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TEORIA

Geografia e marxismo: entre a ruptura política e a continuidade teórica

Paulo Roberto de Albuquerque Bomfim

Na arguta expressão do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, a partir das décadas de 1970-1980, abrigar-se sob o guarda-chuva marxista tornou-se “politicamente bom”, senão oportuno, para uma imensa maioria dos profissionais da geografia, em que pese suas inclinações políticas nem sempre afinadas “à esquerda”. E principalmente, em minha opinião, a despeito da conhecida e incômoda fragilidade teórica desse campo das humanidades.

Gostaria de compartilhar aqui, de maneira muito breve e simplificada, inclusive para futuras discussões, acerca das características basilares de tal “geografia marxista”e, principalmente, sobre como ela teria sido gerada no Brasil. Em suma: até que ponto houve uma ruptura política nos meios acadêmicos? Como a geografia incorporou o marxismo? Perguntas que são pertinentes, haja visto tratar-se de um período em que o IBGE, por exemplo, explicitou como nunca seu cariz conservador: em plenos anos de chumbo da ditadura militar e a indelével marca do positivismo na ciência geográfica.

Geografia radical, geografia crítica

Muitas vezes rótulos como “geografia radical”, geografia “crítica” e geografia marxista tornaram-se, acriticamente, sinônimos. Façamos, porém, algumas distinções básicas. Engendrada no ambiente acadêmico estadunidense da década de 1960, pode-se entender, com base em ampla literatura geográfica, referências à “geografia radical” – ou mesmo “marxista” – enquanto aquela elaborada por geógrafos politicamente ligados às mais variadas correntes “de esquerda”. Exemplo emblemático seria o do conhecido anarquista e communard Élisée Reclus (1830-1905), autor de uma copiosa e célebre Nova Geografia Universal. Aliás, a década de sessenta assinala uma “redescoberta” dos geógrafos anarquistas (Kropotkin, Metchnikoff, Charles Perron) enquanto supostos pioneiros da geografia marxista – note-se bem –, a despeito de seus serem seus métodos de pesquisa fundamentalmente devedores da Corologia [estudo comparativo entre áreas] alemã de Carl Ritter (1779-1859), de matriz romântica. Igualmente, considerar-se-iam como “radicais” aquelas geografias engajadas a temas libertários: anticolonialismo, antiescravismo, postura crítica em relação a políticas estatais “oficiais”, estudos sobre minorias étnicas, de gênero etc.

Geografia e marxismo: esboço

A geografia marxista possui, obviamente e grosso modo, algumas linhas de frente bem demarcadas. Abaixo segue apenas um breve esboço.

A linha primeira reside no tratamento, bastante simplório – como afirma David Harvey –, de busca na ampla e complexa obra de Marx por referências a temáticas territoriais e regionais, resvalando em transcrições literais muitas vezes absolutamente descontextualizadas.

Sem dúvida mais sofisticada, a segunda vertente aponta para o excessivo idealismo da linha “radical” e humanista citada acima, rechaçando também o estruturalismo historicista na disciplina, o qual surgira, é verdade, como desejável crítica ao neopositivismo dominante nas ciências a partir dos anos de 1940 e 1950.

Caminhando mais além, a influência do marxismo na geografia (um trajeto acadêmico traçado, primeiro, nos meios franceses e norte-americanos) fez-se sentir através de uma reelaboração de pressupostos positivistas, daí se falar num “marxismo positivista”, bastante esquemático.

Tal linha de interpretação ganharia ressonância através da obra de Pierre George (1909-2006); particularmente por meio do livro A Geografia Ativa, publicado em 1964, do qual foram co-autores Raymond Guglielmo (1923-2011), Yves Lacoste (1929) e Bernard Kayser (1926-2001). Mais que o próprio livro, porém, o posicionamento desses geógrafos ligou-se praticamente a toda uma corrente de estudos geográficos. As preocupações desses autores com questões sobre subdesenvolvimento, urbanismo e planejamento levaram a que suas propostas fossem (para falar no caso brasileiro) amplamente acatadas, poder-se-ia dizer, por uma dupla frente: de um lado, recepcionadas como propostas metodológicas relacionadas à regionalização do espaço, sobretudo pelo IBGE; por outro lado, aceitas como um conjunto de proposições de uma geografia “à esquerda”; engajada. Vale elucidar a questão, pois. Tal dubiedade da Geografia Ativa adviria de uma “ruptura política”, haja vista o engajamento de seus propositores ao Partido Comunista Francês, associada a uma continuidade teórica, testemunhada por uma postura, por parte desses geógrafos, absolutamente acrítica em relação à herança da “geografia regional francesa”.

Em síntese, a referência ao marxismo ocorreu de maneira muito imbricada com o planejamento. O ordenamento espacial, nesse sentido, compreendido como chave para uma melhor “justiça social”. E a planificação da economia – vide modelo soviético-stalinista ou maoísta (é fundamental destacar o elogio de Yves Lacoste ao “modelo chinês” como único passível de ser “aplicado” a outras realidades subdesenvolvidas) – percebida como sinônimo de “socialismo”. E, também, modelo de correção de desequilíbrios regionais, traços certamente de sabor bastante reformista.

Geografia e marxismo: sua prática política no Brasil

No Brasil, paradoxalmente, foram os próprios resultados pífios da planificação estatal dos anos de 1970 que puseram em cheque a atuação política de parte dos geógrafos brasileiros. Orquestrada pelas pastas do Planejamento e do Interior, cujos rescaldos foram, em síntese, o endividamento externo, a ampliação das desigualdades regionais, frutos de uma concepção de planejamento absolutamente geoestratégica e economicista. Por volta de 1977/1978, jovens geógrafos questionam a rigidez burocrática de órgãos como a AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros, de cuja fundação, em 1934, participou Caio Prado Junior), invadindo (literalmente) as plenárias do encontro de Fortaleza, de 1978.

Esse ato político marca o fim de um caráter oficial na ligação da AGB com o IBGE. Bom lembrar que a formação marxista dessa geração – de matriz gramsciana, sobretudo – vinha notoriamente de fora do meio acadêmico, por meio de “cursos livres”, como os ministrados por José Chasin, dentre outros.

Nos meios universitários – Universidade de São Paulo e Universidade Federal do Rio de Janeiro, basicamente – não se abandonara o conservadorismo e o positivismo da geografia tradicional. Na USP, a marca da “escola francesa”, de Paul Vidal de la Blache e seus discípulos, assinalada pelos estudos regionais – conforme os manuais escolares nos quais muitos de nós aprendemos uma geografia mnemônica e ornamental – era extremamente forte.

Mesmo porque foi através de “missões” estrangeiras que se constituíram os primeiros corpos docentes da Universidade de São Paulo e, no caso das “humanidades”, a vinda de professores franceses é um fato notório. Para a “escola francesa”, a geografia daria conta de compreender como o domínio das técnicas pelo homem – nunca se referindo a categorias como sociedade e trabalho – diferencia o espaço geográfico e, no limite, o próprio “grau de civilização” dos povos.

Prossegue a avalanche de críticas ao planejamento, o qual, no fundo, constitui-se num recorte espacial dos métodos quantitativos bem de inspiração econômica neoclássica, travestidos (às vezes) de roupagem “marxista”.

Na intenção de solapar tais critérios teóricos quantitativos (conhecidos como “Nova Geografia”), professores da “velha guarda” tradicional aliam-se aos jovens de 1978, pois o alvo era comum: a destruição da geografia ligada ao planejamento, logo identificada, e com razão, a intenções políticas afinadas com a ditadura.

Os compromissos políticos foram os amálgamas das mudanças na geografia pós-1978-1980. Em termos teóricos, a geração de Fortaleza caminhará pela década seguinte na incorporação de categorias marxistas – agora, no meio acadêmico –, principalmente no debate da questão da renda da terra, da valorização capitalista do espaço, do encontro entre política, luta de classes e cultura etc.

São questões complexas, que gostaria de partilhar num texto à parte, para breve.

Referências bibliográficas

BERDOULAY, Vincent. La formation de l’école française de géographie. 3e éd. Paris: Éditions du CTHS, 2008.

CAPEL, Horacio. Filosofía y ciencia en la geografía contemporánea. Edición ampliada. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2012.

ESCOLAR, Marcelo; MORAES, Antonio Carlos Robert. Pierre George: compromiso político, fragilidad teórica y temática regional. In Anales del II Encuentro de Geógrafos Latinoamericanos. Montevideo: 1989, p.173-184.

FERRETTI, Federico. Anarchici ed editori. Milano, 2011.

GEORGE, Pierre, et al. A geografia ativa. 5ª ed. São Paulo; Rio de Janeiro: DIFEL, 1980.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2006.

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