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Grande imprensa e repressão policial nas Jornadas de Junho (segunda parte)

Romulo Mattos


III

No dia 20 de junho de 2013, o texto “Editorial: vitória das ruas” [1], publicado pela Folha de São Paulo, parece ignorar os escritos de 13 de junho de 2013, analisados na primeira parte deste trabalho. Além de parecer louvar a soberania popular no título, o editorialista cumprimenta a vitória do MPL, a quem havia chamado de “grupelho”,[2] não custa lembrar: “A revogação do aumento das tarifas de transportes em São Paulo e no Rio é uma vitória indiscutível do Movimento Passe Livre”.[3] A falta de legitimidade da luta do grupo que era visto como “marginal” e “sectário” é revista: “O movimento adquiriu tamanha repercussão no tecido social que ceder já se tornava imperativo de bom-senso”. A crítica possível à medida urgente tomada pelos executivos estaduais diz respeito a sua forma de financiamento –  embora tal preocupação não tenha lugar quando o assunto são os gastos com os megaeventos, entre outros temas que exigem grande investimento daqueles dois estados: “Agora lhes cabe enunciar de onde sairão as verbas para pagar a conta”.

A causa, que era considerada de “poucos milhares de manifestantes”[4] contra milhões de pessoas supostamente prejudicadas, agora parece representar a totalidade da população: “PT e PSDB se veem lado a lado, como faces da mesma moeda, diante de uma sensação de inconformismo geral. Nenhuma agremiação política parece dar conta, por enquanto, de fenômeno tão multifacetado e amplo”.[5] A crítica aos partidos e aos políticos tradicionais oportunamente ganha terreno: “É mais fácil parar metrópoles, como São Paulo e Rio, do que tirar do atraso a política nacional”. A Folha de São Paulo chega mesmo a criticar a violência policial, reivindicada poucos  dias atrás, e a coloca como uma das causas do fortalecimento dos protestos: “a truculência policial verificada na quinta-feira passada despertou largos contingentes da classe média para o movimento”. Embora tenha se referido aos “repetidos atos de vandalismo”, não há a sugestão de que eles sejam a tônica das manifestações. Seja como for, ainda há espaço para a crítica à atuação policial – tida como claudicante porque supostamente atrelada ao cálculo político –, a qual ainda não teria encontrado o meio termo justo: “Entre o excesso e a omissão policial, o comando do Estado parecia oscilar, incapaz de definir-se quanto à alternativa de menor custo eleitoral”.

Esse editorial foi publicado, pela manhã, no dia em que ocorreram grandes passeatas pelo Brasil, sendo a do Rio de Janeiro a mais expressiva, por ter reunido cerca de 300 mil participantes, segundo a polícia – embora organizadores e manifestantes tenham apontado para a presença de 1 milhão de pessoas. Com o aumento significativo dos protestos e com o Rio de Janeiro se tornando cada vez mais o epicentro dos movimentos de rua, no lugar de São Paulo, as Organizações Globo assumiram o papel de principal “partido” (GRAMSCI, 1991, p. 22-3) da burguesia brasileira na luta contra os anseios mais radicais das Jornadas de Junho – papel que vinha sendo bravamente desempenhado pelo Grupo Folha. Principalmente por meio dos seus telejornais, a Rede Globo selecionou na realidade particular das manifestações “um aspecto inteiramente particular, em função de categorias de percepção que lhes são próprias” (BOURDIEU, 1997, p. 25). Levando-se em consideração que o princípio da seleção é o sensacional e o espetacular, “os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais veem certas coisas e não outras; e veem de certa maneira as coisas que veem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado” (idem).

Cenas do quebra-quebra promovido por integrantes do Black Bloc no dia 20 de junho de 2013 foram mostradas à exaustão. Isso porque a “A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico” (BOURDIEU, 1997, p. 25). Em termos práticos, o que interessava à Rede Globo no noticiário sobre o protesto era a rebelião. No dia 21 de junho de 2013, a cobertura do Jornal Nacional ao evento do dia anterior foi exemplar. Cenas da depredação realizada por uma minoria de manifestantes foram exibidas em sequência, sem narração, durante três minutos e cinquenta segundos[6], como uma forma de “ocultar mostrando”. Uma dimensão dessa estratégia jornalística consiste em apresentar “uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar” (BOURDIEU, 1997, p. 24). Assim, o telejornal expôs em tempo integral a ação violenta de uma parcela dos participantes da passeata carioca, ao mesmo tempo que ocultou a brutalidade policial e as reivindicações políticas mais ameaçadoras vindas das ruas. Vocábulos como “vândalos” e “baderneiros” se tornaram sinônimos de manifestantes e foram repetidos ad nauseam.[7] Acima de tudo, devem ser entendidos como protocolos de leitura, ou seja, senhas, explícitas ou implícitas, que um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta dela, aquela que estará de acordo com a sua intenção (CHARTIER, 1996, p. 95-6).

Aumentando o poder de fogo, o jornal O Globo tratou de elaborar editoriais que justificassem a truculência policial no protesto do dia 20 de junho de 2013, que, convém lembrar, incluiu o lançamento de bombas de gás lacrimogêneo em hospitais e casas de shows, além de inúmeros tiros com balas de borracha contra a população – que participava ou não da manifestação.[8]

“As cenas se repetiram no Rio, quinta, com a tropa de choque da PM obrigada a afastar vândalos das proximidades do prédio da prefeitura, com o uso da cavalaria, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, e, no fim da noite, proteger o Palácio Guanabara” (grifo nosso).[9]

Esse texto já estabelece uma separação nítida entre vândalos e manifestantes pacíficos: “Como tem acontecido, os grupos se dispersam e voltam, sempre em meio a um quebra-quebra. Violência pura, sem qualquer relação com a absoluta maioria dos manifestantes, incapazes de conter quem tem usado as passeatas para agredir e destruir”. Mas é sobre o tema dos “baderneiros” que o autor se debruça, mais uma vez, enfatizando o motim. A presença de milhares de pessoas nas ruas de todo o Brasil, que significou o retorno das manifestações de massa no país, é associada a uma noite digna de ser esquecida: “O balanço da noite de quinta é trágico, com a disseminação de depredações e toda sorte de atos de vandalismo em várias cidades”.[10]

No trecho final, temos não só o investimento no tópico do “vandalismo” e do roubo pelos manifestantes (“é preciso extrair aspectos positivos e protegê-los do efeito da atuação de vândalos e saqueadores”), como a citação das principais bandeiras do movimento, na versão do jornal: “não à impunidade, à corrupção, a partidos de aluguel, a um sistema partidário ineficiente etc”. Percebamos que o emprego da abreviatura “etc.” serve para ocultar a pauta anticapitalista levantada pelo MPL e os partidos de esquerda. O interessante é que a crítica ao sistema político brasileiro se reverte imediatamente em carga contra o PT, pintado em cores autoritárias e responsabilizado por uma democracia fajuta – supostamente corrompida por artimanhas políticas que teriam transformado os trabalhadores em um rebanho de ovelhas, em uma referência ao legado de Hugo Chávez na Venezuela.

“Algo que se aproxima da perniciosa ‘democracia direta’ chavista, em que as instituições republicanas são subordinadas a um Executivo cesarista, senhor de todas as decisões, manipulador-mor das massas, mantidas coesas por programas populistas assistenciais economicamente insustentáveis”.[11]

Esse editorial tem como título “Passou dos limites”. De forma significativa, essa constatação se refere à conduta dos manifestantes e não à dos policiais, o que autoriza a repressão desses últimos contra os primeiros. Vale ressalvar que a inversão de tal proposição – que resultaria na afirmação de que a polícia carioca, sim, teria ultrapassado os “limites” durante as Jornadas de Junho – também seria imprecisa. A truculência verificada corresponde rigorosamente à normalidade policial em um contexto corrente de crise capitalista estrutural e planetária, que transforma o Rio de Janeiro em um “laboratório de agenciamentos estatais coercitivos” (BRITO, OLIVEIRA, 2013, p. 65). Nesse sentido, a “cidade expõe a militarização da vida sob a forma da hipertrofia da dimensão vigilante-repressiva-punitiva do Estado, a qual não só protege como opera um modelo de política urbana ao mesmo tempo empresariado e empresarial” (ibid, p. 65-6).

As reportagens cotidianas publicadas na internet também tentaram associar o protesto do dia 20 de junho de 2013 a um espetáculo bárbaro, protagonizado pelos manifestantes. O sítio G1, de propriedade da família Marinho, citou o público presente à passeata segundo a versão da polícia (300 mil), tendo, mais uma vez, deixado de lado os cálculos dos organizadores e dos participantes. A informação de que a passeata, inicialmente pacífica, terminara em “violência e vandalismo” [12] é o mote para que a descrição da “desordem” ganhe espaço na reportagem:

“Até o início da madrugada de sexta-feira (21), 62 pessoas haviam sido atendidas no Hospital municipal Souza Aguiar, feridas durante o tumulto entre um pequeno grupo de manifestantes e a Polícia Militar. No mesmo horário, cinco pessoas tinham sido presas pelo Bope por saque a uma loja de calçados. Outras 10 pessoas foram detidas. Segundo a polícia, a maioria era menor de idade e foi liberada após a chegada dos responsáveis”.[13]

O texto não deixa de mencionar as causas que teriam levado a população às ruas. Mas, astutamente, omite a proposta de transporte gratuito elaborada pelo MPL, a crítica aos gastos com os megaeventos, a censura aos privilégios concedidos a empresas e empresários próximos do poder (Delta e Eike Baptista, respectivamente) e o pedido de impeachment do governador Sérgio Cabral e do prefeito Eduardo Paes –  geralmente apoiados pelo setor de jornalismo das Organizações Globo, que costuma dispensar pouca atenção às denúncias de corrupção e improbidade administrativa relacionadas com aqueles dois governos.

“Com faixas e cartazes, as reivindicações pediam por maior orçamento na saúde e educação, a votação da PEC 37, além de críticas ao projeto de lei da Comissão de Direitos Humanos que pede o fim da proibição, pelo Conselho Federal de Psicologia, de tratamentos que se propõem a reverter a homossexualidade, chamada pelo deputado Marco Feliciano de ‘cura gay’”.[14]

Quanto ao foco principal da matéria – a baderna, a arruaça –, o G1 recorre ao depoimento de um jovem de 20 anos, “que preferiu não se identificar”. A confusão teria sido iniciada pelos manifestantes, de acordo com o misterioso depoente: “Um grupo de cerca de seis pessoas quebrou uma lixeira e explodiram dentro uma bomba. Em seguida, atiraram uma bomba contra a polícia. Os cavalos se assustaram e a polícia foi para cima de todo mundo”. Outro relato anônimo isenta os policiais de responsabilidade a ponto de dizer que “a confusão começou quando dois manifestantes começaram a brigar entre si em frente à cavalaria da PM, que estava em frente à Prefeitura. Os cavalos se assustaram e a cavalaria foi para cima dos manifestantes, que revidaram com pedras”. Mas é justo dizer que o sítio se refere a versões que responsabilizam a polícia, embora elas apareçam com menos ênfase: “Segundo outros manifestantes, esses homens eram da P2 – policiais militares do serviço reservado que trabalham descaracterizados – e brigaram de propósito para provocar o confronto. No entanto, aparentemente eles estavam na manifestação”.[15]

A rápida alusão à versão que identifica nos policiais a razão primeira da violência pode ser entendida como outra forma de “ocultar mostrando” o que é “preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade” (BOURDIEU, 1997, p. 24). Não obstante, o sítio G1 simula uma abordagem imparcial e inclui ainda a fala da estudante Jennifer Menezes, de 23 anos, que responsabiliza tanto os policiais quanto os “vândalos” pelo tumulto: “Estava com esperança que dessa vez o protesto fosse diferente porque a gente conseguiu que baixassem a passagem [de ônibus]. Não imaginava que isso fosse acontecer. Existem dois problemas: os vândalos e a polícia”.[16]

Não pode passar despercebido que o uso da palavra “vândalos” pela depoente vai no sentido dos editoriais publicados n’O Globo. Sob aparente neutralidade, o depoimento iguala policiais e “baderneiros” pela violência e assim ignora o fato de que, “perto dos que são cometidos pelos PMs, os atos violentos dos ‘homens de preto’ (Black Blocs) são brincadeira de criança” [17], como lembrou o historiador Daniel Aarão Reis, para o qual uma sociedade democrática não pode ter uma polícia militar. A reportagem também faz silêncio sobre o emprego da repressão desenfreada sobre todos os manifestantes, como forma de disseminar o medo e o pânico na população – e levá-la a associar protestos políticos a risco iminente de morte. É o debate fundamental sobre as diferentes modalidades de abuso policial (expediente agravado durante a ditadura militar e conciliado e alimentado durante os governos democráticos) e o desrespeito aos direitos humanos dos participantes das passeatas que é suprimido em tal enfoque. Por fim, torna-se invisível a “vingança preventiva” (BOURDIEU, 1998, p. 35) da PM, que, no dia 17 de junho de 2013, ficara momentaneamente acuada diante do ataque popular à Câmara dos Vereadores.

O curioso é que, depois dessa tentativa pouco esforçada de mostrar diferentes versões sobre os motivos do enfrentamento, em certas passagens, o texto dá a entender que a agressão parte dos “vândalos”, enquanto a polícia apenas reage. A depredação realizada pelos primeiros é acentuada, em uma estratégia redacional que contribui, implicitamente, para justificar a ação repressiva da segunda:

“Por volta das 19h, o entorno da Prefeitura do Rio se transformou em uma praça de guerra. Durante o caos, os policiais jogaram bombas de gás lacrimogêneo na tentativa de dispersar a multidão. Manifestantes jogaram pedras nos PMs, que revidaram com tiros de balas de borracha. Prédios, bancos e lojas foram destruídas por vândalos. Vinte radares da Prefeitura do Rio foram derrubados na Avenida Presidente Vargas, assim como pontos de ônibus foram depredados” (grifo nosso).[18]

Após mais dois parágrafos sobre os atos de “vandalismo” na cidade, a reportagem cita o cerco dos policiais ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, no Largo de São Francisco, no Centro – que abrigou cerca de 200 manifestantes que fugiam à perseguição policial. Mais uma vez, aparentando imparcialidade, a matéria é encerrada, de um lado, com a versão da PM sobre o assunto: “De acordo com a corporação, a PM se dirigiu ao local para garantir a segurança patrimonial dos prédios da universidade”. De outro, com as palavras do reitor da universidade, Carlos Levi: “A UFRJ vai continuar acompanhando a participação de seus estudantes nas manifestações legítimas, preocupada sempre com sua segurança, que deve ser garantida em nosso país, em sua democracia duramente conquistada”.[19] Seja como for, nenhum jovem refugiado no IFCS foi entrevistado para falar sobre a denúncia de cerco policial ao referido campus universitário, negada pelo comando da PM e confirmada por diversos testemunhos publicados na internet.[20]

A perplexidade de variados setores da sociedade diante do momento político vivido no país levou o Estado a formular respostas urgentes, mas parciais, como a anulação do aumento das passagens por prefeitos (com o apoio declarado de governadores) e a proposta de pacto social pela presidenta do país. Perante esse quadro, a Globo News não perdeu tempo e exibiu uma matéria especial, apresentada pela editora de economia, Juliana Rosa, com as propostas formuladas pelo economista Edmar Bacha – que além de estar relacionado com a fundação do PSDB, é um dos formuladores do Plano Real e membro do Instituto Millenium. O mercado estava ávido por um 6o ítem na reforma política proposta por Dilma Rousseff e o veículo de suas propostas foi a referida emissora. O programa mínimo consistia em redução dos impostos sobre as empresas (com redução de gastos públicos); troca de tarifas de proteção aos produtos importados por câmbio mais desvalorizado; e acordos comerciais com os EUA e países da Europa e da Ásia (tirando a ênfase do Mercosul). Em outras palavras, o empresariado também queria o seu passe livre.[21]

No dia em que aquela reportagem especial foi ao ar,  houve um massacre cometido pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) na comunidade da Nova Holanda, localizada no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro – “mais um episódio do processo contínuo de incursões policiais mortíferas nos territórios cariocas da pobreza, elas mesmo tão naturalizadas quanto a propriedade privada dos meios de produção ou a monetarização das relações sociais” (BRITO, OLIVEIRA, 2013, p. 65). Certas matérias chegaram a reproduzir o pronunciamento oficial da polícia, que acabava por criminalizar o trágico protesto realizado pelos moradores da favela, no dia 24 de junho de 2013:

“A Polícia Civil admitiu que três moradores inocentes estão entre os nove mortos na megaoperação realizada por cerca de 400 agentes do Bope, como mostrou o Bom Dia Rio. Inicialmente, havia a informação de que dois moradores tinham sido mortos, além de um policial do Bope e criminosos (grifos nossos)”.[22]

Incrivelmente, esse trecho aponta para “três inocentes” entre nove mortos, o que sugere a culpa dos outros seis (supostamente pertencentes ao tráfico de drogas) que perderam a vida e, consequentemente, justifica a ação do BOPE. É interessante perceber como a principal forma de deslegitimar um movimento social proveniente da favela é associá-lo mecanicamente ao tráfico. A imagem do traficante inimigo número um da cidade povoa a imaginação dos cariocas, alimentada por décadas a fio de reportagens sensacionais e filmes que se tornaram referências para o público consumidor do cinema nacional (Cf. OLIVEIRA, 2013). Não foi por acaso que Sérgio Cabral chegou ao cúmulo de anunciar, antes das manifestações, que recebera do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, alerta para atentados organizados pelo Comando Vermelho (CV) contra a população – informação insólita que não foi sequer problematizada pelos órgãos da grande imprensa.[23] Também vale notar que os jornais ultimamente vêm noticiando o surgimento de pichações do CV nos muros da cidade, após os protestos.[24]

A matança ocorrida na Nova Holanda revela que devem ser relativizadas as análises de primeira hora, segundo as quais, nas Jornadas de Junho, a classe média teria sentido na pele a violência policial empregada cotidianamente nas favelas. Se as passeatas realizadas no centro da cidade são reprimidas com o uso indiscriminado de armas de baixa letalidade, as periferias vivem os efeitos de uma política informal de genocídio, decorrente dos famigerados “autos de resistência” (mortes que a polícia declara terem se dado “em confronto”). As vítimas preferenciais das operações policiais conformam um perfil bem delimitado, que nos permite falar em criminalização da pobreza: homem, jovem, negro, morador de favela e periferia. Em 2007, a polícia do Rio de Janeiro registrou 902 “autos de resistência”, quase o quádruplo do apurado em 2000. Foram 5.030 pessoas eliminadas por policiais entre 2000 e 2007 na cidade (MATTOS, MATTOS, 2011, p. 8).

Outro grande momento do setor de jornalismo da Globo foi a cobertura das manifestações do dia 30 de junho de 2013, relacionadas com o final da Copa das Confederações. Matérias na internet disponibilizaram nas galerias de fotos apenas registros do enfrentamento entre policiais e manifestantes, ao anoitecer. Os protestos, que haviam sido pacíficos na maior parte do dia, foram reduzidos ao confronto.[25] Não obstante, por meio da repetição de cenas gravadas com celulares (no estilo Mídia Ninja), os telejornais da emissora tentaram associar toda violência ocorrida nas imediações do Maracanã ao lançamento de um Coquetel Molotov contra a polícia. Assim, uma bomba de fabricação caseira pareceu ter mais poder de destruição que 10,6 mil policiais e 7,4 mil militares armados, centenas de cavalos, 14 caminhões do Batalhão de Guarda do Exército, um Caveirão, um carro-tanque e R$ 1,6 milhões investidos em bombas de gás lacrimogêneo com concentração de 20% (acima dos padrões legais).[26] Os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão se devem ao fato de que a imagem tem a particularidade de produzir o efeito do real, podendo “fazer ver e fazer crer no que faz ver” (BOURDIEU, 1997, p. 28).

A feroz repressão policial[27] às Jornadas de Junho, comemorada pelo Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame[28], contribuiu para reduzir sensivelmente o público presente às manifestações – o que, no entanto, não impediu o estabelecimento de uma agenda de protestos na cidade. Na próxima parte deste trabalho, veremos que o apoio do setor de jornalismo das Organizações Globo à ação policial se tornou mais explícito nos meses seguintes. Essa atitude se relaciona não apenas com a própria continuidade dos protestos, mas também com o fato de que os movimentos de rua se alastraram para os bairros nobres da cidade e diversificaram os seus alvos – tendo, inclusive, chegado à porta da Rede Globo.

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão (seguido de A influência do jornalismo e Os Jogos Olímpicos). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BRITO, Felipe, OLIVEIRA, Pedro Rocha. “Territórios transversais”. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.

CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1991.

MATTOS, Marcelo Badaró, MATTOS, Romulo Costa. Fabricando o consenso e sustentando a coerção: Estado e favelas no Rio de Janeiro contemporâneo. Revista História & Luta de Classes, n. 11, 2011.


[1] Folha de São Paulo. “Editorial: vitória das ruas”. 20 de junho de 2013.

[2] Folha de São Paulo. “Editorial: retomar a Paulista”. 13 de junho de 2012.

[3] Folha de São Paulo. “Editorial: vitória das ruas”… idem para as próximas citações deste parágrafo.

[4] Folha de São Paulo. “Editorial: retomar a Paulista”…

[5] Folha de São Paulo. “Editorial: vitória das ruas”… idem para as próximas citações deste parágrafo.

[6]http://globotv.globo.com/rede-globo/jornal-nacional/v/jornal-nacional-edicao-de-sexta-feira-21062013/2649043/ ou http://www.tamaneiro.com/assistir-jornal-nacional-21062013-completo/. Acessado em: 5/10/2013, às 15:00.

[7] A esse respeito, ver o vídeo “Vandalismo, Vandalismo, Vandalismo”, hospedado no YouTubehttp://www.youtube.com/watch?v=04XYSEl2ln4. Acessado em: 5/10/2013, às 15:05.

[8] UOL. “Tropa de choque joga bomba e atira em direção a hospital que atende manifestantes no Rio”. 21 de junho de 2013; Extra. “Protesto no Rio: Circo Voador é alvo de bombas de gás lançadas pela PM. 20 de junho de 2013”.

[9] O Globo. “Ultrapassou os limites”. 22 de junho de 2013.

[10] idem.

[11] idem.

[12] G1. “Ato no Rio reúne 300 mil pessoas e termina em confronto com a PM”. 21 de junho de 2013.

[13] idem.

[14] idem.

[15] idem.

[16] idem.

[17] Estado de São Paulo. “‘Atos violentos de Black Blocs são brincadeira de criança perto dos que são cometidos por PMs’, diz historiador”. 21 de setembro de 2013.

[18] G1. op. cit.

[19] idem.

[20] BBC Brasil. “Novos relatos de abuso pressionam PM do Rio”. 21 de junho de 2013.

[21] Jornal Globo News. “Exclusivo web: veja a íntegra da entrevista com o economista Edmar Bacha”. 24 de junho de 2013.

[22] G1. “Sobe para 10 número de mortos em operação na Maré, no Rio, diz polícia”. 26 de junho de 2010.

[23] UOL. “Cabral diz que recebeu alerta para atentados terroristas de facção em protesto no Rio”. 20 de junho de 2013.

[24] Folha de São Paulo. “Centro do Rio amanhece com rastro de destruição após protesto”. 08 de outubro de 2013.

[25] G1. “Veja fotos de manifestações no Rio neste domingo, 30”. 30 de Junho de 2012.

[26] UOL. “Estoque acaba e PM compra bombas de gás lacrimogêneo emergencialmente no Rio”;  Diário Online. Caveirão é acionado para combater protesto; Rádio Voz da Rússia. “Exército reforça segurança do Maracanã”; Terra. “Rio de Janeiro redobra segurança para protestos durante final”. 30 de junho de 2013.

[27] Uma boa coletânea de vídeos sobre os abusos cometidos pela polícia pode ser encontrada em: http://www.youtube.com/playlist?list=PLCQtOyjFwDDKgHhXJG6XRpQLPwEJVKfp2. Acessado em 5/ 10/ 2013, às 14:00.

[28] O Dia. “Beltrame:  ‘Não há como separar o vândalo do manifestante’”. 7 de julho de 2013.

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