Pular para o conteúdo
TEORIA

O tacão de ferro no Rio de Janeiro

Rejane Hoeveler

“Maldito tacão de ferro! Mais cedo do que espera, será arrancado da humanidade extenuada!” [1]

Não é uma grande novidade a empáfia da burguesia brasileira. Mas um episódio, ocorrido no último sábado no Rio de Janeiro (13/07), que em outros tempos poderia passar despercebido, talvez seja um dos eventos mais simbólicos sobre o que é essa verdadeira plutocracia brasileira – algo que lembra as vivas imagens trazidas por Jack London em seu romance publicado pela primeira vez em 1907. Tacão de ferro, título do livro, era a expressão utilizada pelo escritor norte-americano para designar a oligarquia burguesa dos EUA no início do século XX, e a união promíscua entre famílias de magnatas, como Rockfeller e J. P. Morgan, com governantes, juízes, padres, e representantes da imprensa.

Refiro-me aqui ao casamento de Beatriz Perissé Barata, neta do empresário Jacob Barata, o “Rei dos Ônibus” do Rio, e Francisco Feitosa Filho, herdeiro do ex-deputado federal cearense Chiquinho Feitosa – por sinal, líder dos empresários do setor de transporte coletivo do Ceará, sócio majoritário de cinco empresas de ônibus urbanos e rodoviários. Jacob Barata também é forte em Fortaleza, onde além de empresa de ônibus, possui a concessionária Ceará Diesel, revendedora de coletivos, segundo o jornal O Globo.[2] Uma breve sondagem dos convidados da festa, embalada por um show do “cantor” Latino (sim, aquele, que queria ser o hit das manifestações) talvez bastasse para mapear algumas das “baratas” mais asquerosas da burguesia brasileira. Somente algumas das relações íntimas de Sérgio Cabral bastam para visualizar a Grande famiglia no comando do Rio de Janeiro, a começar por sua própria esposa, filha do presidente da Fetranspor e advogada da Supervia e do Metrô; passando por Fernando Cavendish, empreiteiro dono da famigerada construtora Delta; e claro, de Eike Batista, que como é amplamente sabido, ganhou de presente a concessão do Maracanã, além de muitos outros favores – só para citar os “cases” mais famosos.[3] O governador, amigo íntimo de Jacob Barata, era convidado de honra, mas desistiu de comparecer. O padrinho? Ninguém menos que Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal!

Centenas de manifestantes, revoltados, porém muito bem-humorados, permaneceram durante horas, primeiro, na frente da Igreja do Carmo, no Centro do Rio, onde foi realizada a cerimônia – de onde, para sair, o empresário precisou de um cordão de isolamento formado por policiais e seguranças – e, depois, na frente do Copacabana Palace, onde aconteceu a festança.[4]

Foi lá, na calçada da orla “princesinha do Brasil”, que, ao fim da festa, o Batalhão de Choque da PM dispersou o protesto com spray de pimenta e bombas de efeito moral – certamente não utilizaram as de gás lacrimogêneo para não incomodar os narizes dos convidados, pois como se sabe, as bombas que estão sendo utilizadas no Rio, contrariando toda e qualquer legislação nacional e internacional, têm potência dobrada em relação à “convencional”.

Alguns convidados jogavam drinks e aviõezinhos com notas de 20 reais aos manifestantes da varanda, caçoando ostensivamente dos “pobres” do lado de fora. Um dos burgueses (ou seus capangas) mais exaltados chegou a descer para bater nos “indolentes”. Como no intragável programa televisivo Mulheres Ricas, fazem questão de expor o esbanjamento. Uma burguesia que parece não temer inflar o ódio de classe crescente ao seu redor, lembrando Maria Antonieta nos estertores do Antigo Regime francês, só que aqui era “Se não tem pão, comam bem-casados!”… Não por acaso, uma socialite presente à festa revelou ter lembrado da “princesa de Lamballe, melhor amiga de Maria Antonieta, com a cabeça espetada na ponta de uma lança, pela multidão que invadiu as Tulherias.” [5]

Antes de a polícia “tomar as providências” para “conter o tumulto”, clamadas pela elite branca aos gritos de “Vai Choque!”, o rapaz Ruan, de 24 anos, morador do complexo do Alemão, foi atingido por um pesado cinzeiro de vidro jogado de dentro do Hotel por um dos convidados. O sangue de Ruan, que levou sete pontos na cabeça, ainda estava nas paredes do Copacabana Palace na manhã de 14 de julho.

Na favela a bala não é de borracha

Ruan e os moradores do complexo do Alemão certamente não se esqueceram do massacre realizado alguns dias antes da realização dos Jogos Pan Americanos, há seis anos. A mega-operação policial no Conjunto de Favelas do Complexo do Alemão em 27 de junho de 2007 resultou na morte de 19 pessoas, pelo menos 11 delas comprovadamente sem nenhuma ligação com o tráfico; 44 só entre maio e junho de 2007; entre elas uma criança que estava na escola. Na ocasião, Philip Alston, relator da ONU especializado em execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias, afirmou que não ouviu nenhum argumento plausível da polícia para a realização da operação. Segundo relatório publicado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), os dezenove mortos do dia 27 de junho receberam, em média, 3,84 tiros cada, e quatorze foram mortos com tiros na parte superior do corpo, seis deles na cabeça. Com o costumeiro cinismo, Beltrame declarou que “fomos lá devolver direitos aos cidadãos”.

O mais recente episódio do show de horrores nas favelas cariocas foi no bairro de Nova Holanda, na Maré, entre os dias 24 de 25 de junho – onde no dia seguinte a uma manifestação em Bonsucesso, e após a morte de um sargento do BOPE, os moradores presenciaram uma ação de vingança, com direito a requintes de crueldade, com alguns mortos a faca – fazendo juz à “faca na caveira”, símbolo da “Tropa de Elite” do Rio.[6] Isso sem contar as conhecidas relações de Cabral e sua gangue com as milícias que dominam de forma fascista grande parte do território fluminense.

A cidade está sitiada

Desde o megaprotesto do dia 20 de junho, Cabral impôs na prática a proibição à manifestação. Ficou muito claro que o objetivo não era apenas dispersar os protestos, mas perseguir, encurralar e aterrorizar toda e qualquer pessoa que estivesse nas ruas. Um brutal terrorismo de Estado foi desencadeado especialmente nos espaços de concentração tradicional da juventude, da boemia e das manifestações políticas.

Além disso, tanto nos protestos do dia 20 de junho, como no último dia 11, o mesmo padrão de sabotagem se repetiu. Numa ação organizada pela Polícia eis que em meio aos manifestantes surgem molotovs feitos com garrafas de cerveja dentro de caixas de papelão, com o objetivo de criminalizar o movimento e gerar desconfiança entre os ativistas, mantendo o discurso da cisão do movimento entre “pacíficos” e “vândalos”. No dia 20, como se sabe, “surgiram” entre os “manifestantes” grupos organizados para expulsar a coluna da esquerda organizada, numa ação provavelmente orquestrada pela própria polícia estadual, ou com sua conivência.

As provocações orquestradas pelos “P2” estão sendo relatadas nas redes sociais, a partir de diversos testemunhos e comprovam que o aparelho de repressão não mede esforços para tentar acabar com a onda de manifestações. Mais uma vez, até hospitais tiveram seus corredores tomados por gás lacrimogêneo. O terror na Lapa do último dia 20 repetiu-se mais uma vez, atingindo agora a Praça São Salvador, próximo ao Palácio Laranjeiras, residência oficial do governador Sérgio Cabral. Na noite do dia 11/07 foram vistos alguns carros descaracterizados, ocupados por homens com máscaras e armamentos, circulando e atirando a esmo pelos bairros de Flamengo, Botafogo e Laranjeiras.[7]

Numa declaração típica do cinismo gângster de sempre, que já incluiu chamar professores de “vândalos” e bombeiros de covardes, Cabral logo lançou uma nota afirmando que “O vandalismo não será tolerado no Estado do Rio de Janeiro. Grupos que vão para as ruas com o objetivo claro de gerar o pânico e destruir o patrimônio público e privado tentam se aproveitar das recentes manifestações legítimas de milhares de jovens desejosos de participar e aperfeiçoar a democracia conquistada com muita luta pelo povo brasileiro.” Logo se vê que o governador só estava tentando “aperfeiçoar a democracia”!…

E mais uma vez, a cobertura da mídia, em especial de The Globe, serve para criar o consenso da ação estatal, produzindo uma manipulação grosseira dos fatos, agindo como um verdadeiro braço do “Tacão de Ferro”, do mesmo jeito que na favela sempre estão a defender as ações assassinas dos BOPEs e Caveirões.  Tal como no romance de Jack London, a imprensa cumpre direitinho seu papel de capanga da burguesia. E a classe média “coxinha”, que votou em Cabral por causa das UPPs, aplaude. Inesquecíveis também, no dia 30 de junho, algumas horas antes da brutal repressão que se abateu contra os milhares de manifestantes do lado de fora do Maracanã, aqueles personagens da alta classe tirando fotos ao lado do Caveirão.[8]

E os lucros só aumentam

E, enquanto a tropa de choque da polícia militar perseguia inocentes, atirava em hospitais e prendia advogados da OAB, o secretário de segurança José Mariano Beltrame estava sendo escolhido a “personalidade do ano”, numa festa de gala que aconteceu no Palácio da Cidade, em Botafogo. A “personalidade do ano” do “Prêmio Marketing Contemporâneo” foi eleita pela diretoria da ABMN – Associação Brasileira de Marketing & Negócios.[9] De fato, a política de segurança do Rio de Janeiro merece um prêmio de marketing e negócios!

A plutocracia nacional e internacional realmente tem muito que agradecer. Diversas transnacionais, em união igualmente íntima com a FIFA, lucraram horrores graças à imposição dos horrores do lado de fora dos estádios.  E o Brasil foi “aprovado” no teste para a Copa! Isso sem contar empreiteiras, e diversos outros setores capitalistas envolvidos nos mega-projetos ao estilo “Porto Maravilha”.

Mas talvez nenhum setor esteja se beneficiando tanto quanto a indústria eufemisticamente chamada “de segurança”. Segundo estatísticas do Stockholm International Peace Research Institute, o Brasil se tornou o quinto maior importador de armas e tecnologia militar israelenses; quase o dobro da quantidade de exportações de Israel para os EUA. E para reforçar ainda mais a cooperação, foi firmado em 2010 um novo acordo de cooperação em segurança, que assegura o comércio de “tecnologia sensível”.[10] O Brasil parece ter importado não apenas esta tecnologia, mas também os métodos fascistas do Exército que massacra o povo palestino. A empresa israelense Global Shield, que mantém contratos com as forças de ocupação na Palestina, venceu recentemente uma concorrência milionária do governo do Estado. A Global Shield viu no negócio uma oportunidade de expor publicamente, nos jogos de 2014 e 2016, “o maior showroom de segurança pública mundial”.[11] A Condor também é uma das empresas mais beneficiadas pela escalada do armamento estatal. O Brasil já destinou pelo menos R$ 49 milhões à Condor, só com vistas à Copa das Confederações e a Copa do Mundo de 2014.[12]

O nível de brutalidade a que chegou o governo de Cabral nas últimas semanas tornou-se intolerável para os trabalhadores e a juventude carioca. A plutocracia que aguarde, pois não perde por esperar aquilo que nosso escritor socialista americano chamou de “o rugido da fera do abismo”: o povo explorado, sedento de justiça e desejoso de vingar seus mortos.

*Ruan, depois de socorrido, voltou ao protesto e declarou que não vai sair das manifestações.


[1] LONDON, Jack. O tacão de ferro. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 18.

[2] “Casamento de neta de Jacob Barata é marcado por protestos.” O Globo (online), 13 de julho de 2014. Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/casamento-de-neta-de-jacob-barata-marcado-por-protesto-9027497#ixzz2Z36jt2I1. Ainda segundo a reportagem, “O casal Beatriz e Francisco tem pelo menos duas listas de presentes em sites na internet. Numa delas, na loja H.Stern Home, já foram comprados três aparelhos de jantar de 24 peças, no valor de R$ 4.950 cada um. Outro mimo, ainda não adquirido, é um faqueiro prateado de 130 peças, no valor de R$ 37.150”.

[3] “Conheça Sérgio Cabral, o ditador do Rio”. Disponível em http://agencianota.blogspot.com.br/2013/07/conheca-sergio-cabral-o-ditador-do-rio.html

[4] “Noivos empresários saem de casamento com cordão de isolamento.” O Globo (online), 14 de julho de 2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/noivos-empresario-saem-de-casamento-com-cordao-de-isolamento-9028151#ixzz2Z3I2G3h1

[5] Ver “Casamento de Beatriz Barata: nosso 14 de julho, nossa Bastilha carioca!”, de Hildegard Angel.  Disponível em: http://www.hildegardangel.com.br/?p=25127.

[6] Sobre isto, ver neste blog, “Milhares à Maré, solidariedade às famílias das vítimas e à comunidade”. Disponível em:  http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1618.

[7] Como ficou provado: http://www.youtube.com/watch?v=Bel9mWGnz7c, e a Globo não mostrou. Ver também vídeo mostrando a dispersão da passeata pacífica na Cinelândia: https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=jl7iDIPkTwk#at=213. Um dossiê completo pode ser encontrado na página do Fora Cabral no Facebook: https://www.facebook.com/MissaoForaCabral.

[8] Para quem tiver estômago, assistir http://www.youtube.com/watch?v=fLLGrOmNPVA.

[9] Ver a lista dos premiados em http://www.premiomktcontemporaneo.com.br/vencedores/#.UeLpWNKR969.

[10] Maiores dados podem ser acessadas no site http://www.sipri.org/.

[11] Ver mais informações em:  http://www.pstu.org.br/node/19511.

[12] “Brasil exporta gás lacrimogêneo para repressão na Turquia.” Disponível em http://somostodospalestinos.blogspot.com.br/2013/06/brasil-exporta-gas-lacrimogeneo-para.html.