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TEORIA

Marxismo e ciência geográfica: contribuições acadêmicas no âmbito da Geografia Nova

Paulo Roberto de Albuquerque Bomfim

A partir de compromissos políticos à esquerda (no clima de repúdio ao regime militar), os quais suscitarão ao longo da década de 1980 a incorporação mais vigorosa de teorias marxistas à geografia, uma geração de jovens geógrafos – a “geração de Fortaleza/1978” – enriquece paulatinamente antigos campos dessa ciência, no debate de temas dos quais já falei em texto anterior[1], tais como: a renda da terra, como aporte à geografia agrária; a valorização do espaço, como substrato à geografia urbana, etc.

É preciso avançar, porém. Apesar da chegada do marxismo à geografia se dar fruto menos do debate universitário que de uma militância política – conforme comentei, significou, sim, maior robustez no debate em tela.

Pretendo destacar aqui os anos nos quais se faz sentir a presença de Milton Santos (1926-2001), na virada para a década de 1980, sem desejar jamais esgotar um complexo debate na geografia brasileira de então. Geógrafo cuja obra, em si mesma, bastante diversificada ao longo de anos de carreira, já tinha repercussão em vários países desde os anos de 1960 – como Estados Unidos e França –, os textos de Milton, como testemunham muitos do que foram seus alunos diretos, jamais tinham sido lidos nos bancos das universidades até então.

Por isso mesmo, dada essa imperdoável defasagem, o ingresso de Milton Santos na Universidade de São Paulo, em 1984, deixará indelével marca na formação de uma geração de importantes geógrafos uspianos da “geração de 1978”: Ana F. Alessandri Carlos, Wanderley Messias da Costa, Antonio Carlos Robert Moraes, Ariovaldo U. de Oliveira, Maria Adélia A. de Souza; só para citar alguns.

Geografia Nova – a geração em torno de Milton Santos.

Articula-se a sua volta ao Brasil entre 1976/1977, estando à frente nomes como os de Armen Mamigonian e Bertha Becker. Logo, o professor lecionará na Universidade Federal do Rio de Janeiro[2].

Nos anos anteriores, como intelectual bastante ativo no exterior, após seu exílio em seguida ao golpe militar, nota-se uma produção ao estilo dos desenvolvimentistas dos anos de 1950-1960, na relação entre culturas e ocupação do território, associando as diferentes temporalidades da economia colonial, economia agroexportadora e “moderna e industrial” a três grandes tipos de região no Brasil: Amazônia, Zona da Mata nordestina, São Paulo. Porém, na contramão da maioria dos geógrafos marxistas que absorveram o planejamento desenvolvimentista enquanto prática movida pelas atividades comerciais (setor terciário), Milton destacaria a expansão industrial como fator fundamental para a “urbanização interior” do país. Nesse sentido, a importância dessa observação, hoje talvez banal, estava em denunciar a maneira acrítica como os geógrafos do IBGE valeram-se das teses da geografia marxista francesa.

Essas observações prenunciam um dos aspectos centrais na obra de Milton para a crítica à geografia tal como se praticava no Brasil dos anos de 1970. Seu hoje clássico Por uma Geografia Nova, livro originalmente publicado em 1978, é uma sofisticada crítica à Nova Geografia, de matriz neopositivista, a qual se impôs frente à geografia francesa – com todas as suas limitações de um marxismo positivista, mas muito mais progressista –, encampada pelos militares e tecnocratas, na pretensão de que certa uniformidade das organizações espaciais, sustentada pelo planejamento, deveria se revestir de um suporte “técnico”, “isento”, bastante imbricado com as ciências matemáticas, aliás; tornando supostamente a atividade de planificação mais eficiente.

Planejamento – posição de repúdio à tecnocracia.

Na esteira de Henri Lefèbvre (1901-1991), Milton Santos atacava a intervenção do Estado – via seus órgãos burocráticos e políticos –, no espaço, dele se servindo instrumentalmente para atingir objetivos geopolíticos e de “otimização” do capitalismo.

No âmago dessa análise, reside uma ofensiva a um dos modelos favoritos de planificação entre economistas e geógrafos nas décadas de 1960/1970 (inclusive entre marxistas): a teoria dos polos de crescimento, de François Perroux.

O fato elementar dessa teoria é que o crescimento não surge por toda parte de uma só vez. Manifesta-se, ao invés, com intensidade variável em pontos ou polos de crescimento que se expandem pelo conjunto da economia através de determinados canais: os eixos de desenvolvimento, cuja armadura, contendo vias de transportes e conjuntos complexos de atividades, faz da Nação uma constelação de polos com seus meios de propagação, estruturada economicamente pela combinação de unidades motrizes ativas.

Mas como se formam essas unidades motrizes? Considerando o espaço da economia nacional não coincidente com as fronteiras do Estado, mas enquanto domínio dos planos econômicos do governo, Perroux entende que a partir dos polos se dá o crescimento econômico; jamais simultaneamente no espaço, porém, irradiando de “nós”, tarefa que exige a eleição em pontos do espaço de indústrias motrizes e complexos de indústrias. Para François Perroux, o domínio de um plano econômico deveria ser capaz de fazer esses campos de força convergir para centros ou polos em uma nação, de maneira a que ela não fosse um mero ponto de passagem dos fluxos econômicos; mas sim, um local apto a fixá-los.

Dos gabinetes do Ministério do Interior e do IBGE, saíram copiosas produções fundadas nesse tipo de teorização. Ora, à especulação (até básica) de que se as unidades motrizes teriam condições econômicas e técnicas prévias suficientemente aptas a esse efeito dilatador, abrem-se flancos para uma das maiores fragilidades dessa visão de planificação quando transplantada para os países subdesenvolvidos: afora a tendência à acumulação num ponto privilegiado de um país subdesenvolvido agravar a pobreza em outras regiões, indaga-se até que ponto o setor industrial é básico para alavancar o número de empregos desejados e a própria capacidade de criação de outras indústrias.

Observou-se que foram de duas ordens as limitações da transposição das teorias sobre polarização para os países subdesenvolvidos. De um lado, para Milton, havia a problemática de alocar recursos em pontos privilegiados e, de outro, o reforço de dependência de tecnologia, pesquisa e pessoal em relação ao exterior do polo; atrelamento às regiões mais desenvolvidas de um país e às economias capitalistas centrais.

Apesar das inadequações de muitas dessas teorias em relação à realidade de países subdesenvolvidos, concepções como as de polos de desenvolvimento, da teoria dos lugares centrais, da teoria da difusão das inovações, entre outras, foram incontestavelmente aceitas em países que se deparavam com uma questão central no que tange à organização de seus territórios – a penetração e reprodução da técnica em seus espaços.

Técnica e espaço

Entendo o espaço como resultado e processo da ação dos homens sobre o território, intermediados pelos objetos (formas), naturais e artificiais, e seus usos (funções) dentro de estruturas (econômicas e sociais da sociedade)[3], Santos consagra a análise geográfica segundo a qual a própria divisão territorial – e internacional – do trabalho se relaciona com as implicações da tecnologia sobre o território e a sociedade, finalidade para a qual há (cada vez mais) uma inequívoca contribuição da ciência – a serviço da técnica.

Na sua conhecida análise, “a união entre ciência e técnica” transforma, a partir dos anos de 1970, o território brasileiro, revigorado, posteriormente, “com os novos e portentosos recursos da informação, a partir do período da globalização e sob a égide do mercado [o qual] graças exatamente à ciência, à técnica e à informação, torna-se […] global” (SANTOS; SILVEIRA, 2005, p.52-53).

Razão e emoção

No final de sua vida, Milton nos deixará um imenso legado e desafios para a geografia, tais quais: a compreensão das dimensões culturais, econômicas e políticas da globalização, bem como seus significados. O quanto o mundo contemporâneo se fragmentou territorialmente, mas se tornou mais e mais globalizado, o Sistema Mundo articulando-se sem mais a necessidade de conquistas territoriais. A globalização como fábula neoliberal, em contraponto ao que ela é como realidade perversa e desigual.

E o espaço de esperança que o mundo – ou meio – técnico, científico e informacional pode ser gestado numa crítica ao capitalismo e com a própria apropriação dessas técnicas, dessa ciência e dos meios de informática por atores sociais conscientes de seus posicionamentos políticos na luta de classes.

Sistematizar o pensamento riquíssimo de Milton Santos não poderia ser a tônica deste artigo. Seria pretencioso e vão. Apontei alguns elementos e o voltarei a discutir outros pontos desse complexo relacionamento entre geografia e marxismo.

Talvez partindo dos discípulos diretos de Milton. E, por que não: partindo-se da “geração de Fortaleza/1978”?

Bibliografia.

LEFÈBVRE, Henri. La production de l’espace. 4e éd. Paris: Anthropos, 2000.

PERROUX, François. A economia do século XX. Lisboa: Herder, 1967.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2002, 289.

SANTOS, Milton. Economia espacial. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2003, 204.

SANTOS, Milton; SILVEIRA, María Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005.


[1] Geografia e marxismo: entre a ruptura política e a continuidade teórica, publicado neste mesmo Blog, cuja leitura é importante para uma devida compreensão do presente escrito.

[2] Especula-se que o ingresso de Milton Santos na UFRJ teria, sido obstaculizado por alguns nomes do IBGE, politicamente ligados à direita, como Nilo Bernardes, Miguel Alves de Lima e Speridião Faissol, por sinal, profissionais que mantiveram estreitos contatos com o Instituto Pan-americano de Geografia e História, ligado à OEA e cuja sede principal localiza-se na Cidade do México.

[3] Lefèbvre entenderia o espaço enquanto conteúdo de formas, funções e processos.

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