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TEORIA

O “novo” Brasil nas telas: uma análise do filme “O som ao redor”

Marco Pestana

À primeira vista, “O som ao redor” pode parecer apenas mais um exemplar dos tantos filmes que têm sido construídos – em todo o mundo – a partir de um procedimento narrativo que consiste em apresentar diversas histórias paralelas, com níveis variados de conexão entre si, produzindo, assim, um mosaico de relações humanas frouxamente articulado. Alguns elementos, no entanto, nos permitem – ou nos compelem – a pensar que, em cada cena, o filme de Kléber Mendonça Filho está construindo, ainda que de forma relativamente sutil, uma poderosa tese acerca do Brasil do século XXI, bem como dos processos históricos que levaram à sua constituição tal qual o vivenciamos hoje.

Ao longo da trama há um constante esforço do diretor em nos lembrar que existe um autor por trás do longa-metragem, o que é efetivado, principalmente, por meio de alguns cortes especialmente marcados e pela explícita divisão do filme em partes, seccionadas pela apresentação de seus títulos. Dessa forma, a fluidez da narrativa é interrompida, acentuando no espectador a consciência de que os eventos que presencia na tela foram ordenados daquela maneira específica com um propósito, que não se esgota nas questões imediatamente enfrentadas pelas personagens.

As três partes do filme intitulam-se, respectivamente, “Cães de guarda”, “Guardas noturnos” e “Guarda costas”, identificando a contínua escalada da sensação de insegurança que caracteriza a experiência cotidiana dos moradores de uma rua de Recife habitada por famílias daquilo que se convencionou chamar classe média, além de parcela da elite local. Nesse quadro de fobia generalizada, cujo consequente desconforto transborda a tela em função do ritmo da narrativa, associado à própria duração do filme, e da constante intervenção de sons externos aos elementos prioritariamente enfocados pelas tomadas, os menos atingidos pela paranoia parecem ser, justamente, os membros da família de elite. Com efeito, em sua recusa a se enxergar como componentes de uma multidão indiferenciada que pode ser vítima ocasional da violência aleatória do dia a dia, sua confiança só é levemente abalada a partir do momento em que surgem indícios de que alguma violência pode ser a eles – especialmente ao patriarca da família – dirigida de forma premeditada.

Não por acaso, essa autoconfiança deriva do fato da família ser proprietária não apenas de grande parte dos imóveis da rua onde residem vários de seus membros, mas de quase todo o bairro. Por sua vez, essa modalidade de estabelecimento do domínio social, que assenta suas bases políticas e econômicas na propriedade do solo, é uma forma de transposição para o ambiente urbano das relações características do universo rural. Assim, a mesma família é detentora de terras no interior do estado de Pernambuco, às quais referem-se sugestivamente como Engenho. Nessa conexão entre os mundos urbano e rural, alicerçada na continuidade das relações de poder, reside a primeira grande proposição de Mendonça. Dessa forma, o diretor e roteirista parte do diálogo com parcela significativa da cinematografia brasileira dos anos 1960, simbolizada pela obra “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, em que se discutia a concentração da propriedade fundiária e as consequências políticas e sociais daí advindas, para atualizar as teses debatidas por aquela geração. Em “O som ao redor”, a não resolução das questões levantadas há cinco décadas constitui, precisamente, um dos elementos fundamentais para a compreensão do Brasil atual, em que sua face pretensamente moderna continua sendo, em grande parte, dirigida pelas mesmas famílias – e métodos – característicos do ambiente supostamente arcaico do campo. Entretanto, mais do que simplesmente dialogar com aquela filmografia, Mendonça presta-lhe, também, uma homenagem, expressa pela cena que melhor simboliza a violência subjacente a essa dominação social, em que a água da cachoeira na qual se banham o patriarca Francisco e seu neto João – seu provável sucessor, que, apesar de detestar, trabalha como agente do mercado imobiliário que avança impiedosamente sobre o espaço urbano –, além da namorada desse, transforma-se em sangue, num artifício alegórico muito próximo àqueles desenvolvidos por Glauber e outros.

É a segurança derivada dessa continuidade da posição de mando que permite, em última análise, que os membros da família de elite sejam os únicos que jamais tomam a iniciativa de confrontar ou tratar de forma rude seus empregados, ou aqueles que ocupam posições inferiores na hierarquia social. O que se apresenta aqui são traços de um paternalismo – expresso pelo modo afetuoso com o qual João se relaciona com Maria, a empregada doméstica que trabalha há décadas para a família – que também podem ser lidos como a transposição de mecanismos de dominação do campo para a cidade, constituindo a face complementar daquela violência jamais explicitamente retratada, mas simbolizada pela cachoeira. Entretanto, as mesmas relações entre patrão e empregada no ambiente doméstico já parecem indicar que alguns elementos também passam por mudanças naquela sociedade, quando a filha de Maria – uma trabalhadora de outra geração, portanto – vai faxinar a casa de João e resiste a seus esforços de estabelecimento de ligações pessoais para além do vínculo trabalhista.

Situação totalmente distinta vivem as demais personagens, constantemente envolvidos em conflitos motivados por dois medos fundamentais que, como veremos, são, na verdade, profundamente articulados entre si. De um lado, há o temor de não conseguir afirmar cotidianamente sua posição na hierarquia social sobre aqueles considerados inferiores.  Emergem daí, por exemplo, os confrontos entre condôminos e funcionários de edifícios (tanto o caso daqueles que querem demitir o porteiro, quanto da madame que destrata o funcionário de seu prédio – tendo, como resposta, um arranhão por ele produzido em seu carro). De outro lado, igualmente onipresente é o receio de que suas propriedades – não tão abundante quanto àquelas da elite – sejam violadas, o que justifica a aceitação praticamente unânime pelos moradores da rua dos serviços oferecidos pelos vigilantes privados.

Em nenhum grupo de personagens, a presença desse duplo medo é tão marcada quanto na família de Bia, a dona de casa de classe média. Sua principal preocupação é garantir que os filhos – sequer adolescentes – tenham condições de obter empregos que garantam sua ascensão social. Para isso, zela diuturnamente por sua educação, matriculando-os em cursos de inglês e chinês, além da escola privada. Consumida pelas tarefas de manter a casa em ordem e garantir a concentração dos filhos em seus estudos, Bia vive uma existência nitidamente insatisfatória, cujos percalços são sempre enfrentados pelo recurso a aparelhos eletroeletrônicos. Efetivamente, tais utensílios são acionados com propósitos tão díspares quanto acabar com os latidos do cachorro da casa vizinha, sugar a fumaça – e, numa das mais belas metáforas do filme, também a sua energia vital – da maconha utilizada nos momentos de maior estresse e, até, suprir as carências decorrentes da bissexta vida sexual com o marido.

Os mesmos eletrodomésticos, no entanto, para além de prover soluções para uma existência escassa em relações pessoais significativas, também aparecem como principal fonte de conflitos em torno do status social da família. Se na relação com a vizinhança o tamanho da televisão pode se tornar o pretexto para uma briga em torno da diferenciação em relação àqueles que querem se ver como iguais, a empregada doméstica é rudemente admoestada por danificar, justamente, o aparelho importado, outro importante fator de distinção social. Dessa centralidade adquirida pelos bens na vida da família e no estabelecimento de seu lugar social, resulta que qualquer ameaça à propriedade desses bens adquire grande dramaticidade, na medida em que a perda dos mesmos implicaria não apenas na despossessão material, mas, igualmente, na descida de significativos degraus na escada social. Trata-se, com efeito, de algo internalizado até mesmo pela filha de Bia, ainda uma criança, que chega a sonhar com hordas de meninos de rua invadindo o prédio.

Desses constantes receios, emerge um terceiro núcleo importante de personagens, que é composto pelos vigias, ao que tudo indica, interessados unicamente em prestar o serviço para o qual foram contratados. Numa virada importante, essa aparente fonte de segurança se metamorfoseia na mais direta ameaça a membros da elite, numa clara indicação de que a construção de pretensas fortalezas urbanas jamais será suficiente para aplacar os conflitos enquanto os mecanismos sociais que os geram não forem transformados.

Dessa forma, o ciclo percorrido pelo filme encontra seu desfecho. Histórias aparentemente desconexas se articulam em parte por laços inicialmente desconhecidos entre as personagens, mas, principalmente, pela representação de um processo histórico que situa as conexões interindividuais num nível além do imediatamente pessoal. Seus dramas pessoais só podem, portanto, ser plenamente compreendidos em íntima relação com esse processo, que, ao fim e ao cabo, estabelece as condições nas quais cada um pode empreender suas ações. Nesse sentido, o filme resgata uma importante tradição que podemos chamar do cinema sociológico brasileiro.

Entretanto, nas condições sócio-históricas da explosão de consumo da classe média e do próprio proletariado que marca esse início de séxulo XXI no Brasil, as personagens não podem ser construídas como alegorias diretas das classes sociais. Afinal, uma das consequências do boom consumista é justamente direcionar as preocupações das pessoas para o âmbito individual/familiar (cada qual tentando garantir seu quinhão da riqueza social, como os cães que abanam seus rabos esperando que o senhor do engenho lhes destine alguma ínfima parcela dos alimentos de sua mesa), fragmentando os movimentos políticos de maior abrangência construídos em outros momentos de nossa história, com destaque para os anos 1960 e 1980. Por isso, ainda que funcionem como representações de classes sociais, as personagens precisam ter seu desenvolvimento ao longo do filme profundamente atrelado às suas questões individuais (como o romance de João, ou o esforço de Bia pelos estudos dos filhos).

É precisamente dessa fragmentação dos sujeitos coletivos, associada à afirmação cada vez mais confiante de um sistema social hierarquizado, que resulta a difusão da visão do outro como ameaça (não custa lembrar que pouquíssimas são as interações estabelecidas em espaços públicos e mesmo a transposição das barreiras que separam as propriedades quase só ocorre como incômodo, como no caso dos latidos do cão) e, por consequência, a generalização do medo, sentido de forma diferente em cada degrau da pirâmide social. Nada disso, no entanto, implica que esse seja um processo irreversível. Ainda que o filme explicite apenas possibilidades individuais de confrontação daqueles que se mais beneficiam desse sistema, a opção por rodar as imagens do Engenho em Palmares não pode ser tomada como casual. Afinal, se os mecanismos de dominação e as rixas individuais daí surgidas no campo podem ser facilmente transpostas para a cidade, o mesmo poderá se dar com a experiência coletiva da resistência.


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