Aldo Cordeiro Sauda e Marcia Camargos
Assim como Saturno, elas devoram os próprios filhos.” A frase cunhada por Pierre Verginaud, (1753-1793), célebre orador girondino, às vésperas de seu encontro com a guilhotina, se tornaria um dos motes mais repetidos para sinalizar o trágico desfecho de boa parte das revoluções.
O sentimento de decepção ante as descontroladas explosões políticas das massas parece não se restringir à França do século 18. Dois anos após a euforia inicial do Egito pós-Mubarak, uma depressão generalizada paira sobre os narradores da revolução árabe.
Foram-se embora os charmosos ativistas digitais do Twitter e do Facebook, tão fluentes no inglês, para ceder lugar a camponeses semianalfabetos da Irmandade Muçulmana. A dita primavera, se é que algum dia existiu, transformou-se em tenebroso inverno digno de um drama shakespeariano. No rastro da atmosfera de descontentamento, a revista New York Review of Books, capturando o espírito do momento, estampou uma manchete afirmando taxativamente: “Isso não é uma revolução”.
Mas se é verdade que a situação no Egito tem evoluído ao avesso de um jantar à luz de velas, a perplexidade de proporções faraônicas da intelectualidade ocidental talvez fale mais sobre nós mesmos do que dos levantes populares em curso no Oriente Médio e Norte da África.
Não teria sido, por exemplo, nosso fascínio com o papel das redes sociais na revolução, tão celebrado pela imprensa mundo afora, apenas uma expressão da insaciável paixão por bugigangas digitais da era virtual? Ao mesmo tempo, a antipatia gratuita à Irmandade Muçulmana e as constantes referências a um suposto “islamo-facismo” não teriam mais a ver com preconceitos arraigados do que com uma leitura objetiva da realidade?
É descabido comparar os islamistas aos fascistas, mas tampouco é possível negar que parte relativamente importante do projeto político dos radicais islâmicos chega a dar calafrios. Obcecados com o policiamento para manter a moral e os bons costumes, o setor ultrarreligioso composto pelos salafistas dá a ideia de que a revolução entrou em um beco sem saída.
Desde os menores gestos, incluindo a recusa em cumprimentar as mulheres dando a mão, passando pelas tentativas de proibir o consumo de álcool, pela censura a qualquer música não religiosa, até o uso compulsório do véu e a defesa da violência doméstica como um hábito saudável e profilático, os salafistas conseguem, não raro, tornar um pesadelo o cotidiano de quem mora no Egito. Contudo, caracterizar os que hoje dirigem o país como uma espécie de liderança termidoriana, nome dado aos golpistas associados à alta burguesia financeira que selaram o fim da participação popular na Revolução Francesa de 1789, é uma analogia equivocada.
Pois, ao contrário do partido de Mubarak, formado por empresários influentes e poderosos, a Irmandade tem em sua linha de frente figuras típicas da classe média, como professores, médicos e engenheiros de carreira pouco exitosa. Seu discurso é quase sempre voltado para um público empobrecido de origem camponesa, desiludido ante a incapacidade dos governos seculares de promover melhorias em sua qualidade de vida. E também para setores da sociedade incomodados com as constantes intervenções dos Estados ocidentais na política árabe.
Ou seja, nem só no âmbito das restrições e das medidas moralizantes transita a retórica islamista. Nela sobra ainda espaço para criticar as imensas desigualdades sociais, propor a superação da miséria milenar e investir na solidariedade regional contra as aventuras militares norte-americanas e israelenses. Portanto, ao inverso dos partidários do antigo regime, os “irmãos” professam algum senso de justiça social.
O rápido andar da carruagem e a conturbada dinâmica dos eventos no Cairo têm levado muitos a se esquecerem das condições que alçaram os islamistas ao poder. Situados em um bloco de oposição “light” ao antigo regime, os islamistas fizeram de tudo para suavizar a transição política até a eleição do presidente Mursi. A todo custo evitaram choques com os sucessores de Mubarak logo após sua derrubada.
Durante um longo período antes das primeiras eleições presidenciais tidas como livres na história do país, a Irmandade repetidamente saiu em público afirmando que defendia uma candidatura de “unidade nacional”, em conjunto com a junta militar então dirigindo o Egito.
Após a insistência dos generais em lançar candidatura própria, que acabou derrotada, Mursi manteve o general Mohamad Tantawi, ex-ministro da Defesa de Mubarak e chefe da transição, no ministério dado a ele pelo ditador deposto. Ou seja, em lugar de uma movimentação autônoma da Irmandade, foram antes a sede de poder dos militares e sua resistência em compor politicamente com os irmãos que os empurraram para fora do palco. O temor dos dirigentes islâmicos em assumir um Egito descontrolado e falido, o mesmo que eles hoje governam, nunca foi novidade. Na fase em que tentavam acertar o passo com os militares, a ausência de organizações políticas que expressassem as aspirações dos ativistas laicos talvez tenha sido a principal razão por trás da fácil e rápida escalada da Irmandade ao comando da nação. Além disso, ao contrário de seus jovens rivais, os irmãos estão há 80 anos no jogo político, detendo um projeto estruturado e uma base social organizada – algo inexistente entre as lideranças revolucionárias seculares. Como se não bastasse, a Irmandade também conta com um capital financeiro respeitável. Seus apoiadores nacionais e, sobretudo os internacionais, dão a ela um ponto de apoio em forma de verbas e bens materiais que nenhuma outra força política da região possui.
Em parte devido à bancarrota do Estado egípcio, o governo da Irmandade está longe de representar um exercício vitorioso de poder. A queda livre dos recursos provenientes da indústria do turismo, a crise de divisas externas e o cenário pouco entusiástico da economia mundial somam-se ao caos político e à instabilidade crônica do país. Não por acaso, gigantescas manifestações de oposição e desafio ao governo, expressos nas constantes passeatas e ações de rua organizadas pela juventude, têm azedado o dia a dia de Mursi.
Paralelamente à estagnação econômica interna, o desejo de se adaptar ao luxuoso estilo de vida intrínseco ao status dos governantes parece ter minguado o modesto programa social historicamente defendido pela Irmandade. O único ponto no qual talvez tenha avançado se encontra na decisão de enfrentar o problema quase insolúvel da imundície do Cairo. Diante da cidade coberta por montanhas de dejetos que fazem dela um imenso lixão a céu aberto, Mursi pôs no topo de suas prioridades limpar as ruas da capital. Porém, o caráter quase anedótico do foco na higiene urbana mostra quão distante a Irmandade está das necessidades elementares de seus apoiadores e do povo em geral.
Não é de se estranhar que, logo ao assumirem, os irmãos tenham se esforçado para deixar clara sua decisão de manter as diretrizes econômicas do ancient régime. Segundo Khairat al-Shatar, empresário em franco ascenso na organização, a única diferença entre a política econômica de Mubarak e a da Irmandade é que a última seria livre de qualquer tipo de corrupção mundana.
Igualmente relegadas ao esquecimento ficaram as denúncias aos acordos de paz entre Israel e Egito. A solidariedade à causa palestina, uma das supostas marcas da Irmandade, não resistiu ao teste do pragmatismo político. Sempre que possível, Mursi afirma aos observadores internacionais que pretende manter todos os tratados firmados com o Estado sionista. De resto, apenas seu conhecido antissemitismo se mantém intacto. Quando necessário, os irmãos responsabilizam ora os judeus, ora a maçonaria por complôs imaginários que impedem o pleno funcionamento do governo.
Enquanto os irmãos têm visto sua popularidade minguar nas praças e nas urnas, a imaturidade política da oposição secular pró-revolução tem impedido outros atores políticos de capitalizar a crise da Irmandade. A organização de Hamdeen Sabahy, o carismático dirigente nasserista de esquerda que mesmo com pouquíssimos recursos terminou em terceiro lugar no primeiro turno das eleições presidenciais, atolou em uma zona de sombra. Ele não conseguiu aproveitar a brecha de vulnerabilidade e aparente fraqueza do concorrente para deitar raízes e consolidar-se entre os insatisfeitos.
Somando as dificuldades materiais à falta de uma militância calejada como a dos islamistas, Hamdeen tem feito movimentações um tanto confusas. Sua tentativa de alargar a base o tem levado a alianças com setores ligados ao regime deposto que, pelo seu perfil secular, vêm se aproximando dele. Com algum fundo de verdade, os irmãos muçulmanos acusam a oposição laica de ligações indigestas com remanescentes da cúpula de Mubarak.
Já o governo da Irmandade e a política por ela defendida continuam patinando nas próprias contradições. A busca dos islamistas por inverter o sentido da roda da história, defendendo um suposto retorno aos tempos utópicos do califado, é reacionária por natureza. Não obstante, a chegada ao poder desses setores apenas revela a fraqueza organizacional dos que na primeira hora assumiram a linha de frente da Praça Tahrir. Não aponta, necessariamente, no sentido de uma derrota final e definitiva da revolução.
Passados dois anos das vibrantes celebrações na Tahrir após a queda do ditador, a realidade se provou muito mais complexa do que imaginávamos. Porém, ainda que as poderosas palavras de Vergniaud e seus intérpretes produzam eco, o mito de Saturno é essencialmente um mito. Serão os desdobramentos da história moderna, e não as lendas romanas ou a glória dos califas, que determinarão os verdadeiros vitoriosos desse processo.
(Publicado em O Estado de S. Paulo, 27 jan.2013.)
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