do próprio Estado Capitalista e de sua democracia representativa pelo movimento de massas nos primeiros estágios da nova correlação de forças aberta com as jornadas de junho, na medida em que desde estes primeiros estágios não se colocam em jogo apenas as reivindicações políticas, econômicas e sociais imediatas, mas o questionamento dos governos de turno e, ainda que de maneira embrionária, o problema do poder: quem e como se deve governar. O “quem” diz respeito a que partidos e pessoas exercem o poder. O “como” diz respeito ao regime político, ou seja, às formas legais e institucionais do exercício do poder.

Considerando que o horizonte do movimento de massas se encontra atualmente limitado pela democracia representativa, na medida em que não há na contemporaneidade nenhum Estado transicional ou regime de democracia dos conselhos operários e populares que possa servir de exemplo como Estado e regime político de novo tipo, o problema da tática política para que o próprio movimento de massas tire suas conclusões através da experiência com os limites estratégicos do Estado capitalista e de sua democracia representativa é fundamental.

Se for verdade que limitar o horizonte estratégico e programático à reivindicação quantitativa de mais democracia política nos marcos do Estado capitalista levará o movimento de massas ao beco sem saída da utopia reacionária da humanização do capitalismo e de seu Estado, não seria menos verdadeiro que não erguer desde os primeiros levantes de massas reivindicações democráticas como uma tática contra a própria democracia capitalista, ignorando o problema do regime político e do Estado, limitar-se-ia o horizonte estratégico e programático à luta contra o plano econômico e o governo de turno.

Mas, para aqueles que têm como horizonte a estratégia da revolução socialista e o estabelecimento de um Estado transitório sob um regime de democracia dos conselhos operários e populares, as reivindicações democráticas contra a democracia representativa devem ter como parâmetro não os próprios limites do Estado capitalista, mas a experiência da Comuna de Paris e dos primeiros anos da República dos Sovietes na Rússia. Destas duas experiências histórico-concretas surgiu a norma programática sobre a qual é possível elaborar quaisquer adaptações táticas ou reivindicações democráticas episódicas contra a própria democracia capitalista. Senão vejamos.

O fim do presidencialismo e o estabelecimento do parlamentarismo, bem como o fim do Senado e o estabelecimento de uma Câmara Única de deputados determinariam a unificação do Poder Executivo e do Poder Legislativo numa única comissão de trabalho, acabaria de uma vez por todas com decretos presidenciais, medidas provisórias e todo e qualquer expediente bonapartista.

A limitação dos salários dos governantes, parlamentares, juízes e todos os cargos de chefia do Estado ao salário médio de um operário especializado ou de um professor do ensino básico e a revogabilidade de todos os mandatos representativos e cargos de chefia a qualquer momento pelos trabalhadores e o povo seriam uma barreira efetiva contra a corrupção.

A eleição dos juízes e dos delegados de polícia pelos trabalhadores e o povo, bem como a eleição dos oficiais da polícia e das forças armadas pela tropa, a extensão de plenos direitos políticos e sindicais à polícia e forças armadas, o fim dos corpos repressivos, como as tropas de choque da polícia militar, submeteria a Justiça, as polícias e as forças armadas ao controle operário e popular.

A publicação de todos os salários e movimentações bancárias dos governantes, parlamentares e juízes, bem como dos orçamentos, contratos e contas públicas nos meios eletrônicos para a consulta por qualquer pessoa, em qualquer lugar e a qualquer momento.

O debate público e a submissão ao voto dos trabalhadores e do povo em escala nacional, estadual, municipal e local do plano econômico bem como de todas as políticas públicas relevantes, desde os planos de saúde, educação, cultura, mobilidade urbana, limpeza, saneamento, iluminação, preservação ambiental e construção de hospitais, escolas e casas seria a melhor forma de garantir não somente a participação popular nas decisões governamentais, mas o efetivo controle do governo pelas amplas massas.

Para aqueles que veem com utópicas estas propostas simples e factíveis, os atuais meios técnicos permitidos pela informática e a internet estão aí para comprovar a possibilidade da mais completa garantia da circulação de informações e debates sobre cada um destes temas. Estes mesmos meios técnicos facilitariam tranquilamente a votação em escala local, municipal, estadual e federal destes planos econômicos e políticas públicas, bem como a eleição e a revogabilidade de mandatos de todos os cargos públicos.

As propostas anteriores são muito mais realistas e profundas que as mudanças cosméticas propostas pela presidente Dilma sobre financiamento público de campanha, voto distrital misto, o fim da suplente de Senador, o fim das coligações partidárias nas eleições e o fim do voto secreto de senadores e deputados no Congresso Nacional. Dilma e o PT chegaram a levar ao extremo a máxima do Príncipe de Falconeri, personagem de Lampedusa em O Leopardo: “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Primeiro lançaram a proposta de Assembleia Constituinte Exclusiva, depois de plebiscito, em seguida negociaram a aprovação de algumas destas medidas no próprio congresso nacional e a realização de um referendum. Atualmente, a montanha da Constituinte exclusiva do PT pariu o rato de uma minirreforma político-eleitoral da qual sequer foram definidos claramente os penduricalhos a serem modificados.

Social-desenvolvimentismo?

Para Marcos Nobre, a sociedade brasileira foi moldada por um modelo que ficou conhecido como nacional-desenvolvimentismo inaugurado pelo golpe de 1930, encabeçado por Getúlio Vargas, e só encerrado na década de 1980 com o fim da ditadura militar instalada no país com o golpe de 1964. A partir de 1985, com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney pela via indireta do Colégio Eleitoral e, particularmente, com a Constituição de 1988 inaugurou-se um novo modelo, cunhado por Marcos Nobre com o nome de social-desenvolvimentismo:

Segundo o novo modelo, só é autêntico ‘desenvolvimento’ aquele que é politicamente disputado segundo o padrão e o metro do “social”, quer dizer, aquele em que a questão distributiva, em que as desigualdades – de renda, poder, recursos ambientais, reconhecimento social – passam para o centro da arena política como o ponto de disputa fundamental. À sua maneira peculiar e ziguezagueante, em uma interpretação coletiva penosamente construída, foi essa a concretização de uma imagem de sociedade presente no texto da Constituição Federal de 1988”.

Na nova modernização social-desenvolvimentista, há um descompasso entre o modelo de sociedade que se consolidou e uma cultura política que ainda não o expressa em toda a sua amplitude e novidade, marcada que ainda está pelo pemedebismo da longa transição brasileira para a democracia”.

Não vamos aqui fazer uma análise história da longa duração e dos diferentes períodos dos modelos nacional-desenvolvimentista (1930-1980) e social-desenvolvimentista (1980 até os dias de hoje), propostos por Marcos Nobre. Tampouco analisaremos os governos Sarney, Collor ou Itamar. Damos como favas contadas, particularmente, os chamados planos neoliberais, marca do governo FHC. Interessa-nos fundamentalmente discutir o conceito de modelo social-desenvolvimentista vinculado aos governos de Lula e Dilma. Voltemos ao texto de Nobre:

Em meio à confusão interessada do pemedebismo e de uma continuidade artificial do nacional-desenvolvimentismo, foram fixadas na Constituição algumas bases do que viria a ser o projeto social-desenvolvimentista, o novo modelo de sociedade que apenas no período Lula surgiu de maneira mais claramente cristalizada, passando a orientar a autocompreensão do país (…)”.

Aceitar que as conquistas obtidas até agora sejam o único ritmo possível do social-desenvolvimentismo, sejam o máximo que permite o pragmatismo político, essa é a ideologia que emperra o desenvolvimento do novo modelo de sociedade”. E foi essa ideologia que as revoltas de junho de 2013 trataram de pôr a descoberto”.

A questão que não se pode omitir neste debate é que o PT, Lula e Dilma decidiram jogar o jogo da democracia capitalista com as fichas do capital financeiro. Aceitaram tanto a lógica do Plano Real, das privatizações de setores estratégicos da economia, das parcerias público privadas, do pagamento das dívidas externa e interna, quanto se adaptaram ao balcão de negócios das pequenas legendas de aluguel, primeiro e do grande “partido do governo” desde o fim da ditadura militar, o PMDB, depois, concedendo verbas orçamentárias, mensalões, ministérios, cargos nas estatais e demais empresas públicas.

Vivemos nos últimos 20 anos – desde o primeiro mandato de FHC (1995-1999) – sucessivas contrarreformas constitucionais que levaram a importantes mudanças legais e institucionais a serviço do capital financeiro transnacional. Estas contrarreformas foram responsáveis pela criação de uma série de mecanismos que passaram a ser reconhecidos pelo próprio PT como clausulas pétreas do chamado Estado Democrático de Direito, tais como: a independência do Banco Central; o Superávit Primário; a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); a Desvinculação das Receitas da União (DRU); a nova Lei de Falências; as duas contrarreformas da Previdência, de FHC e Lula; a contrarreforma fiscal e, como parte desta última, a fusão da Secretaria da Receita Federal (SRF) com a Secretaria da Receita Previdenciária (SRP); a transformação do cambio flutuante num dogma religioso e das reservas em dólar, elevadas a centenas de bilhões, no santo graal da economia nacional; a privatização das estatais e a criação das chamadas agências reguladoras de energia, telefonia, petróleo, gás, etc. Tudo isso foi expediente de um esforço gigantesco para elevar ao patamar de leis e instituições nacionais a garantia da mais absoluta remuneração do capital financeiro transnacional e de seus sócios tupiniquins, que tem como um dos principais mecanismos a dívida pública interna e externa.

A margem de manobra dos governos do PT e de sua política econômica, fiscal e monetária passou, portanto, a ser mínima, esdrúxula, insignificante. Não se trata simplesmente de cumprir ou não as determinações e metas do FMI e do Banco Mundial, mas de obedecer a novas leis e o novo arcabouço institucional do próprio Estado capitalista brasileiro. Assim, não há mais espaço para planos heterodoxos, mas apenas para adaptações superficiais e pequenos matizes dentro do novo marco da relação entre Estado nacional e economia mundial. Todas e quaisquer “mudanças” profundas só poderão ir num único e mesmo sentido: de cravar mais fundo os pilares desse novo arcabouço legal e institucional com mais contrarreformas, como a proposta da terceira contrarreforma da previdência e novas medidas das contrarreformas trabalhista e fiscal.

A partir de então, não há, portanto, nenhum problema para o Imperialismo e para as principais frações da burguesia nacional que a esquerda reformista chegue ao poder e governe por vários anos, na medida em que ela aceitou fazer parte deste novo arcabouço legal e institucional do Estado capitalista e de sua democracia representativa. A carta ao Povo Brasileiro de 2002 foi apenas a espuma superficial deste processo, ou seja, o compromisso assumido por Lula e o PT de não reverter as contrarreformas de FHC e de, inclusive, aprofundá-las.

Assim, ao se converterem na forma privilegiada de dominação do capital financeiro por um largo período e na medida em que exercem um controle muito mais efetivo e seguro dos organismos tradicionais de frente única do movimento de massas, os governos encabeçados pelo PT seriam a melhor alternativa de poder até que se desgastem diante das massas naturalmente, como ocorreu com François Mitterrand (1981-1995), na França e Felipe Gonzalez (1982-1996), na Espanha. Após esta experiência com uma largar permanência destes governos no poder, os velhos partidos burgueses renovados, ou novos partidos que venham a renovar a representação das frações burguesas tradicionais, poderiam voltar ao poder pela via eleitoral e estabelecer uma alternância de governos nos marcos da democracia capitalista, a exemplo de Jack Chirac (1995-2007), na França e José María Aznar (1996-2004), na Espanha. A evolução da crise capitalista e da luta de classes dará a última palavra sobre a viabilidade e durabilidade no tempo deste projeto de poder e da eficácia do PT como parte dele.

Outra questão não menos importante é perguntar: sobre que bases esteve e está fundado esse pretenso modelo social-desenvolvimentista do PT? Ele está fundado sobre o agronegócio e a exportação de commodities agrícolas e minerais, particularmente para os Estados Unidos e a China. Mais um pilar do modelo econômico petista é a conversão mais profunda do Brasil numa plataforma de empresas transnacionais, particularmente automotivas, para a exploração do mercado interno e exportação para a América Latina. Há também uma maior dependência tecnológica no que diz respeito à importação de bens de capital e produtos de alta tecnologia. Por outro lado, o leilão do campo de petróleo do pré-sal de Libra representou uma das maiores entregas dos recursos naturais do país a transnacionais como a anglo-holandesa Shell, a francesa Total, a Corporação Marítima Nacional de Petróleo da China (CNOOC), com sede em Hong Kong, e a Corporação Nacional de Petróleo da China (CNPC).

Some-se a tudo isso o fato de que, depois do pico de crescimento do PIB em 2010, quando este chegou a 7,5%, vimos o mesmo despencar para 2,7% em 2011 e atingir míseros 0,9% em 2012. As previsões mais otimistas para o PIB de 2013 não chegam a 2,5%. Em 2012, o total da dívida pública federal, interna e externa, superou o patamar de R$ 2 trilhões (a dívida interna ficou em R$ 1,91 trilhão e a externa em R$ 91,2 bilhões). Enfim, o modelo econômico petista está completamente baseado na dependência econômica e tecnológica do país diante das transnacionais e dos bancos imperialistas. Com este modelo, o Brasil não só não deixou de ser um país semicolonial, mas teve seu caráter semicolonial aprofundado.

Marcos Nobre poderá nos objetar dizendo que, apesar da adaptação do PT à lógica do Plano Real, à globalização imperialista e à estrutura do pemedebismo do regime político brasileiro, Lula e Dilma realizaram grandes políticas sociais “como nunca antes na história deste país”.

A rigor, as políticas sociais dos governos do PT se limitaram a políticas sociais compensatórias, cujo carro chefe é o Bolsa Família, direcionadas à pobreza extrema. Os serviços públicos de saúde, educação, transporte, saneamento etc. não só não melhoraram qualitativamente, mas continuaram anos luz do que foi o antigo “Estado de Bem Estar Social” surgido na Europa Ocidental no pós Segunda Guerra Mundial.

Para Chico de Oliveira:

(…) o simples dado do pagamento do serviço da dívida interna, em torno de 200 bilhões de reais por ano, contra os modestíssimos 10 bilhões a 15 bilhões do Bolsa Família, não necessita de muita especulação teórica para a conclusão de que a desigualdade vem aumentando. Márcio Pochmann, presidente do IPEA, que continua a ser um economista rigoroso, calculou que uns 10 a 15 mil contribuintes recebem a maior parte dos pagamentos do serviço da dívida”. (DE OLIVEIRA, Francisco. Hegemonia às Avessas, Boitempo, 2010, P. 374).

Ainda que atualizemos os valores destinados pelo governo Dilma ao programa Bolsa Família, R$ 21,1 bilhões em 2012 (O montante é o maior desde que o programa foi criado e representa crescimento de 15,3% em relação aos R$ 18,3 bilhões pagos em 2011, segundo valores atualizados pelo IPG-DI, da Fundação Getúlio Vargas), a comparação de Chico de Oliveira entre o montante destinado ao pagamento do serviço da dívida interna e o financiamento do principal programa social dos governos do PT segue sendo mais do que válida, na medida em que o pagamento do serviço da dívida se manteve acima de 200 bilhões de reais por ano.

Enquanto isso, o salário mínimo instituído em janeiro de 2013 em R$678, apesar de seu aumento real atingir 70% nos últimos dez anos, podia comprar também em janeiro apenas 2,26 cestas básicas ao preço de R$300. Não custa lembrar que a média nacional da população ativa que recebe até dois salários mínimos (R$1356) é de 71,9% segundo o censo do IBGE de 2010.

Se não considerarmos os baixos salários da maioria absoluta dos trabalhadores; a escalada inflacionária dos últimos três anos, particularmente dos alimentos, tarifas e aluguéis; o sucateamento dos serviços públicos e sociais oferecidos pelo Estado brasileiro ou concedidos por este a consórcios privados, não será possível entender as jornadas de junho e que mesmo aqueles que tiveram sua pobreza extrema atenuada nos últimos dez anos querem mais do que o simples direito de não morrer de fome, querem viver mais e melhor, querem conseguir empregos menos degradantes e melhor remunerados, querem mais e melhores serviços públicos, estatais, gratuitos e de qualidade.

Estado de Bem Estar: fenômeno histórico ou estratégia política?

A ilusão de que o capitalismo evoluiria natural e pacificamente para a transição socialista foi desfeita de maneira dramática ainda no início do século XX com a Primeira Guerra Mundial. A estratégia reformista oriunda desta ilusão evolucionista do capitalismo possuía uma base material bastante significativa nas conquistas do proletariado a partir do final do século XIX e início do século XX: oito horas de trabalho diário, salário mínimo legal, legislação de proteção ao trabalho das mulheres e crianças, a conquista do direito ao voto universal etc.

Com a Primeira Guerra, a crise econômica de 1929 e a Segunda Guerra Mundial os trabalhadores viram esta conquistas serem rebaixadas e arrancadas dramaticamente. O fenômeno da revolução socialista internacional, iniciado com o triunfo da Revolução Russa de 1917 e isolado ao território da União Soviética até o fim da Segunda Guerra, em meio a mais colossal destruição de forças produtivas da história da humanidade, não só não foi capaz de impedir a piora das condições de vida dos trabalhadores assalariados em todo o mundo, em particular na Europa, como vitimou a própria União Soviética com a burocratização estalinista que liquidou ainda nos cueiros a nascente democracia dos conselhos operários e camponeses.

Esta mesma estratégia reformista voltaria anos mais tarde, sob uma nova forma, na Europa Ocidental, com os “Estados de Bem Estar Social” surgidos dos escombros da Segunda Guerra Mundial, sob o impacto da ocupação do Leste Europeu e Coreia pelo Exército Vermelho, das revoluções triunfantes na Iugoslávia, na China, em Cuba e no Vietnã. Foi o perigo da expansão do fenômeno da revolução socialista internacional aos países imperialistas da Europa Ocidental (Alemanha, França e Itália) que obrigou ao imperialismo norte-americano, através do Plano Marshall, a pactuar com a burocracia soviética a divisão da Europa e dar à luz ao chamado “Estado de Bem Estar Social”. Desta vez, a base ideológica da estratégia reformista não seria mais a evolução natural e pacífica do capitalismo ao socialismo, mas a garantia de melhores condições de vida para os trabalhadores assalariados sob o capitalismo reformado e humanizado: jornada de trabalho inferior às oito horas de trabalho diário, salário mínimo vital que atendia às necessidades básicas, legislação de proteção ao trabalho que garantia inclusive o seguro desemprego, direito universal à aposentadoria e aos serviços de saúde e educação públicos e gratuitos. Desde a segunda metade do século XX, os “Estados de Bem Estar Social” haviam se tornado a referência prática de uma estratégia renovada de reforma do capitalismo, horizonte este a ser atingido, inclusive, pelos trabalhadores assalariados dos países coloniais e semicoloniais.

O início da restauração capitalista nos Estados operários burocratizados da União Soviética, Leste Europeu, China, Vietnã e Cuba, entre a segunda metade dos anos de 1970 e a primeira metade dos de 1980, pelas mãos da própria burocracia que governava estes países não capitalistas, deu o sinal verde para a burguesia europeia liquidar concomitantemente com o “Estado de Bem Estar Social” na Europa Ocidental. O governo de Margareth Thatcher foi a vanguarda deste desmonte, ao instituir o paradigma dos chamados planos neoliberais para a Europa e o mundo. Os velhos partidos trabalhistas e socialistas na Inglaterra, França e Espanha, uma vez no poder, deram prosseguimento aos planos neoliberais e à liquidação do “Estado de Bem Estar Social”. Cada um a seu modo, Tony Blair, François Mitterrand e Felipe Gonzalez foram os primeiros representantes não de um reformismo sem reformas, mas de um reformismo de contrarreformas neoliberais. Com este reformismo de contrarreformas enterrou-se de uma vez por todas a ideologia-programa da humanização do capitalismo fundada sobre a base material do “Estado de Bem Estar Social”.

No momento em que as últimas conquistas do “Estado de Bem Estar Social” europeu vêm sendo arrancadas por sucessivos governos burgueses de direita e de “esquerda”, quando Lula ainda no seu primeiro mandato realizou a segunda reforma da previdência iniciada por Fernando Henrique Cardoso e Dilma vem precarizando ainda mais a legislação trabalhista e privatizando serviços públicos e estatais – como o demonstram os leilões dos campos do pré-sal, a privatização de estradas, portos e aeroportos – propor como estratégia o horizonte da conquista do bem estar social sob o capitalismo é semear ilusões em reformas que a própria esquerda reformista já enterrou como programa político.

Um autêntico bem estar social só poderia ser alcançado para as amplas massas com a estatização do sistema financeiro centralizado num banco único, com a estatização das empresas estratégicas de petróleo, energia elétrica, telefonia, informática, mineração, siderurgia e construção civil e a universalização dos serviços públicos e gratuitos de saúde, educação, transporte, limpeza, saneamento e iluminação sob o controle dos trabalhadores e do povo. Toda e qualquer medida de proteção ao trabalho ou de proteção social às amplas massas, por mais que seja efêmera, só pode ser arrancada e garantida através da luta anticapitalista dos trabalhadores assalariados e do povo pobre da cidade e do campo. Em tempos pós-neoliberais, o único Estado de Bem Estar Social possível é o Estado Operário Transicional.

Em busca da estratégia perdida

O capital é não é uma coisa, mas uma relação social. A contradição fundamental dentro da qual se move a produção, circulação e a reprodução do capital é aquela que se dá entre produção social realizada pelos trabalhadores assalariados, homens e mulheres fabricando e distribuindo mercadorias e prestando serviços em série dentro de grandes unidades produtivas, sejam trabalhadores da indústria, do comércio ou do sistema financeiro, e a apropriação privada realizada pelo capitalista, seja ele industrial do setor automotivo, da construção civil ou do agronegócio; comerciante da área de supermercados, de telemarketing, da educação ou da saúde; ou ainda um banqueiro.

Se, por um lado, a produção social de mercadorias serviu como um tremendo impulso para o desenvolvimento da humanidade, possibilitando a superabundância de bens e serviços, por outro lado, esta superabundância, na medida em que se encontra presa à forma de capital-mercadoria e à propriedade privada dos meios de produção, vem à tona contraditoriamente como o motivo aparente das crises econômicas, da escassez, da miséria. É este fenômeno que faz com que se acredite que o problema fundamental do capitalismo não esteja na esfera da produção, mas da distribuição.

Mas a origem de todos os infortúnios econômicos e sociais enfrentados pela humanidade nos marcos do capitalismo não se encontra localizada na esfera da distribuição da riqueza socialmente produzida e muito menos na má distribuição de renda, mas na esfera da produção e de sua correspondente político-jurídica, ou seja, a propriedade privada dos meios de produção, distribuição e serviços.

É esta contradição fundamental, multiplicada com o advento da época do imperialismo no início do século XX e elevada à décima potência com a globalização imperialista do início do século XXI, que vem levando a humanidade desde então a sucessivas catástrofes: a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais; a Guerra Fria e a ameaça de hecatombe nuclear; as guerras de ocupação do Iraque e Afeganistão e a militarização da produção e distribuição mundial do petróleo; o salto na precarização e exploração do trabalho assalariado com a liquidação de direitos históricos do proletariado; a exploração irracional da natureza que levou à presente crise ambiental.

A essência da estratégia socialista nada mais é do que liquidar esta contradição intrínseca ao capitalismo: pôr fim à propriedade privada dos meios de produção, transformando-os em propriedade social a serviço do bem estar da humanidade e não mais em função dos lucros dos capitalistas. Ao mesmo tempo essa mesma estratégia busca racionalizar a aplicação da ciência e da tecnologia à produção social para preservar a abundância que estas possibilitam, planejando democraticamente sua organização e explorando de maneira verdadeiramente renovável e sustentável a natureza. Esta foi, é e continuará sendo a única estratégia realista para a superação definitiva do modo de produção e do Estado capitalista.

Contra o Estado Capitalista e propriedade privada

No Estado moderno, entendido como Estado capitalista, o direito humano por excelência, o princípio fundamental de sua configuração legal e institucional, ou seja, aquele que hierarquiza os demais direitos dos cidadãos é o direito à propriedade privada dos meios de produção e distribuição de mercadorias.

Neste tipo de Estado, o direito à igualdade se resume à igualdade jurídica: todos são iguais perante a lei. Esta simples medida foi decisiva para liquidar os privilégios político-jurídicos da nobreza feudal, cumprindo uma tarefa histórica significativamente progressiva. A igualdade jurídica, no entanto, não está fundada, como podem pensar alguns democratas ingênuos, num autêntico direito humano, mas numa motivação econômica, individual e egoísta: o direito à propriedade privada.

No Estado capitalista, o direito à propriedade está acima do direito à vida e ao bem estar da humanidade assalariada. Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como os exércitos nacionais e as polícias foram erguidos sobre a base deste principio basilar. Nada nem ninguém, particularmente os movimentos de massa dos trabalhadores assalariados, pode pôr em risco este “direito humano” sagrado, sob o infortúnio de sofrer desde perseguições políticas, passando por sanções jurídicas, até a mais dura repressão, prisão e morte.

Para preservar o direito à propriedade privada dos meios de produção, a burguesia foi e é capaz de mandar pelos ares o chamado “Estado Democrático de Direito”, patrocinar golpes militares, regimes bonapartistas e nazifascistas. Esta clausula pétrea do direito burguês foi consagrada em todos os estados capitalistas por suas constituições e leis infraconstitucionais, assumissem estes estados forma de democracia representativa, de ditadura militar bonapartista ou mesmo de nazifascismo como regimes políticos. Da mesma forma, esta mesma burguesia pode tolerar governos de conciliação de classes encabeçados por partidos operários reformistas, se estes lhes garantem a paz social para explorar os trabalhadores assalariados, como o PT no Brasil contemporâneo.

Portanto, antes de analisar a forma política assumida pelo Estado, convém perguntar: que tipo de propriedade este estado protege, promove e subsidia? Se se trata da propriedade privada dos meios de produção e distribuição de mercadorias e serviços, estamos falando do Estado capitalista. Por mais democrática que assuma a forma do seu regime político, o Estado capitalista funda-se sobre a base da ditadura do capital sobre o trabalho, ou seja, da escravidão da produção social pela propriedade privada dos meios de produção.

Combater a forma mais sofisticada

A democracia representativa é a forma mais sofisticada assumida pelo Estado capitalista. Da mesma maneira que a democracia na Grécia estava baseada na escravidão, a democracia representativa sob o capitalismo está fundada na ditadura do capital sobre o trabalho assalariado.

Esta democracia capitalista possui cinco pilares fundamentais:

a) Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são uma espécie de balcão de negócios da burguesia. Por isso trata-se de uma democracia dos ricos. Obras públicas, compras governamentais, concessão de serviços públicos de transporte, limpeza pública, saúde, educação a empresas privadas, a dívida pública interna e externa contraída pelo Estado junto aos bancos são negociados a preço de ouro entre empresas privadas, lobistas, governos, parlamentares e juízes. Por isso, a corrupção é um expediente inerente ao próprio Estado Democrático de Direito.

b) O direito ao voto é dado a todo o povo apenas para eleger governantes e representantes nos parlamentos, mas os juízes sequer são eleitos. Por isso trata-se de uma democracia meramente representativa.

c) Como consequência do anterior, toda a política econômica e social é elaborada e decidida pelo Poder Executivo às costas dos trabalhadores e do povo. É o presidente da República ou primeiro ministro, o governador ou prefeito que escolhe pessoalmente os secretários de governo responsáveis pelas políticas econômica e social.

d) Há liberdades relativas de opinião, organização e manifestação que, se ultrapassarem os limites da propriedade privada dos meios de produção, serão imediatamente constrangidas e reprimidas pela polícia e as forças armadas.

e) Por fim, mas não menos importante, a burguesia não governa diretamente como classe, mas como indivíduos e partidos que buscam representar todos os cidadãos. Ela pode tolerar até mesmo um governo de um partido operário reformista se este lhe garantir a inviolabilidade da propriedade privada dos meios de produção e a paz social para seguir explorando a força de trabalho assalariada.

A chave da estratégia da transição socialista

O dogma catastrofista, de que o capitalismo se esgotaria objetiva e naturalmente como fruto de suas contradições econômicas intrínsecas caiu por terra durante o século XX. O capitalismo já deu mais do que provas suficientes de sua propensão objetiva para superar as crises cíclicas de superabundância e escassez, crises estas que são parte da sua natureza e revelam ao mesmo tempo seu poder de construção e destruição, sua força e sua fraqueza.

Considerando sua anatomia, seu movimento e sua dinâmica, o capital comprovou objetiva e sucessivamente, catástrofe econômica após catástrofe econômica, a faculdade de revolucionar constantemente a si mesmo, ou seja, a capacidade permanente de construção-destruição-reconstrução e de contínua expansão-contração-concentração para que possa continuar se reproduzindo. Sua incrível resiliência lhe permitiu até agora se regenerar e se conservar indefinidamente, ainda que esta regeneração venha a ser cada vez mais degenerada e sua conservação adquira feições cada vez mais bárbaras.

A liquidação da contradição cada vez mais absurda entre produção social e apropriação privada trata-se, portanto, de uma necessidade histórica, ainda não realizada. Da superação definitiva do capitalismo como modo de produção depende o futuro da humanidade e do planeta. Mas sua efetivação não se dará através de processos econômicos objetivos, sejam eles evolucionistas ou catastrofistas. Objetivamente, o único caminho para qual o capitalismo leva a humanidade conduz ao abismo da barbárie. A liquidação da humanidade e a destruição do planeta pelo capitalismo pode se dar objetivamente, com consequência da continuidade da produção, circulação e reprodução do capital em escala indefinida. Mas a superação do capitalismo e a transição socialista só podem ocorrer como fruto da vontade humana.

Tanto a restauração capitalista nos antigos Estados operários burocratizados quanto o fim do “Estado de Bem Estar Social” são a comprovação pela negativa de que a liquidação definitiva do capitalismo não se dará objetivamente, através de mecanismos econômicos, mas dependerá, sobretudo, da prática pensada entendia como intervenção político-prática, da vontade humana elevada a um programa da transição socialista e organizada sob a forma de um partido revolucionário capaz de convencer milhões de trabalhadores assalariados a cumprirem esta tarefa histórica.

Se, como nos ensinou Marx, os homens fazem a sua própria história, mas não sob as circunstâncias escolhidas por eles; se a consciência transformada em força material, em movimento de massas, pode modificar a existência, o veredito da história da luta de classes no século XX, a principal lição deixada para o século XXI cabe na célebre frase de Trotsky: “a crise da humanidade se resume à crise de sua direção revolucionária”. A chave para a transição socialista não pode ser encontrada na economia, na medida em que esta é a fechadura, mas deve ser buscada na política, quer dizer, na construção de organismos de frente única dos movimentos sociais que ambicionem retomar a independência de classe como um princípio inalienável, bem como na construção de um partido marxista revolucionário que seja capaz de ganhar os corações, a confiança e as mentes dos trabalhadores assalariados para a estratégia-programa da revolução socialista nacional e internacional.